RECOMENDAÇÃO N.º 7/A/2004
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)














Entidade visada: Presidente do Instituto Português do Património Arquitectónico
Procº: R-2823/94

Data: 2004/04/28
Área: A1


Assunto: 
Cultura – Urbanismo – Imóveis classificados de interesse público – Zona de protecção – Desrespeito por ordens de demolição e reposição de obras clandestinas – Tolerância das autoridades administrativas


I – EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS


1. Em 16.10.1996, recomendara (1) o meu antecessor à Câmara Municipal de Guimarães que adoptasse as pertinentes medidas destinadas a restabelecer a legalidade urbanística e a protecção devida à Capela do Espírito Santo e ao Cruzeiro adjacente, sitos na freguesia de São Lourenço de Sande, classificados como imóveis de interesse público, pelo Decreto nº 516/71, de 22 de Novembro.


2. Isto, depois de ter concluído que a Câmara Municipal de Guimarães e o seu Presidente vinham tolerando a subsistência de várias edificações particulares na zona de protecção à Capela do Espírito Santo e ao Cruzeiro adjacente, encontrando-se reunidos os pressupostos que justificavam a demolição, como única medida idónea para reintegrar a legalidade infringida e salvaguardar o património cultural lesado. Com efeito, já a Câmara Municipal obtivera do Instituto Português do Património Arquitectónico (adiante designado por IPPAR), informação que apontava para a insusceptibilidade de tais edificações virem, pelo menos, na totalidade, a ser legalizadas.


3. Responsáveis da Provedoria de Justiça tinham-se deslocado a São Lourenço de Sande, em 12.04.1996, e ali confirmaram a existência de várias edificações unifamiliares, muros, anexos – um deles, para sauna e ginásio, outro, para aves de criação – e elementos decorativos, tais como gradeamentos e colunas na área de protecção, tendo depois sido verificado nos serviços municipais que alguns dos trabalhos tinham chegado a ser embargados, mas apenas formalmente.


4. Desde então, ou seja, há mais de oito anos, que a Provedoria de Justiça vem acompanhando sistematicamente todos os desenvolvimentos que o assunto conheceu e a intervenção que o IPPAR vem concedendo à sua resolução.


5. As primeiras informações obtidas na sequência da Recomendação, pareciam apontar para o acatamento, já que a Câmara Municipal determinara, em 11.12.1996, a demolição, entre outras, das construções executadas por A e B e estipulara um termo certo, sob pena de executar coercivamente e a expensas dos infractores as operações de demolição.


6. Porém, logo em 17.12.1996, transmitia a Câmara Municipal que o prazo transcorrera sem que as necessárias operações tivessem sido levadas a cabo pelos munícipes A e B. Os demais infractores, por seu turno, teriam executado a sua parte.


7. Por isso, fixara um novo termo para empreender e concluir as demolições – o de 20.01.1997 – sob cominação de posse administrativa do terreno para a execução coerciva das obras de demolição.


8. Entretanto, o Cruzeiro adjacente, também classificado, fora pintado com tinta de esmalte verde por autor desconhecido, o que não podia deixar de representar um dano significativo para o património.


9. Em 10.04.1997, verificaram os serviços municipais de fiscalização a execução, apenas parcial, dos trabalhos de demolição.


10. Nova informação foi prestada pela Câmara Municipal de Guimarães, em 18.09.1997, indicando que os infractores citados tinham dado início aos trabalhos de demolição, mas, como não houvessem cumprido integralmente o estipulado, aguardava-se informação do Departamento de Obras Municipais.


11. Depois disso, outras queixas foram apresentadas em relação a obras clandestinas na zona de protecção à Citânia de Sabroso, local próximo ao da zona de protecção à Capela do Espírito Santo.


12. A uma informação transmitida em 28.04.1998, pela Câmara Municipal de Guimarães, segundo a qual os trabalhos de demolição coerciva seriam iniciados em 19.05.1998, veio a suceder uma outra, rectificando a data para 19.06.1998.


13. Em 11.08.1998 esclarecia a Câmara Municipal não terem sido demolidos os acessos que desembocam no Largo da Confraria, e que o munícipe A instalara um portão em madeira no local onde fora executada a demolição. Por esse motivo, encontrava-se inviabilizada a execução de alguns trabalhos que tinham sido exigidos pelo IPPAR e pela Câmara Municipal de Guimarães, na reunião de 09.01.1996 com os infractores.


14. A Provedoria de Justiça desenvolveu, bem assim, várias diligências junto do IPPAR, a fim de conhecer o ponto da situação das obras cuja demolição fora recomendada por se encontrarem localizadas na zona de protecção da Capela e do Cruzeiro, de saber das medidas adoptadas para regularização das obras ilegais e das eventuais averiguações levadas a cabo perante a pintura com tinta de esmalte do Cruzeiro, já que se indiciava a prática de um crime de dano, qualificado por lesar património cultural classificado.


15. Interpelado o IPPAR, em 2.12.1998, muito pouco nos seria adiantado. Tomámos conhecimento, porém, do de um inventário – que solicitáramos fosse feito – descrevendo as demolições já cumpridas e o existente por demolir.


16. Como tal, soube-se que, em 15.10.1998, a Direcção Regional do IPPAR no Porto enviara uma representação ao local para aferir do cumprimento dos trabalhos definidos, a fim de prover pela salvaguarda do conjunto arquitectónico classificado, participando os elementos apurados à Câmara Municipal de Guimarães (2). Concluíra-se que permaneciam por executar os seguintes trabalhos cuja imposição fora decretada na sequência de reunião de 09.01.1996:







a. A:


(i) demolição do acesso que desemboca no largo e de um maciço da antena parabólica,
(ii) remoção da antena e do entulho da anterior demolição dos anexos e de muro de vedação;
(iii) reposição de um talude junto à estrema confinante com os terrenos da C;
(iv) plantação de cortina arbórea.


b. C:


(i) construção de um muro de vedação a sul;
(ii) arborização da faixa de terreno confinante com a propriedade de A;
(iii) tratamento paisagístico do aterro executado;
(iv) correcção no escadório.


17. Do mesmo passo, a Senhora Directora Regional do IPPAR formulava as considerações seguintes:







« …Face ao levantamento efectuado e à degradação e risco em que a área envolvente do Cruzeiro se encontra, considera-se da maior importância que a C construa o mais rapidamente possível o muro de vedação a Sul, retirando a vedação provisória e todos os restantes elementos aí colocados.


Caso não se torne possível pontualmente executar esse muro nos locais onde existe desnível acentuado deverá, nesta situação, aguardar-se que o Sr. A reponha o talude de terras na sua propriedade, colocando-se entretanto guarda provisória de precaução. Deverá simultaneamente efectuar-se plantação de espécies arbóreas na envolvente do cruzeiro e na zona posterior da capela onde foi reposto o talude de terra em falta».


18. Todavia, em 1999, o IPPAR reconhecia que a situação se mantinha basicamente inalterada, afirmando dever-se a não execução coerciva dos trabalhos, ao menos em parte, a condicionalismos de ordem construtiva.


19. Do mesmo passo, informava a Direcção Regional do IPPAR nada ter providenciado relativamente aos estragos causados no Cruzeiro por considerar que “face à gravidade das questões em análise e em processo de demolição, interessava repor a sua legalidade prioritariamente, embora privilegiando a atitude pedagógica.” Na mesma data solicitaria “a urgente intervenção da autarquia a fim de concluir este já longo processo” (3).


20. Inquirindo-se, de novo, a Câmara Municipal de Guimarães, viemos a saber, em 02.07.1999, encontrar-se em elaboração uma «planta relativa às cotas que o terreno terá de observar, por forma a que não haja dúvidas sobre o alcance da reposição, pois há inclusive zonas onde tal não será necessário, conforme se verificou no local, juntamente com os técnicos do IPPAR.”


21. Uma vez que se mostrava indiciada a prática de um crime contra o património cultural, previsto e punido como dano qualificado, participámos os factos conhecidos ao Ministério Público, em 29.06.2000. Todavia, o inquérito viria a ser arquivado por se considerarem não preenchidos os elementos típicos do crime de desobediência e por falta de indícios de crime de dano.


22. Em seguida, a Câmara Municipal levou a cabo várias acções de fiscalização, promoveu a audição, uma vez mais, dos proprietários e renovou as intimações para demolição, concedendo novas dilações para cumprimento voluntário. Tudo isto sem resultado útil.


23. Tanto quanto apurámos, as últimas intimações aos proprietários para demolição foram despachadas em 07.05.2003, sem que, na falta de cumprimento voluntário, se tenha a Câmara Municipal de Guimarães substituído aos faltosos na execução dos trabalhos necessários.


24. Se bem que a posição inicialmente assumida pela Câmara Municipal se revelasse favorável, o certo é que, até hoje, o problema não conheceu uma solução definitiva. Algumas construções chegaram a ser demolidas, é certo, mas boa parte subsistiria, com especial destaque para as da responsabilidade de A .


25. Da parte do IPPAR, em 27.01.2000, a situação era, no essencial, a mesma, informando-nos a Direcção Regional do Porto que, na sequência da reunião de 10.11.1999, com o arquitecto responsável pelo projecto de construção da habitação do Senhor A, aguardavam a apresentação do projecto de legalização daquela edificação. Do mesmo passo, admitiria o Senhor Director Regional do Porto desconhecerem aqueles serviços o estado do processo de reposição do terreno e a construção de muro de vedação (4).


26. A Provedoria de Justiça promoveu então uma reunião com os responsáveis da Direcção Regional do Porto (IPPAR), a qual teve lugar em 11.07.2000. Ao tempo, foi-nos contraposta a insuficiência de recursos técnicos e humanos do IPPAR para poder fazer mais.


27. A C que, entretanto, cumpriu as intimações para demolir algumas obras que executara em redor da Capela veio, em 11.04.2003, confirmar-nos que o Sr. A não cumprira a sua parte. Isto, porém, sem que a Câmara Municipal de Guimarães tenha usado de uma actuação firme que o decurso do tempo justificaria decerto.


28. Perante a passividade que as autoridades administrativas têm evidenciado – Câmara Municipal de Guimarães, mas também o IPPAR – estou em crer que os infractores acalentam boas razões para acreditarem na conservação de boa parte do que edificaram, com manifesto prejuízo do interesse público que, desde 1971, justifica a classificação da Capela e do Cruzeiro.


29. Ao invés, aqueles que se dispuseram voluntariamente a demolir, sentir-se-ão injustamente sacrificados e porventura tentados a ignorar a zona de protecção sempre que entendam introduzir novas benfeitorias nas edificações que possuem.


30. Tudo isto, apesar de rotundamente o IPPAR recusar qualquer viabilidade para a legalização das obras que o decurso do tempo, aliado à incúria das autoridades, vem consolidando.


31. Não será excessivo considerar que, no decorrer dos nove anos que leva a instrução deste processo, apenas a Provedoria de Justiça tem perseverado na procura de um desfecho positivo para a situação reconhecidamente gravosa.


32. Observa-se, de resto, que o centro histórico da cidade de Guimarães encontra-se classificado pela UNESCO como Património da Humanidade, o que acarreta especiais responsabilidades no domínio da protecção do património cultural.


33. Embora a Capela do Espírito Santo se encontre numa freguesia relativamente periférica – e longe da procura turística – nem por isso deixa de ser particularmente notada a indulgência concedida aos infractores.


34. A tolerância, sem causa legítima, do reiterado desrespeito de intimações para reposição desprestigia a autarquia e vem, também, debilitando, de forma significativa, a autoridade do IPPAR, embora deva reconhecer-se que a demolição – por estranha imprevisão legal (5) – só esteja ao alcance do presidente da Câmara Municipal.


35. Mas, ainda assim, não posso deixar de assinalar como pouco diligente a conduta assumida pelo IPPAR no presente caso, com inadequado exercício dos poderes que a lei lhe comete para adequada protecção dos imóveis de interesse cultural.


36. Poderia o IPPAR, tendo presente as suas especiais atribuições na defesa e valorização do património cultural ter redobrado esforços, lançando mão de todos os meios ao seu alcance para a prossecução daquela finalidade.


37. Ao invés, a Direcção Regional do IPPAR no Porto tem-se cingido a acompanhar a situação, com as informações que, casualmente, lhe são transmitidas pela Câmara Municipal, não reagindo, como seria de esperar, com empenho e determinação, perante a execução de obras que descaracterizam a envolvente do conjunto classificado e a manifesta indolência daquele órgão autárquico, na reintegração do interesse público lesado.


38. Assim, o interesse nacional – patente na classificação do imóvel e na atribuição ao IPPAR para zelar pela sua salvaguarda – fica subalternizado ao maior ou menor esforço municipal para o fazer respeitar perante os interesses particulares dos infractores.


39. Tem sido o Provedor de Justiça, ao fim e ao cabo, a entidade mais determinada a não deixar postergados os interesses patrimoniais lesados, sem que possa, no entanto, pela sua própria natureza, substituir-se às autoridades administrativas visadas.


40. Contemporizar por mais tempo com os infractores, tolerando a subsistência de construções ilegais e o não cumprimento de intimações de reposição, quando é certo que dispuseram os seus proprietários do tempo necessário para os regularizar, é inconveniente, é injusto para com os proprietários que providenciaram a obtenção das pertinentes licenças de construção e utilização e mostra-se claramente lesivo de bens que, pelo seu peculiar valor, integram o património cultural.


Atento o exposto, e no exercício dos poderes que me são conferidos pelo art. 20º, nº1, alínea a), da Lei nº 9 /91, de 9 Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), recomendo ao Instituto Português do Património Arquitectónico, presidido por V. Ex.a.,








que analise cuidadosamente esta situação, procure dela retirar as devidas ilações, e no âmbito das competências atribuídas pela Lei nº 107/2001, de 8 de Setembro e pelo Decreto-Lei nº 120/97, de 16 de Maio, acompanhe mais activamente junto da Câmara Municipal de Guimarães e do seu Presidente a execução das medidas de reintegração da legalidade acordadas desde 1996, de modo a proceder-se, por fim, ao saneamento dos graves prejuízos que lesam a Capela do Espírito Santo e o Cruzeiro, na freguesia de São Lourenço de Sande.


Aguardo que V. Ex.a., em cumprimento do dever consignado no nº 2 do art. 38º da Lei nº 9/91, de 9 de Abril se digne informar-me da sequência que o assunto vier a merecer-lhe.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues





 


Notas de rodapé:


(1) Anexo 1: cópia da Recomendação n.º 77/A/96, de 16 de Outubro.


(2) Anexo 2: cópia do ofício n.º 3816, de 28.10.1998.


(3) Anexo 3: cópia do ofício n.º 754, de 26.02.1999.


(4) Anexo 4: cópia do ofício n.º 339/2000/IPPAR-P, de 27.01.2000.


(5) Tanto na Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, como antes na Lei n.º 13/85, de 7 de Julho.



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