R-3817/2009 (A4)


Entidade visada: Agência Nacional para a Qualificação, I.P.


Assunto: Acesso a emprego ou a cargo público. Requisitos de admissão. Princípio da legalidade. Reserva de lei. Princípio da proporcionalidade.


Objecto: Procedimento de acreditação de avaliadores externos no âmbito dos Centros Novas Oportunidades aberto pelo aviso n.º 2473/2008, de 31.01. Requisitos de admissão. Regime jurídico. Falta de datação do currículo. Exclusão.


I – 1. Foi apresentada queixa ao Provedor de Justiça por uma das candidatas ao procedimento de acreditação de avaliadores externos aberto, pela Agência Nacional para a Qualificação, I.P., pelo aviso n.º 2473/2008, de 31.01, por ter sido excluída em razão da não datação do currículo apresentado.


2. A decisão foi explicada, em síntese, nos seguintes termos: i) corresponde à aplicação do estabelecido no Regulamento do procedimento de acreditação de avaliadores externos no âmbito dos Centros Novas Oportunidades (doravante Regulamento)1 ; ii) a datação do currículo constitui um requisito ou condição estabelecido no Regulamento, que é “um requisito legalmente estabelecido”, para efeitos do artigos 47.º, 18.º e 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP, e um requisito cuja falta pode determinar a exclusão dos respectivos candidatos nos termos do n.º 14 do mesmo Regulamento; iii) a consideração do currículo não datado importaria o suprimento oficioso de informação a fornecer pelos candidatos, o qual colidiria, no caso, com os princípios concursais.


II – 3. Analisados os argumentos expendidos, foi solicitado à Agência Nacional para a Qualificação, I.P., que reconsiderasse o entendimento veiculado, na medida em que: i) a apresentação do currículo datado não é qualificado pelo Regulamento como requisito ou condição de admissão ao procedimento; ii) não existe norma legal que permita a criação por decisão ou regulamento administrativos de requisitos de admissão a procedimento e/ou exercício de função ou cargo públicos, constitucionalmente sujeito a reserva de lei parlamentar; iii) os princípios concursais depõem, em concreto, contra a exclusão em causa, por o currículo apresentado permitir, sem qualquer intervenção administrativa, a comparação dos candidatos em condições de igualdade e imparcialidade; iv) é contrária ao princípio da proporcionalidade.


4. Quanto à falta de previsão legal da assinatura do currículo como requisito de admissão, destacou-se, quer a falta de base normativa no Regulamento do procedimento, quer a existência de reserva de lei parlamentar em matéria de restrições ao exercício de direitos fundamentais.


A apresentação do currículo datado e assinado tem previsão no n.º 7 do Regulamento citado, inserido no ponto IV deste, referente a “Apresentação da candidatura”: “A candidatura à acreditação formaliza-se mediante a apresentação à Agência Nacional para a Qualificação, I.P., de formulário de candidatura devidamente preenchido e de curriculum vitae, datado e assinado pelo candidato, no qual faz prova de possuir os requisitos e condições necessários à acreditação como avaliador externo”. Estes são elencados no n.º 6 do ponto III, referente a “Requisitos”, e considera-se o disposto no n.º 3 (do ponto II – “Enquadramento”) do mesmo Regulamento, que prevê dever a acreditação de avaliação operar por procedimento de selecção de candidatos com o perfil adequado exteriores aos Centros Novas Oportunidades. As normas dos n.ºs 6 e 3 não erigem qualquer documento (designadamente, o currículo e o currículo datado) a requisito de admissão ao procedimento de acreditação de avaliadores externos no âmbito dos Centros de Novas Oportunidades. A falta do currículo datado em nenhuma norma do regulamento é referido como causa ou motivo de exclusão. O currículo tem carácter instrumental, é um meio de evidenciar o preenchimento de “requisitos e condições” (v.g., n.º 7 do Regulamento). Não é ele próprio um requisito ou uma condição.


Em matéria de escolha de profissão ou género de trabalho, designadamente, de escolha pelo exercício de função ou de cargo públicos, os requisitos para aceder aos mesmos têm de ser fixados por lei parlamentar ou por decreto-lei autorizado (artigos 47.º, n.º 1 e n.º 2, 18.º e 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP)2 . Em geral, de resto, a actividade administrativa tem de ter suporte num acto legislativo (artigo 266.º, n.º 2, e artigo 112.º, n.ºs 5 a 7, da CRP e artigo 3.º, n.º 1, do CPA). O regulamento é um acto normativo emitido no exercício da função administrativa, no caso, o Despacho n.º 29856/2007 aprova um regulamento de execução, sob a forma de despacho normativo. Não é, pois, constitucional e legalmente aceitável a decisão administrativa de excluir de um procedimento concursal tendo em vista o acesso a função ou cargo públicos candidatos com motivo desprovido de base legal. A apresentação de currículo datado não é um requisito ou condição de admissão ao procedimento de acreditação de avaliadores externos no âmbito dos Centros Novas Oportunidades e não é “um requisito legalmente estabelecido”.


5. No que se refere ao princípio da proporcionalidade, destacou-se o carácter manifestamente desproporcionado da cominação com a exclusão da não apresentação de currículo datado.


O princípio da proporcionalidade constitui um parâmetro jurídico fundamental dos actos dos poderes públicos, seja da intervenção legal (restritiva ou não de direitos fundamentais) ou regulamentar, seja na tomada de decisões administrativas. Compreende, como é sabido, três vertentes: i) a vertente da idoneidade dos meios para a consecução do fim legal; ii) a vertente da proibição do excesso ou da exigibilidade; iii) e a vertente da proporcionalidade em sentido estrito. A decisão (administrativa) de cominar com a exclusão do procedimento – afastando da fase da selecção – a não apresentação do currículo datado sucumbe, desde logo, nos dois primeiros testes da proporcionalidade. Se o fim é a selecção (de pessoa capaz e imparcial para o exercício das funções de avaliador externo), o currículo, ou a ausência dele ou de elementos dele constantes, tem de ser valorado em sede de selecção (onde se projectará na ordenação dos candidatos) e não em sede de admissão. Deslocar para a sede de admissão a apresentação do currículo datado e assinado é sacrificar, desnecessariamente, a possibilidade dos interessados disputarem o concurso, onde serão posicionados, em termos de ordenação de mérito, em função dos elementos carreados para o processo. Se, em abstracto, a cominação com a exclusão da não apresentação do currículo é violadora do princípio da proporcionalidade, é acrescidamente em concreto, por a Administração ter, no procedimento de selecção em causa, elementos que lhe permitem, sem se substituir ao particular, conhecer das datas relevantes para a avaliação da candidata. Senão vejamos: no currículo apresentado constam as datas ou os períodos de tempo em que tiveram lugar os acontecimentos curriculares nele evidenciados; concretamente, no currículo da candidata em causa, pelo menos, “refere-se explicitamente o desempenho de funções docentes entre os anos de 1990 e 2008 e o exercício da avaliação externa em Dezembro de 2007”.


6. Sobre a aplicação dos princípios concursais e a determinação das situações em que a Administração pode, por aplicação dos mesmos, diligenciar no sentido do suprimento de insuficiências formais dos processos de candidatura.


Quanto a este aspecto, notou-se que o entendimento administrativo adoptado dá por assente que a admissão de candidato que instruiu o processo de candidatura com currículo não datado viola os princípios concursais, parecendo assumir a posição de princípio que qualquer intervenção oficiosa na matéria ou qualquer suprimento a realizar pelos candidatos conduz, inevitavelmente, a tal violação. Em primeiro lugar, foi observado que o que está em causa, na decisão tomada, é a admissão a concurso. Ora, a consideração do currículo releva em sede de selecção. A comparação dos candidatos realiza-se, quanto ao currículo, na selecção. Em segundo lugar, é determinante ter presente a razão de ser das coisas, a materialidade subjacente ou os valores jurídicos cuja protecção está em causa (artigo 266.º, n.º 2, da CRP, artigos 6.º e 6.º-A, n.º 2, do CPA). Trata-se, no caso, de garantir o respeito do direito de oposição a concurso daqueles que preenchem os requisitos normativamente fixados (artigo 47.º da CRP) e dos princípios da igualdade e da concorrência (artigos 13.º e 47.º da CRP). Em terceiro lugar, não se pode deixar de considerar que, nalguns casos, são precisamente tais princípios que obstam à exclusão de concurso por insuficiências formais, numa diferenciação das situações que cabe fazer, como tem destacado repetidamente a jurisprudência administrativa 3 .


É patente, na situação concreta, que a data do currículo não contende com a comparação do mérito dos candidatos ao procedimento de acreditação de avaliadores externos no âmbito dos Centros Novas Oportunidades. A formação académica e profissional e a experiência consideráveis à candidata estão, de resto, temporalmente determinadas no currículo que apresentou.


7. Quanto ao princípio da igualdade, em particular, apelou-se ao seguinte. “O princípio constitucional da igualdade do cidadão perante a lei é um princípio estruturante do Estado de Direito Democrático e do sistema constitucional global, que vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional”4. A igualdade perante a lei importa, desde logo, que a Administração não crie obstáculos – nela não previstos – à participação em procedimento de concurso de alguns candidatos em detrimento ou favor de outros. Ao fazê-lo trata uns de forma diferente, cerceando, liminarmente, por motivo desprovido de base legal, a possibilidade de disputarem o acesso a função ou cargo público. O princípio da igualdade significa, também e primeiramente, a proibição do arbítrio. Não pode ser adoptado como elemento de referência ou aferição da igualdade critério arbitrário, abusivo, injusto, como seja o de excluir de um concurso candidato por não ter datado o currículo, ademais quando é manifesto que nele constam elementos factuais, temporalmente delimitados, a permitir a comparação – em igualdade de condições – dos candidatos ao procedimento de concurso 5.


III – 8. Em 1-04-2010, o Presidente da Agência Nacional para a Qualificação, I.P., informou que “a Comissão de Avaliação constituída no âmbito do referido procedimento deliberou, em reunião de 5 de Fevereiro de 2010, alterar a sua deliberação de admissão e exclusão adoptada em 6 de Fevereiro de 2009 …, no sentido de admitir ao procedimento os candidatos inicialmente excluídos com fundamento exclusivo de falta de datação do respectivo Curriculum Vitae, entre os quais a [candidata] … cujo exercício do direito de queixa motivou a recomendação [em causa]”.


9. Nestes termos, superado o motivo de queixa ao Provedor de Justiça, relativamente ao procedimento de acreditação de avaliadores externos, o processo correspondente da Provedoria de Justiça foi arquivado.


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1. Regulamento aprovado pelo Despacho n.º 29856/2007, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 249, de 27 de Dezembro.


2. Acórdão do Plenário do TC n.º 563/03, de 18-11-2003, processo n.º 578/98, Acórdão do Plenário do TC n.º 255/02, de 12-06-2002, processo n.º 646/96, Acórdão do TC n.º 128/00, de 23-02-2000, processo n.º 547/99, e Acórdão do TC n.º 161/99, de 10-03-1999, processo n.º 813/99 (estes últimos no sentido de que a reserva parlamentar não se circunscreve às restrições aos direitos, liberdades e garantias, mas abrange, em geral, a disposição relativa aos mesmos.


3. No sentido da distinção das situações em que os princípios concursais postulam a intervenção oficiosa ou do particular para suprimento de elementos dos processos de candidatura, cfr., designadamente, o Acórdão do Pleno da Secção do CA do STA de 16-06-2005, processo n.º 01204/03, o Acórdão da 2.ª Subsecção do CA do STA de 30-09-2009, processo n.º 0703/09, e o acórdão da 1.ª Secção do CA do TCA Norte de 24-05-2007, processo n.º 02187/05.7BEPRT.


4. Ac. da 2.ª Secção do TC n.º 186/90, de 6 de Junho de 1990, processo n.º 533/88.


5. Como explicita o Acórdão da 1.ª Subsecção do CA do STA de 29-04-2003, processo n.º 01505/02, os “elementos a ter em conta no método de selecção ‘avaliação curricular’ não têm necessariamente de estar contidos no documento designado ‘curriculum’, bastando que façam parte do processo de candidatura do concorrente e, assim, sejam presentes ao respectivo júri”.