PROCESSO:


R-4559/98 (A2)

ASSUNTO: Tributação com recurso a presunções e métodos indiciários. Dever de fundamentação. O caso concreto de M…..
DECISÃO: A situação objecto de queixa foi pelo Provedor de Justiça exposta ao Ministro das Finanças (v. ofício infra), tendo sido sugerido que, quanto ao caso concreto da Reclamante, fosse analisada a possibilidade de revisão dos actos tributários de liquidação oficiosa de IRS e IVA, dos anos de 1993 e 1994, com base no artigo 78º da Lei Geral Tributária e que, simultaneamente, os serviços e técnicos da Direcção-Geral dos Impostos fossem sensibilizados para a importância de um rigoroso cumprimento do dever de fundamentação das decisões de determinação da matéria colectável por métodos indirectos e para o especial cuidado que deve sempre ser colocado na prova dos pressupostos de aplicação daqueles métodos.




Ofício dirigido a Sua Excelência o Ministro das Finanças
(aguarda resposta)







A Sua Excelência
o Ministro das Finanças


Trago junto de Vossa Excelência um caso que, embora dizendo respeito à concreta situação tributária de determinada cidadã, não deixa de ser revelador de como uma deficiente interpretação e aplicação, pelos técnicos da Direcção-Geral dos Impostos, das normas que regem o recurso à tributação com base em presunções e métodos indiciários, pode frustrar os objectivos visados pelo legislador ao permitir esta forma excepcional de tributação.


Se é certo que a tributação por métodos indiciários pode permitir à administração tributária atingir realidades que, de outra forma, escapariam a uma tributação devida e justa, certo é, também, que a falta de rigor na aplicação das normas que regem tal matéria gera inevitavelmente uma descredibilização desta forma de exercício do poder tributário do Estado, com as desvantagens daí decorrentes, desde logo em termos de quebra de confiança dos cidadãos na máquina fiscal e subsequente desmotivação desses mesmos cidadãos para o cumprimento rigoroso dos seus deveres tributários.


Sem querer antecipar conclusões, e a fim de permitir a Vossa Excelência apreciar o assunto tão detalhadamente quanto possível, anexo cópia do ofício através do qual a situação objecto da queixa aqui apresentada foi pela Provedoria de Justiça levada ao conhecimento do Exmº Director-Geral dos Impostos (v. Anexo I), permitindo-me remeter para o teor de tal comunicação quanto à descrição dos factos em apreço e das principais dúvidas que os mesmos aqui suscitaram.


A resposta a este ofício seria enviada à Provedoria de Justiça através da Direcção de Serviços de Estudos, Planeamento e Coordenação da Prevenção e Inspecção Tributária, da mesma se juntando igualmente cópia (Anexo II).


Refira-se que, para além destes elementos, foram obtidos vários outros ao longo da instrução do processo, quer junto da administração fiscal, quer junto do Registo Nacional de Pessoas Colectivas quer, ainda, junto da Reclamante. De alguns desses documentos se anexarão ainda cópias, mais adiante, por me parecer serem os mais relevantes, tudo sem prejuízo de todos os restantes elementos constantes do n/ processo acima referenciado se manterem, evidentemente, ao dispor de Vossa Excelência.


A apreciação de todos estes elementos revelou que a administração tributária recorreu a presunções para concluir que a Reclamante exercera determinada actividade entre 1993 e 1994 e recorreu a métodos indiciários para fixar o respectivo lucro tributável relativamente a IRS e IVA, sem que tenha fundamentado devidamente tal forma de actuação. É minha convicção que tal fundamentação não existiu porque, simplesmente, não podia existir, dada a fragilidade dos indícios a partir dos quais se optou por tributar a contribuinte.


Os elementos concretos em que a administração se baseou para fundamentar a sua decisão foram apenas dois: a existência de 7 facturas de compra de artigos de ourivesaria, todas emitidas pela firma J…, Lda., em nome da Reclamante, com datas compreendidas entre 07.12.1993 e 06.01.1994 e a existência de um cartão de identificação de empresário em nome individual também em nome da Reclamante, requerido em Janeiro de 1994.


A interessada nega ter alguma vez adquirido os objectos a que se referem as facturas e nega ter alguma vez requerido o cartão, mantendo desde o início a tese de que nunca comerciou em ouro e que foi vítima de burla, considerando que a emissão abusiva, em seu nome, das facturas e do cartão, está relacionada com a emissão, também abusiva e também em seu nome, de cheques sacados sobre conta bancária de que era titular. Convém esclarecer aqui que, na sequência destes últimos factos (ocorridos entre finais de 1993 e início de 1994, tal como a emissão das 7 facturas e do cartão que fundamentaram a tributação por métodos indiciários), a Reclamante veio a ser acusada da prática do crime de emissão de cheque sem provisão, tendo sido absolvida nos termos e com os fundamentos constantes da decisão judicial cuja cópia se junta – Anexo III.


Certo é, porém, que a partir dos dois únicos factos já referidos (existência do cartão de empresário e das 7 facturas referentes à aquisição de artigos de ourivesaria), presumiu a administração tributária tudo o resto, nomeadamente:







– a transmissão da mercadoria, presumida nos termos do artigo 80º do CIVA, isto é: não tendo a fiscalização encontrado nas instalações visitadas as mercadorias a que se referem as facturas, considerou-se que os objectos a que se referiam as mesmas facturas haviam sido, entretanto, transmitidos;

– o tipo de actividade empresarial exercida, alegadamente venda a retalho de artigos de ourivesaria, por ser esse tipo de artigos a que se reportavam as facturas em questão;


– o período em que a actividade teria sido exercida: 1993 e 1994 por serem esses os anos a que se referem as 7 facturas; e, por fim,


– o lucro tributável, fixado com base no valor das referidas facturas.


O facto de a Reclamante não possuir quaisquer livros de escrituração referentes a esta actividade, a falta de entrega da declaração de início de actividade, a falta de entrega de declarações periódicas de IVA e a não inclusão dos alegados rendimentos desta actividade nas suas declarações periódicas de IRS, foram interpretados pela administração tributária como manifestações de incumprimento das respectivas obrigações fiscais acessórias, apesar de a Reclamante manter a tese de que nada disso fez porque, simplesmente, não exerceu nunca a actividade em questão.


Este conjunto de ilações e presunções da administração tributária encontra-se expresso no Relatório de fiscalização e nos despachos sobre ele exarados (v. Anexo IV), tendo as respectivas conclusões sido sucessivamente mantidas, sem que novos elementos de prova viessem a ser encontrados ou invocados pela administração.


Ainda recentemente, na sequência de pedido de esclarecimentos complementares dirigido pela Provedoria de Justiça à Direcção de Finanças de Setúbal, foi reafirmado que “…não existem outros elementos para além do relatório da acção de inspecção, parecer do Coordenador e Despacho decisório. Contudo, poderemos acrescentar que os elementos que pesaram de forma relevante, como indiciadores do exercício da actividade empresarial, foram não só as facturas em nome da queixosa, emitidas por J… Lda., como também uma fotocópia remetida pela Direcção de Finanças do Porto do cartão de identificação de Empresário em Nome Individual…”(v. Anexo V).


É certo que a administração tem o direito – até o dever – de comprovar as declarações e versões dos contribuintes: é por isso e para isso que dispõe de poderes de fiscalização. O que me parece é que, neste caso, a fiscalização não consegue fazer prova bastante de que as conclusões a que chegou são minimamente seguras: existem muito poucos factos concretos e objectivos que revelem ser a tese da administração mais correcta e próxima da verdade do que a versão apresentada pela Reclamante.


Por um lado, porque poucos foram os dados objectivos recolhidos pela administração, e, por outro lado, porque mesmo em relação aos dois elementos factuais a que a administração se ateve para fundamentar as suas presunções, permanecem por explicar algumas contradições no mínimo estranhas, como por exemplo:







– o NIPC da cliente/Reclamante constante das facturas era inexistente (v. ponto 2. do Anexo II), não correspondendo, nem ao seu NIF de pessoa singular, nem ao número do cartão de identificação de empresário em nome individual emitido em seu nome;

– o cartão de empresário em nome individual (v. cópia que constitui a última folha do Anexo II) tem um código CAE diferente do correspondente à actividade cujo exercício foi presumido: o CAE inscrito no cartão (5242) corresponde à actividade de “comércio a retalho de vestuário” (v. CAE anexa ao Decreto-Lei n.º 182/93, de 14 de Maio), enquanto a actividade cujo exercício se presumiu foi a de “venda a retalho de artigos de ourivesaria”, expressamente mencionada no relatório de fiscalização (Anexo IV).


– apesar de o início da actividade ter sido previsto – por quem quer que tenha requerido o referido cartão de empresário em nome individual – para 20.01.1994, conforme resulta da cópia do pedido de emissão do cartão, obtida pela Provedoria de Justiça junto do Registo Nacional das Pessoas Colectivas (Anexo VI), a Reclamante é tributada logo a partir do exercício de 1993.


Ou seja, as facturas e o cartão de empresário em nome individual fundamentaram toda a tese do exercício, pela interessada, da actividade de comércio de artigos de ourivesaria em 1993 e 1994 quando, afinal, nenhum destes dois elementos probatórios aponta inequivocamente naquele sentido.


A administração tributária não só recorreu a métodos indiciários para determinar o lucro tributável, como recorreu previamente a presunções para concluir terem sido praticados actos tributáveis.


Ora, numa situação em que simultaneamente se recorre a presunções e a indícios, é exigível uma fundamentação particularmente cuidada de todos os actos praticados até à liquidação. Tem aqui plena aplicação o afirmado por Saldanha Sanches a fls. 430 em “A quantificação da obrigação tributária – Deveres de cooperação, autoavaliação e avaliação administrativa”, cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Centro de Estudos Fiscais da DGCI, Lisboa, 1995:







« A existência de uma situação de controvérsia, corporizada num litígio entre o contribuinte e a administração sobre a existência ou a quantificação de um determinado facto é pois nota distintiva, no terreno da Administração fiscal, para a separação entre actos administrativos que exigem uma fundamentação especialmente desenvolvida e aqueles que a não exigem»

No caso vertente, pelo menos a avaliar pelos elementos carreados para o presente processo, tal fundamentação parece-me ser insuficiente, nomeadamente pelas contradições acima referidas.


E nem só a doutrina é particularmente exigente no que concerne à fundamentação deste tipo de decisões. Também a jurisprudência – nomeadamente a do Supremo Tribunal Administrativo – aponta inequivocamente nesse sentido.


Veja-se, apenas a título exemplificativo, o Acórdão do STA proferido pela 2ª Secção daquele Tribunal, no âmbito do processo 017398, em 29.10.1997, em cujo resumo pode ler-se: “V – A fundamentação do acto tributário pode ser puramente ritual (como, por exemplo, nos casos em que há autoliquidação do imposto, ou em que os dados são fornecidos pelo contribuinte) ou longa e minuciosa (como, por exemplo, nos casos em que a liquidação decorre de métodos indiciários)”.


Veja-se, também, o Acórdão do STA proferido pela 2ª Secção no âmbito do processo 022750, em 25.06.1998: “I – O acto de liquidação adicional de imposto com recurso a métodos indiciários ou presuntivos pertence ao tipo daqueles cujo discurso fundamentador deve ter especial densidade significante por decorrer de um procedimento contra o contribuinte e não de colaboração do contribuinte e assentar numa liberdade de investigação.”


À luz deste entendimento, e considerando o que acima ficou dito quanto à falta de consistência das provas apresentadas pela administração tributária na defesa da sua tese, não posso senão concluir estar perante um caso de recurso indevido à tributação por métodos indiciários.


Numa situação em que a administração não logra obter provas contundentes nem irrefutáveis do exercício de determinada actividade, deve abster-se de presumir o seu exercício e, consequentemente, de determinar o lucro tributável pela aplicação de métodos indiciários. A decisão da administração que optou por esta via no caso em apreço, embora alegadamente fundamentada nas disposições legais então constantes dos artigos 38º do Código do IRS e 82º a 84º do Código do IVA, faz tábua rasa de dois pressupostos subjacentes a todas essas disposições legais: o de que o recurso a presunções e métodos indiciários deve ser utilizado como ultima ratio e o de que deve ser baseado numa sólida fundamentação.


É certo que, no caso em apreço, a Reclamante reagiu de forma inadequada à actuação da administração fiscal: reclamou para a Comissão Distrital de Revisão que indeferiu tal reclamação e, ao que julgo saber, das quatro liquidações oficiosas efectuadas na sequência de todo este processo (duas de IVA e duas de IRS, quanto a rendimentos de 1993 e 1994) apenas apresentou reclamação graciosa da liquidação de IRS/93, ainda pendente. Optou também por não impugnar nenhuma das liquidações (sendo que era essa a sede própria para discutir a legalidade da decisão da administração de recorrer à tributação por métodos indiciários) e preferiu deduzir oposição às execuções fiscais entretanto instauradas para cobrança das dívidas em causa, visando através desses incidentes ver apreciada a legalidade da dívida, objectivo que não constitui fundamento de oposição à execução.


Estes erros da Reclamante não podem, no entanto, obstar à resolução da questão: poderá a contribuinte ter lançado mão de meios que se revelaram pouco eficazes para atingir os seus objectivos, mas é indiscutível que o primeiro erro, o erro mais grave e o que esteve na origem de todo este longo processo, foi um erro da administração tributária, ao recorrer a presunções e métodos indiciários num caso em que deveria antes ter optado por uma de duas vias: ou procurar e apresentar indícios e provas mais consistentes dos factos que alegava (isto é, do exercício de uma actividade comercial pela Reclamante em 1993 e 1994) antes de avançar para a tributação, ou abster-se de tributar.


Optou antes a Direcção-Geral dos Impostos por tributar com base em presunções e métodos indiciários sem para tal ter o devido fundamento e, ainda que o artigo 74º da Lei Geral Tributária(1) tenha entrado em vigor apenas depois dos factos em apreço, certo é que o princípio que lhe subjaz já então existia: o ónus da prova dos factos recai sobre quem os invoca e, conforme creio estar sobejamente demonstrado, as exigências de prova eram neste caso dirigidas, em primeiro lugar, à administração. Se esta não logrou fazer prova do exercício da actividade de comércio a retalho de artigos de ourivesaria pela Reclamante, não pode a mesma vir a ser penalizada por não ter logrado provar o seu não exercício.


Por isso comecei por dizer que este era um caso, em minha opinião, revelador de uma incorrecta interpretação e aplicação, pelos técnicos da Direcção-Geral dos Impostos, das normas que regem o recurso à tributação com base em presunções e métodos indiciários.


Concordará Vossa Excelência que uma actuação como a supra descrita, em que se verifica uma utilização manifestamente inadequada dos meios de actuação que o legislador atribui à administração para que os utilize com objectivos de controle e dissuasão de situações de fuga ou evasão fiscal, pode acabar por comprometer esses mesmos objectivos, levando à quebra de confiança entre o cidadão e o fisco, elemento que tenho como sendo um dos que mais eficazmente pode conduzir a uma melhor justiça fiscal.


É pois devido, quer à situação particularmente difícil em que se encontra a contribuinte acima identificada, que tem a seu cargo as dívidas resultantes das liquidações oficiosas efectuadas (algumas das quais já em sede de execução fiscal), quer à gravidade que a questão pode assumir em termos mais genéricos, independentemente deste caso particular, que solicito a especial atenção de Vossa Excelência para este assunto, permitindo-me sugerir, por um lado, a análise da possibilidade de a administração rever os actos tributários de liquidação oficiosa de IRS e IVA 93 e 94 da Reclamante, eventualmente tendo por base o disposto no artigo 78º da Lei Geral Tributária e, por outro lado, a sensibilização dos serviços e técnicos da Direcção-Geral dos Impostos para a importância de um rigoroso cumprimento do dever de fundamentação das decisões de determinação da matéria tributável por métodos indirectos e para o especial cuidado que deve ser colocado na prova da verificação dos pressupostos de aplicação daqueles métodos.


Sem querer deixar de apresentar a Vossa Excelência um pedido de desculpas pelo facto de me ter alongado um pouco na exposição desta questão – creia que o fiz com o único objectivo de facilitar a respectiva apreciação –, agradeço antecipadamente a comunicação das diligências que entenda dever ordenar a este respeito e prevaleço-me desta ocasião para lhe apresentar os meus melhores cumprimentos.


Com os melhores cumprimentos,


O Provedor de Justiça


H. Nascimento Rodrigues