RECOMENDAÇÃO N.º 1/A/2004
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)














Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Lagoa
Procº: R-3186/02 (Aç)
Data: 2004/02/23
Assunto: Pizzaria……..; isolamento calorífico.
Área: Açores (A1)

I – INTRODUÇÃO


Em virtude do recebimento de queixa na Extensão dos Açores foi aberto um processo na Provedoria de Justiça cujo objecto era o funcionamento do estabelecimento Pizzaria…, sito na Rua…, no concelho de Lagoa. Em síntese, a reclamação resultava do facto de, no mês de Setembro de 2002, os fornos da pizzaria instalada no rés do chão do edifício em causa continuarem a gerar níveis de calor susceptíveis de causar incomodidade e de produzir danos na habitação sita no 1º andar, não obstante a circunstância de, no dia 5 de Novembro de 2001, ter sido realizada uma vistoria ao estabelecimento reclamado que concluiu no sentido de ser necessária a execução das obras indispensáveis para dotar o edifício das ‘condições adequadas de comportamento térmico e de exaustão de fumos e gases’ (vide ‘Auto de Vistoria da Comissão de Vistorias para a Concessão de Licença de Utilização dos Estabelecimentos de Bebidas e Restauração’, em anexo).


O problema preexistente – e cuja resolução pareceria pacífica e facilmente alcançável, mesmo porque a Comissão de Vistorias para a Concessão de Licença de Utilização dos Estabelecimentos de Bebidas e Restauração integrava uma arquitecta e um fiscal municipal, ambos nomeados pela Câmara Municipal de Lagoa – foi subsistindo muito para além de um prazo razoável, com consequências gravosas para a qualidade de vida e saúde do munícipe queixoso.



II – EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
§1. A instrução do processo

Em face da verificação de que o procedimento municipal tendente a verificar a existência da situação reclamada estava já concluído – tendo sido lavrado o auto de vistoria supra mencionado -, importava saber se: (1) fora cumprido o disposto no último parágrafo do mencionado relatório relativamente à fixação de um prazo de 30 dias para apresentação do projecto de técnico oficialmente habilitado; (2) em que data fora aquela exigência comunicada ao proprietário; (3) em que data fora aquela exigência cumprida pelo proprietário; (4) qual o estado do procedimento de execução das obras tendentes à criação das condições de laboração; (5) qual o prazo fixado para a conclusão dos trabalhos e (6) para quando se previa a realização de nova vistoria.


Antecipando a possibilidade de uma resposta negativa à primeira questão (se fora cumprido o disposto no último parágrafo do mencionado relatório), perguntou-se, também, que circunstâncias haviam impedido, até então, a cassação da licença e para quando se previa o encerramento do estabelecimento.


Finalmente e independentemente das respostas obtidas às questões anteriores, questionou-se a Câmara Municipal de Lagoa sobre os motivos que impediam que, cautelarmente, fosse impedida a continuação da utilização dos fornos, mesmo que se permitisse o prosseguimento da laboração do estabelecimento.


Todas estas questões foram colocadas pelo ofício nº 871, de 10.10.02, da Extensão dos Açores da Provedoria de Justiça.


Atente-se no teor da resposta prestada a coberto do ofício nº 6910, de 03.12.02, que a seguir se sintetiza:







– foi fixado um prazo de 30 dias para que o proprietário do estabelecimento apresentasse projecto de isolamento térmico e de exaustão de fumos e gases, presumindo-se que o prazo contou desde 20.02.02 (data do ofício da Câmara Municipal);


– o proprietário pediu prorrogação, por 60 dias;


– a Câmara Municipal concedeu a prorrogação pedida (presumindo-se que desde o dia 22.03.02, data do despacho do Vereador);


– em 13.06.02 deu entrada na Câmara o projecto de exaustão de fumos e gases o qual, aparentemente, foi indeferido – diz-se ‘aparentemente’ uma vez que no ofício diz-se que ‘foi emitido parecer do Gabinete Técnico [da] Autarquia (…) sugerindo…’ (sublinhado meu);


– por ofício de 27.09.02 foi dado conhecimento ao proprietário da Pizzaria do teor do parecer do Gabinete Técnico;


– em 05.11.02 o proprietário foi notificado para, em 20 dias, apresentar projecto de isolamento térmico e exaustão de fumos e gases, sob pena de a Câmara instaurar procedimento tendente a encerrar o estabelecimento.


Destaque-se que, em 05.11.02 – logo, exactamente 1 ano após a realização da vistoria – o proprietário foi notificado para, em 20 dias, apresentar projecto de isolamento térmico e exaustão de fumos e gases.


O total desrespeito pelos resultados alcançados na vistoria realizada em 05.11.01 é susceptível, por si só, de gerar um enorme descrédito sobre o funcionamento dos Serviços da Câmara Municipal de Lagoa e tal circunstância justificaria, mesmo sem mais, uma tomada de posição por parte do Provedor de Justiça, na medida em que a intervenção da Autarquia foi sempre feita em claro benefício de uma das ‘partes’ (o proprietário da pizzaria) e em prejuízo, não só do Munícipe reclamante como, e sobretudo, do interesse público.


Ademais, a atitude da Câmara Municipal de Lagoa relativamente às conclusões da vistoria não pode deixar de significar a absoluta irrelevância das intervenções futuras da Comissão, pondo em risco a ‘isenção’ que deveria resultar da natureza estritamente técnica daquele procedimento.


E, finalmente, a injustificada prorrogação dos prazos fixados é reveladora de uma evidente confusão entre ‘discricionariedade’ e ‘arbitrariedade’ na actuação administrativa sendo que, na situação que venho acompanhando, pareceu ter existido sempre a intenção de não sancionar as irregularidades que foram detectadas.


Por tudo isto, logo em 17.12.2002 (cf. ofício nº 2115) este órgão do Estado revelou estranheza pela afirmação de que “a razão porque não foi cautelarmente impedida a continuação da utilização dos fornos foi a de tratar-se de um estabelecimento de ‘Pizzaria’ o qual necessita dos fornos para a confecção das pizzas e porque o proprietário do estabelecimento em questão prontificou-se a solucionar o problema (…)” (cf. ofício nº 6910, da Câmara Municipal da Lagoa) e destacou que a circunstância de um determinado estabelecimento carecer de fornos para funcionar pareceria impor, não o funcionamento ilegal e em desrespeito pelas pertinentes normas do RGEU mas, diferentemente, que o proprietário cuidasse de assegurar as necessárias condições de laboração antes de abrir portas e, por outro lado, que o facto do proprietário ter-se prontificado a solucionar o problema não impediu que já tivesse decorrido mais de um ano desde a data da vistoria ao estabelecimento reclamado (05/11/2001), na sequência da qual foram lavradas no Auto de Vistoria da Comissão de Vistorias para a Concessão de Licença de Utilização dos Estabelecimentos de Bebidas e Restauração as conclusões sobre o respectivo funcionamento irregular. Ao mesmo tempo, alertou-se para o facto de a verificação da situação irregular não ter dado lugar à instauração de procedimento de contra-ordenação, a qual parecia configurar, naquele contexto, um poder vinculado, da Câmara Municipal.


Contudo, a estupefacção da Provedoria de Justiça não ficaria por aqui. Com efeito, a coberto do ofício nº 3838, de 15.07.03, dignou-se V.Ex.ª dar conta da circunstância de ter ‘concedido o prazo de 60 dias ao proprietário da pizzaria para proceder à execução das respectivas obras’ (de exaustão de gases e fumos, acrescente-se).


Ora, por força do princípio da proporcionalidade, estava vedada à Câmara Municipal da Lagoa a possibilidade de ser adoptada uma solução que apresentasse inconvenientes excessivos em relação às vantagens que comportava pelo que, a par dos interesses económicos do proprietário da pizzaria, haveria a Autarquia de atender, também, à situação do munícipe reclamante – o que, manifestamente, não foi feito.


O que a instrução do presente processo revelou foi, diferentemente, uma indesculpável vassalagem a um dos interesses em confronto em desfavor do outro.



§2. O isolamento térmico da edificação
como valor essencial de ordem pública

Quanto à matéria do isolamento térmico, afirmou V.Ex.ª – por remissão para um parecer jurídico, datado de 06.07.03 (logo, quase dois anos após a vistoria) – que por ‘não existir norma que legitime a intervenção da Câmara, nada haverá a decidir, podendo o interessado, se assim o entender, recorrer aos tribunais para aí fazer valer os seus direitos’, concluindo que ‘quanto ao isolamento térmico o RGEU não contém qualquer disposição que obrigue a dotar as edificações de qualquer grau de isolamento térmico relativamente às construções vizinhas’.


Perdoar-me-á V.Ex.ª que a presente Recomendação não aprofunde desnecessariamente este debate, limitando-se a lembrar que, como vem sendo defendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, quando as obras de reparação e conservação de um determinado prédio se prendem com valores essenciais públicos (v.g., a higiene, a salubridade, a habitabilidade), esses valores sociais fundamentais estão tutelados pelas normas de ordem pública vertidas no RGEU.


É neste contexto e com este sentido que devemos atender ao facto de o artigo 42º, do RGEU, integrado em capítulo relativo a ‘Pavimentos e coberturas’, dispor que as coberturas das edificações devem ser construídas com materiais ‘capazes de garantir o isolamento calorífico’.


Na verdade, decorre da redacção desta norma a minha completa discordância relativamente à parte do parecer que afirma que ‘a disposição do artigo 42º do RGEU (…) [diz] respeito à cobertura, ao tecto, das edificações e visa acautelar o isolamento da edificação relativamente aos agentes atmosféricos (calor, chuva, neve, granizo, etc.) que actuam do exterior’, uma vez que este entendimento parece ser demasiado restritivo (e interessar, unicamente, à posição do proprietário da Pizzaria) porquanto:







i. ele omite o facto de o artigo 42º incluir a conjunção coordenativa copulativa ‘e’ que liga os ‘materiais impermeáveis, resistentes ao fogo e à acção dos agentes atmosféricos’ (características necessárias dos elementos construtivos) à capacidade de ‘garantir o isolamento calorífico’ (fim da cobertura). Na verdade, o texto legal impõe que os materiais assegurem a impermeabilização, a resistência ao fogo e a resistência aos agentes atmosféricos (e não se refere apenas a estes, ao contrário do que é dito no parecer) mas acrescenta que [as coberturas das edificações serão construídas com materiais…] capazes de garantir o isolamento calorífico adequado ao fim a que se destina a habitação;


ii. a posição expendida no parecer radica na relevância do agente agressor (que é instrumental) e descura, em absoluto, o valor de ordem pública a acautelar (que é determinante). Acresce, ainda, que o parecer não refere que o artigo 42º também alude à resistência ao fogo que, naturalmente, não é um agente atmosférico;


iii. o que importaria não era saber se o artigo 42º dizia respeito ao tecto exterior da edificação mas, diferentemente, se dizia apenas respeito a essa cobertura exterior ou se respeitava a todas as coberturas, mesmo interiores. Na verdade, se em um edifício de andar único a cobertura relevante será o (único) cobrimento exterior da casa, já em edifícios construídos em altura as imposições devem estender-se às coberturas de cada piso (e ao correlativo pavimento de cada piso), afigurando-se ser totalmente desajustado, em termos de ordem pública, que a impermeabilização, a resistência ao fogo ou o isolamento calorífico adequado somente seja imposto relativamente às partes das edificações que contactam directamente com o exterior;


iv. aliás, o artigo 35º, que vem integrado no mesmo capítulo no RGEU, refere expressamente a defesa contra a propagação de ruídos e vibrações através dos pavimentos, sendo que não limita a competência municipal às ofensas que provenham do exterior da edificação (abarcando também, naturalmente, as produzidas no interior).


Resta acrescentar que o funcionamento de um forno junto a uma habitação sem o correspondente e necessário isolamento calorífico é susceptível de violar um valor essencial de ordem pública, na medida em que afecta, gravemente, as condições de salubridade [i.e.: qualidade ou estado de salubre (salubre: bom para a saúde; saudável; higiénico; sadio), condições favoráveis à saúde; higiene, como refere a 7ª edição do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora] do edifício contíguo.


Por tudo isto confesso que não compreendo o cisma em considerar que a Câmara Municipal de Lagoa é incompetente para lidar, definitivamente, com esta questão.



§3. Os direitos constitucionais ao ambiente e à habitação

Mas se dúvidas podem ser invocadas (ainda que eu não as tenha) relativamente à circunstância de o isolamento térmico ser, ou não, um valor essencial de ordem pública, entendo que não existe a mínima ambiguidade no que concerne o facto de esta matéria relevar em termos da denominada Constituição Ambiental.


De facto, é consabido que a Lei Fundamental (CRP), a par de consagrar que ‘todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado’ (artigo 66º, nº 1), prescreve que é também de todos ‘o dever de o defender’. A compaginação deste dever genérico com o princípio da procura do nível mais adequado de acção [artigo 3º, alínea f), da Lei nº 11/87, de 7 de Abril, ou Lei de Bases do Ambiente ou, simplesmente, LBA] vai significar, necessariamente, a incumbência prioritária de uma actuação disciplinadora por parte das entidades locais com competência para fiscalizar o uso e a ocupação das edificações. Por outro lado, o basilar princípio da prevenção [artigo 3º, alínea a), da LBA] igualmente impõe à Câmara Municipal de Lagoa a obrigação de actuar, antecipativamente, sobre a causa e desaconselha o mero encaminhamento para os meios judiciais.


Chamo a atenção de V.Ex.ª para o facto de o calor produzido pelo Homem ser, com toda a probabilidade, um dos componentes ambientais humanos que, nos termos do disposto no artigo 17º, nº 1, in fine, da LBA, deve ser objecto de medidas disciplinadoras com vista à obtenção de uma melhoria da qualidade de vida, na medida em que constitui um dos factores de poluição a que alude o artigo 21º do mesmo normativo.


Afirmar, como faz o parecer, que não está em causa o direito constitucional ao ambiente e acrescentar, também, que inexiste norma legal que permita a intervenção da Autarquia é pretender esquecer, desde logo, o disposto no artigo 66º da CRP que, enquanto direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias é, por força do disposto nos artigos 17º e 18º, directamente aplicável e vincula as entidades públicas e privadas. Na verdade, não só está aqui em causa o ambiente como, também, a promoção do bem-estar e da qualidade de vida, incumbências fundamentais das autarquias locais, nos termos do disposto no artigo 9º, alínea d), da CRP. E, já agora, conviria não esquecer a circunstância de o funcionamento dos fornos da pizzaria estar a pôr em crise um outro direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito à habitação condigna, adequada e em condições de higiene e conforto (artigo 65º, nº 1, da CRP).



III – CONCLUSÕES

Na decorrência do que deixei exposto impõe-se concluir que o funcionamento dos fornos do estabelecimento reclamado é susceptível de causar uma grave lesão do interesse público, por atingir os valores essenciais fundamentais que são a salubridade da habitação contígua e a saúde dos residentes no 1º andar (para além de, manifestamente, colidir com normas de direito ambiental).


Resta acrescentar que se me afigura dificilmente aceitável a existência, e o funcionamento normal, de uma pizzaria sem condições de isolamento térmico, exactamente como seria estranho que aquele estabelecimento não dispusesse de saneamento básico, de água ou de electricidade, uma vez que a verificar-se qualquer uma destas circunstâncias haveria colisão com o interesse público, na medida em que estariam afectados os valores básicos da saúde e da segurança.


IV – RECOMENDAÇÕES

Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, Recomendo a V.Ex.ª, Senhor Presidente da Câmara Municipal da Lagoa:







A. Que seja imposta ao proprietário da Pizzaria…….., sito na Rua………., no concelho de Lagoa, a realização dos trabalhos referidos no auto de vistoria da Comissão de Vistorias para a Concessão de Licença de Utilização para os Estabelecimentos de Bebidas e Restauração, de 05.11.01, por forma a dotar o estabelecimento das condições adequadas de comportamento térmico e de exaustão de fumos e gases;


B. Que, atento o período anormalmente longo já decorrido desde a realização da vistoria, o prazo a fixar seja improrrogável;


C. Que, decorrido o prazo mencionado em B.  sem que estejam executados os trabalhos, seja cassado o respectivo alvará.


Permito-me lembrar a V. Ex.ª a circunstância de a formulação da presente recomendação não dispensar, nos termos do disposto no artigo 38º, nºs 2 e 3, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, a comunicação a este órgão do Estado da posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues