RECOMENDAÇÃO N.º 2/B/04
(Artigo 20º, nº 1, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)



Entidade Visada:  Ministro da Educação
Processo:  R-3780/02
Data:  27-01-04 
Área: A4
Assunto:  Regulamentação do Decreto-Lei nº 515/99, de 24/11; Transição dos funcionários da carreira de cozinheiro; Omissão do dever de regulamentação; Direitos adquiridos.



1- Em diversas ocasiões, foram apresentadas na Provedoria de Justiça queixas provindas de funcionários pertencentes a carreiras e categorias profissionais do pessoal não docente dos estabelecimentos públicos de educação e ensino não superior, cujo objecto se centrava, directa ou reflexamente, na ausência das normas regulamentares a que alude o artigo 12º, nº3, do Dec-Lei nº 515/99, de 24/11, e, bem assim, na consequente inexecução normativa de alguns comandos legais que integram o mesmo articulado legal, maxime do regime de transição e reposicionamento indiciário do efectivo por este abrangido, situação que alegadamente se manteria inalterada volvidos que foram mais de quatro anos sobre a data da publicação do referido diploma.


2- A problemática suscitada mostra-se já do conhecimento de S.Exa o Secretário de Estado da Administração Educativa, o membro do Governo ao qual tive oportunidade de me dirigir no âmbito de um outro processo organizado e já resolvido neste Órgão do Estado sob o número R-842/00 (A4). Não obstante, e em face dos contornos específicos da abordagem que me proponho encetar, permita-me Vossa Excelência, Senhor Ministro, que proceda desde já a breve registo contextual das razões que dão causa à presente iniciativa.


3- Para o efeito, tenha-se presente que o Dec-Lei nº 515/99, de 24 de Novembro, diploma que estabeleceu o regime jurídico das carreiras e categorias do pessoal não docente em funções nos estabelecimentos públicos de educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário (artigo 1º), procedeu, entre outras matérias relevantes, à definição de novo enquadramento organizativo dos quadros deste pessoal (artigo 11º), bem como à revisão da estrutura e enquadramento indiciário próprio do universo de carreiras e categorias funcionais com denominação específica abrangidas pelo mesmo diploma, incluindo, no que aqui particularmente nos ocupa, a carreira de cozinheiro (v. artigos 28º e 37º).


4- Do mesmo passo, e em sede de disposições transitórias, cuidou de prever regras especiais de transição para os funcionários inseridos nesta última carreira profissional, e, em particular, dos titulares da categoria de ajudante de cozinha, estipulando o respectivo reposicionamento nos lugares da categoria de cozinheiro, a figurar no âmbito dos quadros regionais previstos no artigo 12º, nº3, do mencionado diploma – cfr. artigo 64º, nº1, cotejado com o artigo 65º, nº2.


5- Apesar do referido Dec-Lei nº 515/99 ter iniciado a sua vigência em 1/12/99 (artigo 73º) e, como tal, ter passado a integrar a ordem jurídica estabelecida a partir desta data, o certo é que a integração dos funcionários abrangidos pelo novo regime nas carreiras, categorias e índices resultantes das regras de transição não operava de forma directa e automática, estando a eficácia (retroactiva ou diferida) das alterações introduzidas sujeita a diferentes condicionantes de ordem formal ou temporal, conforme decorre do disposto nos artigos 70º e 71º deste diploma.


6- Debruçando-nos especificamente sobre o segmento do regime legal que aqui interessa assinalar, pode afirmar-se, com segurança, que a exequibilidade plena das normas de transição dos funcionários da reestruturada carreira de cozinheiro (artigo 65º, nº2) apenas poderia operar, nos termos mencionados do mesmo diploma, após a publicação da portaria conjunta que aprovasse os lugares dos quadros regionais do pessoal não docente a criar no âmbito das direcções regionais de educação, nos termos da mesma lei (artigos 12º e 16º), pelo que só então ocorreria a integração formal nas novas categorias, assim como o processamento do diferencial remuneratório resultante, no limite com efeitos retroagidos a 1/01/00.


7- Na verdade, decorre da conjugação dos preceitos constantes dos artigos 64º, nº1, 65º, nº2, 70º, nº1 e 12º, nº3, do invocado Dec-Lei nº 515/99 que a efectivação do direito à transição e reposicionamento salarial consagrado para os funcionários da carreira de cozinheiro carecia ainda de um acto mediador, ou seja, apresentava-se indissociavelmente ligada à emanação da regulamentação complementar prevista no artigo 12º, nº3, do citado diploma, a qual funcionaria como requisito de eficácia das normas de transição em causa.


8- Neste sentido apontavam as normas orientadoras vertidas na Circular Conjunta nº2/1999, de 6/12/99, emitida pela Direcção-Geral da Administração Educativa (DGAE) e o Gabinete de Gestão Financeira desse Ministério (pontos 5.2 e 5.2.3), cuja correcção se afigura indesmentível.


9- Apesar disso e do prazo fixado na referida disposição legal, a aludida portaria regulamentar não foi emitida durante o período de tempo até aqui decorrido.


10- Ora, nos casos que, em particular, me foram dados a conhecer, estava em causa a situação dos funcionários da carreira de cozinheiro, quer em efectividade de funções, quer ainda dos titulares da mesma carreira que reunindo as condições previstas à data da entrada em vigor do Dec-Lei nº 515/99, transitaram entretanto para a situação de aposentados, os quais, em qualquer das circunstâncias, e na falta da referida regulamentação, se vêm agora privados de beneficiar das vantagens decorrentes das normas de transição e revalorização salarial aí estabelecidas, apesar das garantias de salvaguarda especialmente assinaladas para o pessoal não docente que se aposentou até 31/12/00 (cfr. artigo 71º, nº5).


11- Instada, numa primeira ocasião, a esclarecer a matéria questionada, a DGAE fez apelo à regulamentação dos quadros regionais do pessoal não docente em falta como instrumento jurídico necessário para executar a transição dos funcionários da carreira de cozinheiro e os efeitos remuneratórios decorrentes.


12- Mais recentemente e no quadro de apreciação de um outro processo organizado nestes Serviços a propósito de idêntica questão (R-842/00), veio o Senhor Secretário de Estado da Administração Educativa transmitir-me, a coberto do ofício nº 4423, de 5/06/03, a intenção de reavaliar as opções contempladas no regime jurídico aprovado pelo Dec-Lei nº 515/99, filiada na necessidade de ajustar as soluções previstas com os objectivos prosseguidos no âmbito da política de educação e da gestão dos recursos humanos disponíveis pelo sistema educativo, tendo-me sido adiantado que estaria em preparação novo diploma legal enquadrador desta matéria cujo anteprojecto se encontrava já em fase de finalização.


13- Não cabendo ao Provedor de Justiça pronunciar-se sobre os critérios de oportunidade política invocados ou questionar a liberdade de conformação legislativa de que dispõe a Administração na ponderação das alterações estatutárias anunciadas, haverá ainda assim algumas preocupações adicionais que entendo dever partilhar com Vossa Excelência a propósito deste assunto.


14- Em primeiro lugar, e na esteira das considerações que em anterior processo tive a oportunidade de dirigir a S.Exa o Secretário de Estado da Administração Educativa afigura-se-me evidente que a actuação desse Ministério, assim como dos demais departamentos ministeriais envolvidos na feitura do diploma (Ministério das Finanças), ao omitir a aprovação das normas regulamentares legalmente exigidas, incorre em incumprimento do dever de regulamentação a que se encontrava obrigado, incompatível, como tal, com a necessidade de conferir operatividade ao regime legal de transição em causa. Permito-me recordar que nos termos do artigo 199º, alínea c), da Constituição, compete ao Governo assegurar a feitura dos regulamentos necessários à boa execução das leis, e, neste domínio, se inscreve a obrigatoriedade de edição dos chamados regulamentos complementares ou de execução, classificação na qual se subsume o caso suscitado.


15- Nesta perspectiva e a despeito da complexidade e abrangência do processo de constituição dos quadros regionais em presença, não posso deixar de manifestar a minha reprovação por não ter sido adoptado o regulamento reclamado, quando é certo que o problema já se arrasta há alguns anos sem desfecho assinalável.


16- Noutro plano, entendo também que as eventuais modificações estatutárias a introduzir na ordem jurídica pelo novo diploma não podem, de modo algum, justificar a limitação ou ablação do direito à revalorização funcional e salarial consagrado para o pessoal não docente nas disposições transitórias do Dec-Lei nº 515/99.


17- Se é certo que a situação jurídica do funcionários públicos em geral, no que diz respeito ao seu âmbito estatutário, é livremente alterável pela lei nova, estando na disponibilidade do legislador proceder, a todo o tempo, à sua modificação nos termos que entenda mais convenientes (v. a este respeito, Marcelo Caetano, in Manual de Direito Administrativo, Vol II, pág 754), é, todavia, princípio geral do nosso ordenamento jurídico que tal liberdade conformadora tem como limite vinculativo o respeito pelos direitos já anteriormente adquiridos ou definitivamente subjectivados na esfera jurídica individual dos seus destinatários, como também das situações de facto materialmente consolidadas – v. neste sentido o Acórdão do STA de 4/07/95 – Procº 27050 –, atentos os postulados constitucionais da segurança jurídica e da tutela da confiança ínsitos no princípio do Estado de direito democrático – cfr. artigo 2º da mesma Constituição.


18- Dito de outro modo, a amplitude da anunciada alteração legislativa em caso algum deve assumir conteúdo retrocedente relativamente às soluções normativas anteriormente consagradas, ou seja: redundar em diminuição das expectativas de revalorização funcional e salarial alcançadas pelos funcionários visados no âmbito do diploma legal ainda em vigor.


19- Vale isto para considerar que, na situação que nos ocupa, o regime jurídico consignado no Dec-Lei nº 515/99, de 24/11, particularmente em matéria de transição dos funcionários da carreira de cozinheiro, reúne, por si só, suficiente densidade normativa e não necessita de ulterior concretização, gozando, desde logo, de certeza jurídica na sua aplicação individual. E isto porque permite aos respectivos destinatários conhecer, com precisão e segurança, o alcance das normas em questão, no que concerne à determinação do posicionamento concreto que lhes caberia na categoria e escalão da nova estrutura da respectiva carreira.


20- De tal modo que a ulterior regulamentação dos quadros regionais em falta nunca poderia interferir na concreta configuração deste direito, ou na respectiva eficácia temporal (v. artigo 70º do Dec-Lei nº 515/99), sequer determinar limitações à densidade dos efectivos abrangidos pelas referidas regras de transição.


21- Inclino-me, por isso, Senhor Ministro, a reconhecer na posição jurídica subjectiva alcançada pelos funcionários da carreira de cozinheiro abrangidos pelas normas de transição contidas no Dec-Lei nº 515/99, de 24/11, ainda em vigor, um direito adquirido ou, pelo menos, uma expectativa juridicamente tutelável relativamente à efectivação do respectivo reposicionamento nas novas carreiras, categorias ou índices, nos termos aí consignados.


22- De resto, observo que a omissão da regulamentação aludida pode ainda legitimar eventual reacção dos seus destinatários pela via judicial adequada, através do pedido de verificação de ilegalidade por omissão e, em cumulação ou não, a condenação da Administração à reparação do prejuízos eventualmente causados (efectivação de responsabilidade civil extracontratual) – v. neste sentido João Caupers in “Um dever de regulamentar”– Cadernos de Ciência e Legislação nº 18, de Março de 1997 e os artigos 2º, nºs 1 e 2, 46º, nº2, alínea d), 47º, nºs 1 e 2 e 77º, nº1, todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei nº 15/2002, de 22/02, com as alterações introduzidas pela Lei nº 4-A/2003, de 19/02.


23- Pelos motivos atrás adiantados e tendo em conta a eventual revisão do regime jurídico contido no Dec-Lei nº 515/99, de 24/11, não me parece de todo desajustado, antes recomendável, que a bem da justiça, da protecção da confiança e da boa-fé que devem nortear a actuação do Estado perante os cidadãos, seja assegurada, no âmbito da nova disciplina legal, a concretização da tutela dos direitos e interesses visados pelos titulares da carreira de cozinheiro, entre outros, em grau idêntico ao alcançado pelos respectivos destinatários no quadro legal vigente, assim se colmatando a injusta situação de impasse aqui denunciada.


Em face de tudo quanto precede, e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº1, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abri, RECOMENDO a Vossa Excelência, Senhor Ministro, que,







à luz das considerações de direito e de justiça enunciadas, e prevalecendo-se eventualmente da revisão legislativa em curso, sejam promovidas as medidas legislativas e/ou regulamentares que permitam superar a situação de omissão normativa verificada, no que tange à exequibilidade das situações jurídicas abrangidas pelo regime de transição consignado nos artigos 64º a 71º do Dec-Lei nº 515/99, de 24/11, especialmente dos funcionários da carreira de cozinheiro a que se refere o artigo 65º, nº2, do mesmo diploma, por forma a que fique salvaguardada a sua efectiva tutela, nomeadamente o respectivo reposicionamento funcional e/ou remuneratório, nos exactos termos e com os efeitos anunciados na legislação ainda vigente.


Permito-me lembrar a Vossa Excelência a circunstância de a formulação da presente recomendação não dispensar, nos termos do disposto no artigo 38º, nºs 2 e 3, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, a comunicação a este Órgão do Estado da posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues