A Sua Excelência
o Secretário de Estado da Administração Interna


Procº: R-1945/02 (A6)


Data:14/05/2003


Assessor: João Batista


Assunto: Regularização extraordinária – Lei n.º 17/96, de 24 de Maio


Como é do conhecimento de Vossa Excelência, foi apresentada junto deste Órgão de Estado, uma exposição relativa à situação de uma família de cidadãos angolanos, que, pretendendo beneficiar do mecanismo de regularização extraordinária, ao abrigo da Lei n.º 17/96, de 24 de Maio, viram indeferida a sua pretensão, em virtude de, aquando da sua formulação, permanecerem em território nacional na posse de visto legal válido, não se enquadrando assim, de acordo com a posição desse Ministério, no disposto no artigo 1.º do normativo em causa.


Da decisão de indeferimento dos pedidos em causa, interpuseram os interessados recurso, ao abrigo do disposto no artigo 13.º, n.º 3 do diploma legal em apreço, tendo sido recentemente decidido, por despacho de Vossa Excelência, exarado sobre o Parecer REC 46-L/03, da Auditoria Jurídica desse Ministério.


De acordo com o referido Parecer, a pretensão dos recorrentes “não pode ser satisfeita ao abrigo da Lei n.º 17/96, de 24 de Maio, uma vez que não é abrangida pelo seu âmbito de aplicação”.


Na verdade, estabelece o artigo 1.º, n.º 1, do diploma legal em análise que “a presente lei estabelece um processo de regularização extraordinária da situação de cidadãos originários de países de língua oficial portuguesa que se encontrem a residir em território nacional sem a necessária autorização legal”. Assentando na letra do preceito, seria assim de considerar que os cidadãos estrangeiros que aqui permanecessem legalmente à data da sua entrada em vigor, independentemente das especificidades do respectivo título, não poderiam vir a beneficiar do regime por esta criado.


Alega ainda o citado Parecer que o recorrente vivia com autorização legal em território nacional, uma vez que era titular de um visto válido por um ano, não sendo por isso um imigrante clandestino, à imagem e semelhança do que aconteceria com a sua companheira, então titular de um visto de estudo.


Se se atentar todavia na materialidade subjacente, verifica-se que, no caso concreto como em porventura muitos outros, com a caducidade dos vistos então em vigor, encontram-se actualmente os mesmos em situação irregular, apenas amenizada até agora nos seus efeitos, pelo carácter suspensivo atribuído ao recurso de cujo resultado foram agora notificados.


Não se contestando o carácter excepcional da Lei n.º 17/96, de 24 de Maio, permito-me chamar a atenção de V.ª Ex.ª para que a situação dos interessados, que louvavelmente apenas permaneciam em Portugal, em 1996, cumprindo a legalidade vigente, é agora muito menos tutelada do que a dos outros estrangeiros que nessa data permaneciam em Portugal sem título legal bastante.


Na verdade, sendo certo que os recorrentes não se encontravam, à data de entrada em vigor daquele diploma legal, em situação irregular, em sentido técnico, assim fugindo à letra da norma excepcional que definiu o âmbito da regularização extraordinária em apreço, parece indiscutível que a sua situação não estaria, à luz do regime legal então vigente, sobre permanência de estrangeiros no território nacional, tão eficazmente protegida como a que resultou para os chamados imigrantes irregulares por via da citada Lei 17/96.


Não sendo, realmente, os exponentes considerados imigrantes clandestinos nessa data, parece que uma interpretação da Lei que atente mais nos valores em presença e, principalmente, nas consequências da aplicação dessa mesma Lei em termos de coerência com o quadro de valores conformes ao ordenamento jurídico na sua globalidade, não pode deixar de conceder a casos como o presente, no mínimo, idêntica protecção que a citada Lei 17/96 conferiu a quem se encontrava em Portugal sem qualquer título bastante.


A seguir-se o entendimento sufragado por Vossa Excelência, poder-se-á divisar no universo de cidadãos estrangeiros presentes em Portugal à data de entrada em vigor da Lei 17/96, três grandes grupos, dois deles constituídos, num caso, pelos cidadãos titulares de autorização de residência, provisória ou definitiva, e, no outro caso, pelos cidadãos sem qualquer título habilitante. Para estes, o regime traçado pela regularização extraordinária confere, em traços gerais, uma equiparação aos primeiros, outorgando uma autorização provisória, por um ano, passível de conversão automática, ope legis, pela não produção de certos factos durante um período de 3 anos (cfr. art.º 15.º).


Há, assim, como que um amalgamento, no prazo de três anos, entre os componentes destes dois grupos, naturalmente que verificando-se os condicionalismos postulados na Lei 17/96.


O entendimento seguido por Vossa Excelência, que parece dar primazia ao elemento literal, cria um tertium genus, consistindo nos cidadãos estrangeiros que, beneficiando de títulos de natureza precária de vária ordem, não se podiam considerar, em sentido estrito, como estando em situação irregular, não beneficiando contudo da protecção do 1.º grupo e, seguindo-se esta posição, nunca podendo esperar a concessão de tal estatuto tal como foi outorgado aos que se encontravam nessa situação irregular.


Dir-se-ia, assim, que a ordem jurídica protege mais quem com ela não se compaginava, do que aqueles que se mantiveram sempre na esfera da legalidade.


De facto, com a solução preconizada nos termos que antecedem, os imigrantes abrangidos pelo mecanismo de regularização criado à luz da Lei n.º 17/96, de 24 de Maio, vieram a obter um resultado final consideravelmente mais satisfatório do que aqueles cidadãos estrangeiros que, afastados da aplicação de semelhante expediente por serem titulares, à data da sua entrada em vigor, de visto legal válido, uma vez findo o seu prazo de validade viram-se manifestamente em pior situação do que aqueles, num mecanismo interpretativo que premeia, em concreto, os estrangeiros que entraram em Portugal e que aqui permaneceram de forma irregular, castigando os que cumpriram com a Lei.


Trata-se de conclusão que não pode deixar de chocar o intérprete e aplicador da Lei. Decerto que a correcta interpretação dos preceitos legais não pode conduzir a resultados absurdos ou desconformes com a ordem jurídica na sua globalidade. Neste caso, recuso-me a acreditar que determinada norma, emanada da Assembleia da República, possa ter pretendido tratar de modo mais favorável quem se encontrava em situação ilícita, desprezando e desconsiderando totalmente a situação de quem adoptou conduta orientada pelo Direito vigente.


Uma interpretação conforme aos valores constitucionais, entre os quais os princípios da igualdade e da justiça, exige, para além deste enquadramento sistemático, que se atente, não tanto na letra, mas essencialmente na teleologia da norma, alcançando o seu verdadeiro teor. Creio que a ponderação do que atrás fica explicitado permite considerar, sem esforço, que não pode merecer aceitação uma interpretação da norma que conduz a resultados que contraditam a própria razão de ser da mesma norma.


Não colherá a invocação da natureza excepcional das normas em questão. Na verdade, mais do que recurso à analogia, creio que é possível, por interpretação declarativa lata ou porventura extensiva, na terminologia tradicional, considerar como verdadeiro âmbito da Lei 17/96 os cidadãos estrangeiros que residissem em Portugal sem título legal bastante a produzir os efeitos que a Lei em causa permitia, ou seja, sem qualquer estatuto legal ou com estatuto diminuído face àquele que se quis outorgar por aquele diploma e naquelas condições.


Não se nega que a estes cidadãos estava aberto, como aliás a qualquer estrangeiro, a obtenção de autorização de residência de acordo com as vias normais, estabelecidas actualmente no Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro. Contudo, a existência de um regime normal não é, em si mesma, critério para afastar a aplicação de um regime excepcional, muito menos quando aquele é mais eriçado de dificuldades do que este, e quando, claramente, se reconhece que há uma inversão inaceitável na valoração das situações de imigrantes legais e ilegais.


No limite, caricaturando, teria mais interesse o cidadão afectado em renunciar ao visto de que dispunha, assim, a seguir-se o entendimento cuja revisão aqui peço, podendo já beneficiar do regime mais favorável, outorgado pela Administração a quem nem esse mesmo visto tentou ou conseguiu obter.


Nestes termos, atendendo a tudo o que fica exposto, muito agradeço a Vossa Excelência que queira proceder ao reexame da posição anteriormente assumida, desejavelmente devendo passar a adoptar linha de conduta que considere como abrangidos pela Lei 17/96 aqueles imigrantes que, tecnicamente tendo título legal bastante para permanecerem em Portugal à data da sua entrada em vigor, estavam dotados de estatuto diminuído face àquele concedido pelo citado diploma.


Naturalmente que tal mudança de orientação deverá traduzir-se na reapreciação dos procedimentos ainda pendentes ou que ainda não estejam consolidados, como é o caso dos interessados cuja situação concreta deu azo à presente troca de correspondência.

Na expectativa do bom acolhimento de Vossa Excelência face ao teor do presente e aguardando a comunicação oportuna do entendimento que irá assumir quanto ao mesmo.