ANOTAÇÃO



Processo: R-6259/09


Entidade visada: Secretário de Estado Adjunto e da Educação.


Assunto: Sanção aplicada ao director pedagógico das Oficinas de São José – Associação Educativa.


Objecto: Inscrição e renovação de matrículas nos estabelecimentos de ensino privados. Contrato simples: objecto e poderes do contraente público. Inconstitucionalidade material das normas do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21.11. Procedimento administrativo sancionatório. Princípio da adequação.



I


1. Foi solicitada a intervenção do provedor de Justiça, em representação e no interesse de A., relativamente à sanção de multa que a este foi aplicada, na qualidade de Director Pedagógico das Oficinas de São José – Associação Educativa, por decisão do Secretário de Estado Adjunto e da Educação de 02-11-2009.


A decisão aplicou a sanção de multa considerando que, “[n]o 2.º trimestre de 2008, enquanto Director Pedagógico, o arguido … recusou a renovação de matrícula a M …, nas Oficinas de S. José – Associação Educativa, para o ano escolar de 2008/2009” e que a mesma se impunha por força da aplicação das normas jurídicas que são aplicáveis à inscrição e renovação de matrículas nos estabelecimentos de ensino públicos.


2. A instrução da queixa compreendeu a análise do procedimento sancionatório e do procedimento de inquérito que o precedeu e a discussão jurídica da decisão com a entidade visada.


3. Os factos são os seguintes:


a) Em 26-12-2008, foi celebrado entre o Estado e as Oficinas de São José – Associação Educativa contrato simples, para vigorar no período de 01-09-2008 a 31-12-2008.


b) O contrato “tem como objectivo fixar as condições para a atribuição de apoio financeiro destinado a apoiar as famílias menos favorecidas economicamente que, no exercício do direito de escolha do processo educativo dos seus filhos, tenham optado pela sua inserção em estabelecimentos de ensino particular e cooperativo” (cláusula primeira);


c) A matrícula da aluna M… não foi renovada, pelas Oficinas de São José – Associação Educativa, para o ano lectivo de 2008/2009;


d) A não renovação da matrícula fundou-se no não preenchimento, na perspectiva da escola, de um dos critérios que adopta para a selecção dos seus alunos: a adesão dos encarregados de educação à perspectiva educacional que adopta;


e) Na sequência de queixa apresentada pelos pais da aluna M… e de acção inspectiva da IGE, foi instaurado, em 30-09-2008, processo de inquérito para “apurar as circunstâncias em que ocorreu a recusa de matrícula da aluna M…”.


f) Com base no mesmo, foi instaurado procedimento disciplinar ao Padre A…, na qualidade de Director Pedagógico das Oficinas de S. José – Associação Educativa;


g) Em 13-07-2009, foi deduzida nota de culpa.


h) A nota de culpa imputa-lhe a prática de “infracção punível nos termos do disposto no artigo 99.º, n.º 2, alínea c) do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21/11 , conjugado com o ponto 8, alínea b) , e ponto 6, alínea b) , ambos da Portaria n.º 207/98, de 28 de Março, punível com a pena de Multa graduada entre 1 a 10 salários mínimos nacionais” (§ 3 do ponto 2);


i) A infracção é descrita, no § 2 do ponto 1 da nota de culpa, nos seguintes termos: “No 2.º trimestre de 2008, enquanto Director Pedagógico, o arguido A… recusou a renovação de matrícula a M…, nas Oficinas de S. José – Associação Educativa, para o ano escolar de 2008/2009, quando esta aluna dispunha de prioridade na renovação de matrícula por ter frequentado este estabelecimento no 1.º ciclo do Ensino Básico, em violação do disposto nos pontos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 301/93, de 31 de Agosto, nos pontos 2.10, 2.11 e 3.2, alínea c), todos do Despacho n.º 14026/2007, de 11 de Junho, publicado no Diário da República (II Série) de 03 de Julho, e no n.º 2 do artigo 77.º do Decreto-Lei n.º 553/80, Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, publicado no Diário da República, n.º 270, I Série, de 21 de Novembro de 1980 e no ponto 8 alínea b) da Portaria n.º 207/98, de 28 de Março.”


j) O ponto 3 refere ser a competência disciplinar punitiva da Ministra da Educação, como disposto no ponto 6, alínea b), da Portaria n.º 207/98, de 28 de Março.


k) Por despacho de 02-11-2009, foi aplicada “ao arguido a pena de multa graduada em dois salário mínimos nacionais no montante de 900 €, nos termos e com os fundamentos propostos” na Informação I/03163/SC/09, de 06-10-2009, no relatório do instrutor do procedimento disciplinar e no Parecer I/02926/RL/09, de 11-09-2009.


l) Neste último, analisam-se, no essencial, os argumentos da defesa, de acordo com os quais a nota de culpa é falha na identificação dos factos que permitem a correcta “avaliação da responsabilidade e da culpa” do arguido, “não existe qualquer fundamento legal para que a IGE se arrogue o direito de apreciar da legalidade ou ilegalidade da recusa de matrícula em causa” e o Despacho nele invocado não se aplica, por não existir entre as Oficinas de S. José – Associação Educativa e o Estado um contrato de associação.


m) Quanto ao primeiro argumento, o parecer citado considera que o facto integrativo da infracção da recusa de matrícula está suficientemente patenteado, não oferecendo dificuldade de defesa ao arguido.


n) Quanto ao segundo argumento, destaca o disposto no artigo 12.º, n.º 5, no artigo 13.º, n.º 1, no artigo 41.º, n.º 1, alínea g), no artigo 44.º, no artigo 51.º, n.º 3, no artigo 98.º, n.º 2, e no artigo 99.º, n.º 2, todos do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo (Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro), conciliado com o facto de as Oficinas de S. José – Associação Educativa ter um contrato simples com o Estado.


o) No que se refere à não aplicação do Despacho n.º 14026/2007, nota, em síntese, que “existe um comando legal, estatuído no artigo 77.º, n.º 2, do EEPC, que estabelece para renovação de matrículas das escolas particulares a observância dos requisitos em vigor para as escolas públicas, requisitos estes que, por força do disposto no artigo 7.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 301/93, de 31.08, estão definidos no Despacho n.º 14026/2007 – razão pela qual se aplica/tem de se aplicar o Despacho n.º 14026/2007 aos estabelecimentos de ensino particular e cooperativo” (textos com sublinhados e itálico no original).


p) A nota de culpa foi elaborada com apoio nos depoimentos dos pais/encarregados de educação da aluna M…, do Administrador das Oficinas de S. José – Associação Educativa e do Coordenador do 1.º ciclo nas Oficinas de S. José.


q) Destes depoimentos extrai-se, em suma, respectivamente, o seguinte:


i) “…[que] tiveram acesso à fundamentação que presidiu à decisão tomada, com a qual continuam a manifestar desacordo por violar os mais elementares princípios de direito …” e, reportando-se a mensagem electrónica do arguido, que integra os autos – nos termos da qual o mesmo refere ter sido a decisão de não inscrição da aluna, no ano lectivo de 2008/2009, tomada por unanimidade, porque os pais da mesma “- não concorda[ra]m com a actuação educativa face à salvaguarda de valores com que a escola se identifica // – …coloca[ra]m em causa a autoridade dos professores justamente actuantes // …coloca[ra]m em causa o exercício disciplinar [em relação a sua outra filha, pela mesma Escola] enquadrado em fins educativos (medidas educativas e disciplinares) //…transporta[ra]m para um âmbito exterior às instâncias educativas, nomeadamente para contencioso judicial, uma causa tratada pela escola de forma proporcionada, com sentido pedagógico, e comunicações progressivas e adequadas” – notam que “o arguido indicia que a decisão foi adoptada pela direcção e que a ser feita prova no âmbito do presente processo que assim aconteceu, consideram que tal deve ser averiguado na sede competente” e que a “mensagem é reveladora, daquilo que os pais/encarregados de educação consideram estar em causa em todo o processo, a saber a convicção de que qualquer decisão por mais injusta, ilegal e prepotente tomada pelo Colégio não pode ser posta em causa, ou sindicada nas instâncias legalmente competentes”;


ii) “(…) Inquirido então sobre as causas e fundamentos que presidiram à rejeição da renovação da matrícula da aluna M…, passou a responder que deixou de haver uma relação de confiança, porque os pais colocaram o Colégio em Tribunal por questões relacionadas com aspectos disciplinares e educativos, e nesse sentido impeditiva da manutenção de uma boa relação educativa, até para benefício da própria aluna …”;


iii) “(…) Entre outros critérios, de facto, aqueles que podem ser considerados como mais importantes para uma tomada de decisão, relativamente à renovação/aceitação de matrícula de um aluno/a são o aproveitamento, o comportamento e a aceitação da família da proposta educativa do Colégio (…) // a recusa da renovação da matrícula da aluna M… prendeu-se tão só com o facto de ter havido uma ruptura entre os pais/encarregados de educação e o Colégio no que concerne à Proposta Educativa deste último”;


iv) “(…) Mais referiu que o encarregado de educação no momento de candidatura dos seus filhos ou educandos nas Oficinas de S. José assina um documento em que declara que conhece e concorda com o Regulamento Interno (distribuído no acto de candidatura). (…) // No caso concreto da M… tratou-se da aplicação do previsto no Regulamento Interno, ou seja, a Direcção agiu em conformidade com as directivas internas e com as directivas emanadas pela própria Inspecção-Geral da Educação em processo semelhante anteriormente ocorrido”.


r) Integra o processo disciplinar o modelo de declaração subscrita pelo encarregado de educação, junto da escola, nos termos da qual declara ter “perfeito conhecimento, quer da Proposta Educativa, quer do Regulamento Interno em vigor, com ele concord[ando], obrigando-[se] a cumpri-lo e a fazer com o seu Educando o cumpra. // Mais declar[a] que autoriz[a] o [seu] Educando a participar em todas as visitas escolares que as Oficinas de S. José – Associação Educativa, no âmbito do seu Projecto Educativo, venha a promover, bem como a participar em outras actividades fora do Colégio, durante o ano lectivo ……/……, responsabilizando-[se] pelo seu comportamento”.


II


4. A decisão punitiva imputa ao visado a violação do artigo 7.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 301/93, de 31 de Agosto (“estabelece o regime de matrícula e de frequência no ensino básico para as crianças e jovens em idade escolar”), dos n.ºs 2.10, 2.11 e 3.2, alínea c) do Despacho n.º 14026/2007, de 11 de Julho (estabelece “normas a observar na matrícula e sua renovação …” nas escolas e agrupamentos de escolas dos ensinos básico e secundário públicas e nas escolas particulares e cooperativas com contratos de associação), publicado no DR., 2.ª série, de 3 de Julho (considerado na versão resultante da Rectificação n.º 1258/2007), do artigo 77.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro (que “constitui o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo e rege, nos termos da Lei n.º 9/79, de 19 de Março, o ensino particular, com excepção das escolas de nível superior e das modalidades de ensino por ele expressamente excluídas”), e da alínea b) do n.º 8 da Portaria n.º 207/98, de 28 de Março (define o regime sancionatório aplicável às instituições de ensino particular e cooperativo).


Nos termos do citado artigo 7.º, n.ºs 1 a 3, do Decreto-Lei n.º 301/93, de 31 de Agosto, a renovação da matrícula é anual e oficiosa na escola frequentada pelo aluno no ano anterior e está sujeita, no que se refere ao prazo e termos em que se processa, às regras estabelecidas por despacho do Ministro da Educação. Os artigos 2.º, n.º 4, 10.º e 11.º do mesmo diploma prevêem, no entanto, o dever dos encarregados de educação de diligenciarem pela matrícula e pela sua renovação. Correspondendo àquela previsão, o Despacho n.º 14026/2007 dispõe sobre as normas a observar nas matrículas e na sua renovação. Foi objecto da Rectificação n.º 1258/2007, publicado no DR, 2.ª série, n.º 155, de 13.8.2007, onde consta o seguinte: “Por ter sido publicado com inexactidão o despacho n.º 14 026/2007, publicado no Diário da República, 2.a série, n.o 126, de 3 de Julho de 2007, relativo a matrículas, constituição de turmas, distribuição de alunos por escolas e agrupamentos e regime de funcionamento das escolas, rectifica-se que onde se lê: // «1.1—O presente despacho aplica-se às escolas e aos agrupamentos de escolas dos ensinos básico e secundário públicas, particulares e cooperativas.» // deve ler-se: // «1.1—O presente despacho aplica-se às escolas e aos agrupamentos de escolas dos ensinos básico e secundário públicas, particulares e cooperativas com contratos de associação.» //…” (sublinhados nossos).


O Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro, regula o ensino particular e cooperativo, sem prejuízo, refere o respectivo preâmbulo, da “consagração das linhas essenciais à liberdade e à responsabilidade de criação, gestão e orientação de estabelecimentos de ensino, bem como à efectivação da igualdade de oportunidades no acesso à educação”. O seu artigo 77.º, n.º 2, dispõe que as “matrículas e a renovação de matrículas nas escolas particulares efectuam-se até ao limite dos prazos e com observância dos requisitos em vigor para as escolas públicas do mesmo nível de ensino”. O diploma estabelece, ainda, com relevância o seguinte:


a) No artigo 12.º, n.ºs 1, 2 e 4, que o “Estado celebrará contratos com escolas particulares que, integrando-se nos objectivos do sistema educativo”, especificam “as obrigações assumidas pela escola, bem como os subsídios e benefícios especiais que lhe são concedidos;


b) No artigo 12.º, n.º 5, que as “escolas particulares que celebrem contratos com o Estado ficam sujeitas às inspecções administrativas e financeiras dos serviços competentes do Ministério da Educação e Ciência”;


c) No artigo 31.º, n.º 1, que [c]ada escola particular pode ter um projecto educativo próprio, desde que proporcione, em cada nível de ensino, uma formação global de valor equivalente à dos correspondentes níveis de ensino a cargo do Estado”;


d) No artigo 31.º, n.º 3, que “[o]s regulamentos das escolas com cursos e planos próprios devem conter as regras a que obedece a inscrição ou admissão …” (sublinhados nossos);


e) No artigo 31.º, n.º 4, que este “regulamento e as suas alterações devem ser enviados, para conhecimento, à Direcção-Geral do Ensino Particular e Cooperativo”;


f) No artigo 41.º, que às “entidades titulares de autorização de funcionamento de escolas particulares compete: // … b) Representar a escola em todos os assuntos de natureza administrativa; … // e) Estabelecer a organização administrativa e as condições de funcionamento da escola; …”.


g) E no artigo 43.º, que à direcção pedagógica compete “a orientação da acção educativa da escola e, designadamente: (…) // e) Zelar pela educação e disciplina dos alunos”.


5. Da legalidade da sanção aplicada.


5.1.Em sede de instrução, a entidade visada sustentou a legalidade da sanção aplicada. Em síntese:


a) Invocou que, não obstante o Despacho n.º 14026/2007, de 11 de Julho, não incluir, segundo o nele estabelecido, as escolas com contrato simples, como é o caso, “por força do disposto no n.º 2 do art.º 77 do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21.11, às matrículas e respectivas renovações nos EEPC aplicam-se as mesmas regras para esse efeito previstas para os estabelecimentos públicos de ensino, regras essas que se encontram previstas no Despacho n.º 14026/2007”;


b) Enfatiza o facto de estar em causa uma renovação de matrícula e de aluna com prioridade na respectiva inscrição, segundo o disposto nos “n.ºs 1, 2 e 3 do art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 301/93, de 31.08, os n.ºs 2.10, 2.11 e 3.2, alínea e) do Despacho n.º 14026/2007, de 11/06 e no n.º 2 do art.º 77.º do EEPC”;


c) Alega que a não renovação só se poderia apoiar no não aproveitamento escolar ou em motivos disciplinares;


d) Diferentemente de uma primeira inscrição, caso em que seria, aí sim, possível, dentro de certos limites jurídicos, a definição pelos estabelecimentos privados, das suas próprias regras de admissão;


e) Alega, também, ter sido motivo determinante, no caso concreto, da não renovação da matrícula da aluna M… a interposição de providência cautelar pelos encarregados da educação relativamente à sanção disciplinar aplicada à sua irmã;


f) Nota, ainda, que “a matéria referente à constituição de turmas, nomeadamente quanto ao número limite de alunos …” não está na disponibilidade dos estabelecimentos privados de ensino.


5.2. A legalidade da sanção é um problema de interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes à luz dos factos que a prova recolhida, constante do processo, recorte.


O artigo 77.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro, no qual a decisão punitiva centra a legalidade da sanção aplicada, estabelece que “[a]s matrículas e a renovação de matrículas nas escolas particulares efectuam-se até ao limite dos prazos e com observância dos requisitos em vigor para as escolas públicas do mesmo nível de ensino”. Como referido, os “n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 301/93, de 31 de Agosto” , dispõem, respectivamente, que “[a] matrícula é renovada anualmente”, que “[a] renovação da matrícula opera-se oficiosamente na escola frequentada pelo aluno no ano lectivo findo” e que “[o] prazo da matrícula e da sua renovação, bem como os termos em que as mesmas se processam, são definidos por despacho do Ministro da Educação”. Ora, a verdade, é que este despacho não existe em relação aos estabelecimentos privados de ensino com contrato simples. Com efeito, o Despacho n.º 14026/2007, de 11 de Julho, dispõe: “O presente despacho aplica-se às escolas e aos agrupamentos de escolas dos ensinos básico e secundário públicas, particulares e cooperativas com contratos de associação” (1.1). E não pode dizer-se que o autor do despacho disse menos do que queria dizer. É que a especificação do tipo de escolas privadas a que se aplica resultou da Rectificação n.º 1258/2007, publicada em 13.08.2007, que clarificou a sua não aplicação aos estabelecimentos de ensino privados com contrato simples. E percebe-se que assim seja. É que outra disposição seria contrária à razão de ser e ao objecto deste tipo de contrato, que, como é destacado, “são celebrados em áreas não carenciadas”, inscrevendo-se na garantia do Estado da pluralidade de ensino .


Estando ciente deste recorte legal, a entidade visada, para tentar ultrapassar os limites normativos das normas transcritas: i) invoca um “dever ser” e não aquilo que é – ora, repita-se, o Despacho n.º 14026/2007, de 11 de Julho estabelece: “O presente despacho aplica-se às escolas e aos agrupamentos de escolas dos ensinos básico e secundário públicas, particulares e cooperativas com contratos de associação” (sublinhado e negrito nossos) –; ii) chama a si a elaboração de uma norma jurídica para o caso concreto, ou seja, faz uma derrogação singular do regulamento aprovado pelo Despacho n.º 14026/2007, de 11 de Julho , violando o princípio da inderrogabilidade singular dos regulamentos (artigo 3.º, n.º 1, do CPA), o qual retira a qualquer órgão administrativo, “a começar pelo que os editou”, a possibilidade de os “deixar de observar” .


Para além da razão de ser dos contratos de associação e dos contratos simples, não se pode perder de vista que os estabelecimentos de ensino privados traduzem o exercício da liberdade de iniciativa económica privada e da liberdade de ensinar (artigos 43.º e 61.º, n.º 1, da CRP). A falta desta dupla atenção tem o resultado visível, no caso, de não delimitar a exacta medida da aplicação das pertinentes normas a tais estabelecimentos, com consequências incoerentes. A título de exemplo, considere-se que, se a renovação da matrícula, nos termos do artigo 7.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 301/93, de 31.08, operasse oficiosamente, sem mais, em relação a estabelecimento de ensino privado, o mesmo estaria a dispor sobre a liberdade de outros privados e sobre a aplicação dos seus valores monetários ou economias; considere-se, de igual modo, que a interpretação, no artigo 77.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21.11, do conceito requisitos de matrícula como sendo exactamente os estabelecidos para os estabelecimentos de ensino privado impediria a existência, designadamente, de «escolas confessionais».


Invoca o autor do acto, ainda, que uma coisa é a admissão ao estabelecimento de ensino privado, outra a renovação de matrícula, reconhecendo apenas em relação à primeira uma ampla disponibilidade na fixação de critérios de admissão. No que se refere à segunda, em relação a um estabelecimento de ensino privado, alega só poder fundar-se em razões disciplinares e no não aproveitamento do aluno. Não suporta, porém esta afirmação em normas jurídicas . Na economia das normas do regime em referência, admissão ou matrícula e renovação aparecem a par. Por outro lado, a afirmação tem o efeito de demonstrar que as normas de admissão e renovação de matrícula não são, sem mais, as aplicáveis a estabelecimento de ensino público. É que, num estabelecimento de ensino público, a não renovação de matrícula não fica, seguramente, dependente do aproveitamento do aluno. Depois, importa registar a desproporção de entendimento e a actuação administrativa, que reconhece, por força da Constituição, um espaço amplo de disponibilidade dos estabelecimentos privados de ensino na admissão e selecção dos seus alunos e, depois, o exclui, utilizando, «por aproximação», em bloco, de forma não especificada, normas pensadas para estabelecimentos de natureza e responsabilidade públicas.


De referir que, no caso concreto, o problema não é o do reconhecimento de inexistência de garantias de continuidade da matrícula no estabelecimento de ensino privado. A não renovação da matrícula fundou-se no não preenchimento de um dos critérios que as Oficinas de São José adoptam, como é do conhecimento do Ministério da Educação, para a selecção dos seus alunos: a adesão dos encarregados de educação à perspectiva educacional que adopta; existindo, no caso, numa ruptura, patenteada no processo, entre os mesmos e a escola, com afastamento pelos primeiros dos termos do contrato que celebraram.


A entidade visada nomeia como factos a “motivação” das Oficinas de São José na decisão de não renovação da matrícula, que refere ser a “mera retaliação contra a acção proposta e com ganho de causa” pelos pais da aluna relativamente à punição disciplinar de sua irmã . Não foi, contudo, por esta inferência que, formalmente, o arguido foi acusado e punido. As normas legais convocadas para suportar a legalidade da afirmação não atêm a discriminação injustificada, ficando, também, por esta argumentação, reforçada a ideia de que o Secretário de Estado Adjunto e da Educação puniu o arguido por factos e direito que não estão no processo.


De registar, ainda, é a ausência de contraditório quanto à constatação, resultante da análise do processo punitivo, de falta, quer na acusação, quer no relatório que apoia a sanção, de qualquer referência ao elemento subjectivo da infracção.


III


6. Da inconstitucionalidade das normas do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro.


A decisão do Secretário de Estado Adjunto e da Educação considerou que o director pedagógico cometeu a “infracção punível nos termos do disposto no artigo 99.º, n.º 2, alínea c) do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21/11, conjugado com o ponto 8, alínea b) e ponto 6, alínea b), ambos da Portaria n.º 207/98, de 28 de Março”.


6.1. Sobre a inconstitucionalidade das normas do citado artigo 99.º pronunciou-se o Tribunal Constitucional (TC) . Interpelou-se, por isso, aquele membro do Governo no sentido de considerar essa pronúncia, quer na situação concreta quer tendo em vista a alteração consentânea do diploma.


6.2. O mesmo não correspondeu ao solicitado, estribando-se em jurisprudência administrativa anterior ao juízo de inconstitucionalidade material, das normas do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro.


O TC assinalou, em sede de fiscalização concreta, que as “normas contidas no artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 553/80, …fixa[m], sem a densidade que, ratio materiae, seria constitucionalmente exigida, o regime sancionatório aplicável às escolas privadas”, pois não identificam os “comportamentos típicos a que deveriam corresponder as sanções que fixou”, a relação destas com os “ilícitos típicos a que correspondessem” e mesmo o procedimento a adoptar para a sua aplicação, remetendo esta tripla definição para regulamento, a Portaria n.º 207/98, de 28.03. Notou o TC que “[é] bem difícil sustentar que um regulamento assim não inova no domínio das restrições à esfera individual, ou não cria normação primária, dando vida a preceitos jurídicos «novos» ou «originários» (…) // E não restam dúvidas que a Lei de Revisão pretendeu, justamente, vedar ao legislador este ‘tipo’ de reenvios normativos” (artigo 112.º, n.º 5, da CRP); lembrando que “em matérias que impliquem restrições ou condicionamentos essenciais ao exercício de liberdades fundamentais só são constitucionalmente admissíveis os regulamentos de execução” (sublinhado nosso) .


IV


7. Dos poderes inspectivos e sancionatórios administrativos aplicados aos contratos celebrados pelo Ministério da Educação com os estabelecimentos privados de ensino.


7.1. Do procedimento sancionatório e da argumentação aduzida pela entidade visada resulta uma compreensão desproporcionada dos poderes inspectivos e sancionatórios administrativos no quadro dos contratos celebrados pelo Ministério da Educação com os estabelecimentos privados de ensino. Tais poderes reportados a uma actividade privada têm um carácter excepcional, revestindo a medida dos deveres legais e contratuais dos respectivos estabelecimentos, sem que possam ser assumidos com carácter genérico, seja o contrato celebrado um contrato de associação ou, por maioria de razão, um contrato simples.


7.2. Por outro lado, é de assinalar uma compreensão funcionalizada dos trabalhadores de um estabelecimento de ensino do sector privado, vistos como se de trabalhadores da Administração Pública se tratassem . O Secretário de Estado Adjunto e da Educação não foi sensível ao facto de a remissão regulamentar global para o estatuto disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública ser juridicamente inadequada e, como tal, deve merecer, no mínimo, a sua atenção toda a reflexão jurídica produzida sobre o assunto.


V


8. Do princípio da imparcialidade.


8.1. No processo, colocou-se, igualmente, um problema de falta de imparcialidade. O Inspector que elabora a Informação n.º I/03269/SC/10, processo n.º 10.07/00026/RL/09, de 23.9.2010, que fundamentou a decisão do Secretário de Estado Adjunto e da Educação de 8.10.10, pela qual manteve o mesmo acto punitivo em referência, elaborou ainda as informações anteriores sobre a situação, sustentando a instauração de inquérito e, depois, no procedimento disciplinar, a punição e em sede de impugnação da punição pelo visado .


8.1. “Nenhum …agente da Administração Pública pode intervir em procedimento administrativo ou em acto …da Administração nos seguintes casos: // (…) [q]uando …haja dado parecer sobre a questão a resolver”; e quando esteja em causa recurso de decisão produzida com “a sua intervenção” (artigo 44.º, n.º 1, alínea d) e g), do CPA). Para além da observância destes normativos legais, chamou-se a atenção para o facto de a legitimidade e a autoridade jurídicas da decisão produzida em sede de reexame ou revisão do acto sobre que incide ficarem, necessariamente, prejudicadas, podendo, razoavelmente, suspeitar-se da independência da análise produzida (artigo 6.º do CPA), tanto mais que as decisões foram tomadas directamente sobre as informações referidas, sem produção de qualquer fundamentação autónoma por outro agente ou órgão administrativos.


VI


9. Em síntese, os motivos de censura jurídica assacáveis à decisão punitiva do Secretário de Estado Adjunto e da Educação são vários. Este manifestou a sua indisponibilidade para a alterar, não obstante a insistência feita. Neste quadro, expressou-se o reparo deste órgão do Estado pela decisão de reiterar o acto ilegal – que padece de erro na interpretação e aplicação das normas jurídicas em que se apoia, viola o princípio da inderrogabilidade singular dos regulamentos e desconsidera a culpa como um elemento essencial para a identificação de infracção administrativa. Mais se exortou o Secretário de Estado Adjunto e da Educação a promover a reflexão e consequente correcção que se impõem sobre as deficiências do regime sancionatório aplicável aos estabelecimentos privados de ensino.