PARECER


Assunto: Consumo. Publicidade. Distribuição de desdobráveis sobre o Provedor de Justiça.



 


O PROBLEMA


Foi solicitada por Sua Excelência o Provedor de Justiça a realização de estudo sobre a potencial aplicação da Lei n.º 6/99, de 27 de Janeiro – que regula a publicidade domiciliária, nomeadamente por via postal, distribuição directa, telefone e telecópia – aos desdobráveis publicados por este órgão do Estado, a distribuir no âmbito de protocolo celebrado com a CTT – Correios de Portugal, S.A. (CTT), relativos ao âmbito de actividade do Provedor de Justiça.






I
INTRODUÇÃO



1. A questão colocada veio a ser suscitada após o arquivamento de processos (1) que tinham por objecto o facto de uma empresa do grupo CTT, especializada na distribuição de correio não endereçado, proceder à distribuição de uma publicação periódica em caixas de correio que tinham afixado o dístico através do qual o destinatário manifesta a sua oposição à recepção de publicidade não endereçada.



2. Decorrendo dos elementos reunidos no âmbito da instrução daqueles autos que o periódico em causa se tratava de uma publicação quinzenal de carácter informativo, submetida, portanto, à disciplina constante da Lei de Imprensa (Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro), concluiu a Provedoria de Justiça não se estar em face de situação qualificável como publicidade domiciliária e, portanto, enquadrável na Lei n.º 6/99.



3. Considerando, porém, que, no sentido de dar a conhecer as atribuições e poderes do Provedor de Justiça, havia sido celebrado protocolo com a CTT para distribuição de desdobráveis nas caixas de correio de cidadãos residentes nas regiões em que se detectou um recurso menos frequente a este órgão do Estado, foi questionado se tal distribuição estaria, ou não, submetida às regras fixadas naquele diploma.



II
A LEGISLAÇÃO



1. Constatando existir um aumento assinalável da publicidade domiciliária, bem como uma intensificação e sofisticação dos meios nela empregues, o legislador sentiu a necessidade de criar mecanismos de defesa dos destinatários que não pretendessem vir a ser incomodados com este tipo de comunicações.



2. Deste modo, e em vez de proceder a uma alteração ao Código do Publicidade (Decreto-Lei n.º 330/90, de 23 de Outubro), sedes materiaie natural da regulamentação da publicidade, que no domínio da publicidade domiciliária e por correspondência apenas estabelecia requisitos ao nível do conteúdo da mensagem, e não sobre o próprio acto de comunicação (cfr. art.º 23.º, na redacção dada pelo art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 275/98, de 9 de Setembro), optou o legislador pela criação de um regime especial.



3. As normas especificamente criadas com esse intuito foram, então, reunidas na Lei n.º 6/99, de 27 de Janeiro, a qual passou a regular a publicidade domiciliária, nomeadamente por via postal, distribuição directa, telefone e telecópia (cfr. art.º 1.º, n.º 1).



4. Trata-se, pois, de um diploma que tem por objecto aquela espécie de prática publicitária, mas apenas quando concretizada através de qualquer das formas elencadas no ponto precedente.



III
CONCEITO DE PUBLICIDADE



1. Antes, porém, de passarmos à definição do conceito de publicidade domiciliária, importa atentar no conceito de publicidade, já que dele decisivamente depende a resposta a dar à questão aqui suscitada.



2. Ora, de acordo com o n.º 4 do artigo 1.º da Lei n.º 6/99, publicidade é:




a) Qualquer forma de comunicação feita por entidades de natureza pública ou privada, no âmbito de uma actividade comercial, industrial, artesanal ou liberal, com o objectivo directo ou indirecto de promover, com vista à sua comercialização ou alienação, quaisquer bens ou serviços ou promover ideias, princípios, iniciativas ou instituições – cfr. alínea a);



b) Qualquer forma de comunicação da Administração Pública, não prevista na alínea anterior, que tenha por objectivo, directo e indirecto, promover o fornecimento de bens ou serviços – cfr. alínea b).

3. Um primeiro olhar sobre o conceito anterior imediatamente nos leva à constatação de que o mesmo reproduz na íntegra a noção de publicidade já acolhida no Código da Publicidade (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º).


4. Por outro lado, ainda que o descrito conceito legal de publicidade não encontre limites, quer do ponto de vista dos consumidores, quer da natureza das actividades económicas em causa, quer das relações de concorrência eventualmente existentes, autores há (2) que consideram estar o mesmo aquém do que efectivamente é a publicidade, quando entendida, designadamente, como “a actividade económica que tem um objecto bem definido, ou seja, a promoção, o incentivo, a comunicação das características endógenas e exógenas de um produto (bem corpóreo ou incorpóreo), com vista a melhorar ou a rentabilizar a sua circulação no mercado, tendo em conta a concorrência que define a linha de circulação dos produtos e que depende de um conjunto de factores, tais como o preço , a qualidade e a quantidade”.



5. Voltando ao conceito legal, a publicidade apresenta-se, desde logo, como qualquer forma de comunicação promovida por um ente público ou privado, desenvolvida no âmbito de uma actividade económica, quer seja comercial, industrial, artesanal ou liberal, com o intuito de assegurar a promoção de produtos e do seu comércio, ou a promoção de ideias, princípios, iniciativas ou mesmo instituições.



6. Com efeito, como sublinha Paulo Mota Pinto (3), “a publicidade é, por definição, uma comunicação promocional ligada a uma actividade económica”.



7. No mesmo sentido, Adalberto Costa e Maria Paula Bramão (4) referem que “a publicidade é uma forma de comunicação, mas uma forma de comunicação que se distingue das demais pela sua complexidade económica e pelas implicações que esta traz para os vários sectores da economia e os seus sujeitos, mormente os sujeitos passivos, assim designados de consumidores”.



8. Na verdade, mesmo que estejamos em face de “publicidade de prestígio” ou de uma comunicação destinada a promover instituições, a promoção em que se traduz desenvolve-se sempre no âmbito de uma actividade económica, seja ela comercial, industrial, artesanal ou liberal.



9. Significa isto que nela se não incluem, p.e., as comunicações promocionais efectuadas no exercício da actividade política (5).



10. Por outro lado, cabem também no conceito de publicidade quaisquer outras formas de comunicação efectuadas pela administração pública, que visem, directa ou indirectamente, a promoção para o fornecimento de bens ou de serviços.



IV
A PUBLICIDADE DOMICILIÁRIA



1. Tratando-se, assim e por regra, de uma comunicação promocional de génese económica, a publicidade pode, porém, materializar-se sob diversas formas, de que são exemplo a publicidade televisiva, a publicidade radiofónica, a publicidade efectuada por via de contactos pessoais estabelecidos na rua, a publicidade realizada pela internet (6) e a publicidade domiciliária.



2. Ora, como já se viu, é precisamente desta última técnica publicitária, nomeadamente quando realizada por via postal, distribuição directa (endereçada ou não ao destinatário), telefone e telecópia (7), que se ocupa a Lei n.º 6/99.



3. Em regra assente num contacto directo e personalizado com o potencial consumidor dos bens e serviços objecto de divulgação, a publicidade domiciliária consiste numa prática publicitária direccionada a um público-alvo e obedece a critérios pré-determinados pelo anunciante, tais como a actividade profissional, a área do domicílio, a idade, o sexo ou estrato sócio económico do destinatário.



4. Nas palavras de Paulo Mota Pinto (8), publicidade domiciliária “é aquela que é entregue no domicílio do destinatário, por correspondência ou qualquer outro meio, designadamente, por distribuição directa nas caixas de correio de cartas, folhetos, panfletos, prospectos, catálogos, jornais publicitários (…). Trata-se sempre de uma comunicação promocional que se objectiva num documento entregue ao destinatário, sendo, porém, irrelevante que a entrega se faça através dos serviços postais (quer do serviço público de correios, quer de serviços particulares) ou em mão, directamente no domicílio”.



5. Já para Adalberto Costa e Maria Paula Bramão (9), publicidade domiciliária é a “que é feita “porta a porta” e que de forma directa chega ao conhecimento do destinatário, mesmo no seu local de residência”.



6. Certo é também que a forma de apresentação da publicidade entregue no domicílio – seja por via postal ou por distribuição directa, seja endereçada ou não endereçada ao destinatário – é não só disciplinada pelo artigo 2.º da Lei n.º 6/99, mas igualmente regulada pelo artigo 23.º do Código da Publicidade (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 275/98, de 9 de Setembro).



7. No entanto, contrariamente ao que se verificou relativamente ao conceito de publicidade, é possível aqui encontrar algumas diferenças entre os regimes geral e especial, como seja o facto de a Lei n.º 6/99 impor que a publicidade seja identificável exteriormente, ao passo que o Código da Publicidade, nada referindo em termos de identificabilidade exterior, elenca exaustivamente os elementos de identificação e informação que ela obrigatoriamente deve conter.



8. No essencial, e não pretendendo proceder aqui a uma análise comparativa dos dois regimes, limitamo-nos a assinalar que, além de prevalecente sobre aquele (10), o regime específico da publicidade domiciliária, sistematizado na Lei n.º 6/99, tem um objecto e âmbito muito mais alargado do que o constante do Código da Publicidade.



V
A PROVEDORIA DE JUSTIÇA



1. Determinados os conceitos de publicidade e de publicidade domiciliária, estamos agora em condições de avançar para a resposta ao problema colocado, de saber se a distribuição dos desdobráveis sobre o Provedor de Justiça configura o exercício de publicidade domiciliária, sujeita, assim, às regras fixadas na Lei n.º 6/99 (11).



2. Como começámos por referir, a celebração do protocolo objecto de análise, nos termos do qual a CTT se obriga a divulgar até um milhão de desdobráveis informativos elaborados pela Provedoria de Justiça, veio a decorrer da necessidade de reforço da defesa dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e da constatação da especificidade única da CTT na proximidade aos cidadãos e sua presença nos locais mais recônditos do País.



3. Trata-se, portanto, de desdobráveis de cariz informativo, cuja entrega aos cidadãos consubstancia o exercício da competência atribuída ao Provedor de Justiça pelo Artigo 20.º, n.º 1, alínea d), do respectivo Estatuto (Lei n.º 9/91, de 9 de Abril).



4. Não merece, pois, dúvida que a entrega dos referidos desdobráveis pela CTT não visa a prossecução de uma qualquer iniciativa de natureza económica mas, antes, a divulgação da finalidade da instituição Provedor de Justiça, dos meios de acção de que dispõe e de como a ele se pode fazer apelo.



5. Exclui-se, assim, sem necessidade de maior argumentação, qualquer possibilidade de qualificação da situação em apreço como publicidade, por via da aplicação do disposto na alínea a) do número 4 do art.º 1 da Lei n.º 6/99.



6. Já no que toca a uma eventual aplicação da alínea b) do mesmo preceito, também não se vê em que medida possa vir a operar no caso concreto, desde logo porque, como órgão independente que é, o Provedor de Justiça se não inclui no conjunto de serviços e organismos que integram a Administração Pública.



7. Com efeito, e como já foi dito no processo R-2569/01 (12), a tese da integração do Provedor de Justiça na Administração Pública, ainda que com a qualidade de autoridade administrativa independente, não obtém acolhimento no actual ordenamento jurídico-constitucional.



8. Conforme refere Vital Moreira (13), “apesar de ser inequivocamente uma autoridade pública independente, o Provedor de Justiça não integra a categoria das entidades administrativas independentes, não obviamente por não ser independente, mas sim por não se integrar na função administrativa, não pertencendo portanto à esfera da Administração Pública”.


9. No mesmo sentido se pronunciou Freitas do Amaral (14), que, questionando-se sobre “que tipo de órgão do Estado é o Ombudsman“, concluiu tratar-se de uma “autoridade constitucional independente”, que, situando-se “fora e para além dos poderes legislativo, executivo e judicial, mas actuando sobre todos eles”, se constitui como “um destacado e eminente órgão de garantia dos direitos fundamentais do indivíduo face ao Estado”.


10. Assim, e ainda que estivéssemos perante uma qualquer forma de comunicação que visasse, directa ou indirectamente, a promoção do fornecimento de bens e serviços – o que também não se nos afigura ocorrer no caso presente – a aplicação do regime em causa sempre resultaria prejudicada pelo facto de a mesma não derivar da Administração Pública.



CONCLUSÕES



1. O protocolo celebrado entre este órgão do Estado e a CTT tem lugar no âmbito de iniciativa tomada em cumprimento do estatuído no artigo 20.º n.º 1 alínea d) da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça);



2. Não se inserindo numa iniciativa de natureza económica, a distribuição dos desdobráveis sobre o Provedor de Justiça não é susceptível de ser qualificada de publicidade, de acordo com a noção acolhida na alínea a) do número 4 do artigo 1.º da Lei n.º 6/99, de 27 de Janeiro;



3. A natureza do órgão Provedor de Justiça e seu posicionamento no actual quadro jurídico-constitucional, excluem também a possibilidade de a iniciativa em causa ficar submetida à Lei n.º 6/99, de 27 de Janeiro, por via do disposto na alínea b) do número 4 do seu artigo 1.º.



 


 


 


 


 


 

Notas de rodapé:

(1) R-4880/04 e R-1507/05.
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(2) Cf. BRANDÃO, Maria Paula e COSTA, Adalberto, Código da Publicidade – Anotado e Comentado, Porto, Vida Económica, 2003, p. 81.
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(3) Cf. Publicidade Domiciliária não desejada (“Junk Mail”, “Junk Calls” e “Junk Faxes”), in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, ano 74, 1998, p. 276.
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(4) Ob. cit., p. 19.
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(5) Cf. n.º 5 do artigo 1.º da Lei n.º 6/99, de 27 de Janeiro, em tudo idêntico ao n.º 3 do artigo 3.º do Código da Publicidade.
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(6) Expressamente excluída do âmbito de aplicação da Lei n.º 6/99, pelo seu artigo 1.º, n.º 2.
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(7) Cf. Artigo 1.º, n.º 1.
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(8) Ob. cit., p. 275.
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(9) Ob. cit., p. 127.
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(10) Como expressamente se prevê no início do preceito, a regra do art.º 23.º do Código da Publicidade é aplicável sem prejuízo do disposto em legislação especial.
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(11) Uma resposta em sentido afirmativo implicaria ainda a aplicação, conjugada e complementar, das regras acolhidas no Código da Publicidade.
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(12) Cf. Relatório do Provedor de Justiça à Assembleia da República – 2003, p. 659.
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(13) Cf. O Cidadão, o Provedor de Jutiça e as Entidades Administrativas Independentes, Lisboa, Provedoria de Justiça – Divisão de Documentação, 2002, p. 117.
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(14) Cf. Democracia e Direitos Humanos no Séc. XXI, Lisboa, Provedoria de Justiça – Divisão de Documentação, 2003, pp. 48-49.
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