RECOMENDAÇÃO N.º 8/B/04
(Artigo 20º, nº 1, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)



Entidade visada:
Ministra da Justiça
Procº: R-3469/03 e R-996/04
Data: 2004/06/17
Assunto: Código das Custas Judiciais – Prazo de validade dos cheques. Decreto n.º 12 487, de 14 de Outubro de 1926 – Prazo de reclamação de objectos e quantias em dinheiro apreendidos no âmbito de processos criminais.
Área: A6


 
I) Prazo de validade dos cheques no âmbito do Código das Custas Judiciais:


O art.º 142.º do Código das Custas Judiciais, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, com as alterações deste resultantes, refere, no respectivo n.º 1, que “perdem a validade a favor do Cofre Geral dos Tribunais os cheques que não forem apresentados a pagamento até ao último dia do 3.º mês seguinte àquele em que foram passados”.


Sendo certo que a mais recente alteração ao Código das Custas Judiciais, precisamente operada por via da aprovação do citado Decreto-Lei n.º 324/2003, permitiu, por um lado, o aumento em um mês do prazo em questão (correndo, no entanto, ao contrário do que acontecia anteriormente, durante as férias judiciais) e, por outro, a consagração, no n.º 3 do mesmo art.º 142.º, da possibilidade de pagamento dos montantes titulados por cheques com o prazo de validade já expirado, para além dos casos de erro imputável aos serviços judiciários, a verdade é que o regime constante do art.º 142.º do Código das Custas Judiciais necessitará ainda, em meu entender, de uma intervenção do legislador, no sentido e pelas razões que a seguir deixo enunciados.


Assim, tendo presente a possibilidade de o prazo estabelecido no art.º 142.º, n.º 1, do Código das Custas Judiciais vir a ser interpretado, o que sempre chocaria, no sentido de traduzir o prazo de prescrição das obrigações subjacentes à emissão dos cheques, seria de todo conveniente que viesse a ser clarificado, na lei, que a regulamentação – que não se põe em causa – do pagamento das obrigações através de cheque, não altera as regras relativas aos prazos de prescrição de cada uma das obrigações que motivaram a respectiva emissão.


Reporto-me a duas situações bem definidas que foram trazidas ao meu conhecimento, uma das quais respeitando à devolução de taxa de justiça (em processo sumário que se iniciou cerca de dois anos antes da emissão do cheque), a outra significando o pagamento de perícia realizada no âmbito de um outro processo.


Parece-me adequado que o Estado não estabeleça prazos de prescrição mais curtos do que aqueles que vigoram para o caso em que é credor, isto no caso da taxa de justiça, ou diversos dos que vigoram para a generalidade das dívidas decorrentes da prestação de serviços, tudo isto meramente em função do meio de pagamento utilizado.


Deste modo, seria assim justo que a legislação em apreço expressamente admitisse o pagamento, pelo Estado, das quantias em causa durante todo o período correspondente aos prazos de prescrição das obrigações que levaram à emissão do cheque, já decorrentes das normas gerais que determinam o prazo de prescrição de cada uma delas.


Naturalmente que compreendo e aceito o estabelecimento de regras específicas que previnam a circulação, por largo período de tempo, de determinado título, nada tendo a obstar que, de acordo com critérios hábeis de gestão, nos termos actualmente preceituados na lei ou noutros, o cumprimento dessas obrigações através de cheque obrigue à sua apresentação em tempo curto, sob pena de necessidade de emissão de novo título.


Para o efeito, e mantendo-se o estabelecimento de um prazo de validade do cheque, poderia ser determinada a necessidade da sua substituição, ultrapassado esse prazo sem que tenha sido apresentado a pagamento, por outro cheque, ou mesmo o pagamento das quantias em causa através de um meio alternativo ao cheque, a pedido e, se for o caso, a expensas do beneficiário.


O que me parece não poder suceder é invocar o Estado o prazo inscrito no art.º 142.º, n.º 1, do Código em referência, para se eximir, como parece suceder actualmente, ao cumprimento de uma obrigação que sabe existir, ou levar a que, no prazo de prescrição da obrigação que desencadeou a emissão do cheque– se se entender que aquele subsiste –, tenha o interessado de recorrer aos meios judiciais para fazer valer os seus direitos.


Deste modo, ao abrigo do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, recomendo a Vossa Excelência:








A) a clarificação, na lei, de que a regulamentação da utilização do cheque como meio de pagamento, pelo Estado, de obrigações no âmbito do Código das Custas Judiciais, concretizada no seu art.º 142.º, não altera as regras relativas aos prazos de prescrição de cada uma das obrigações subjacentes à respectiva emissão, admitindo-se expressamente o pagamento, pelo Estado, das quantias em causa durante todo o período correspondente aos prazos de prescrição das obrigações que levaram à emissão dos cheques, constantes das normas gerais que determinam o prazo de prescrição de cada uma delas.




II) Prazo de reclamação, pelas partes, dos objectos e quantias em dinheiro apreendidos no âmbito de processos criminais:


O art.º 14.º do Decreto n.º 12 487, de 14 de Outubro de 1926, prescreve, por seu turno, no respectivo §1.º, o prazo de três meses após o trânsito em julgado das decisões finais, para a reclamação, pelas partes, dos objectos e quantias em dinheiro que se encontrem apreendidos no âmbito dos processos judiciais a que se reporta o preceito, isto é, dos processos criminais.


Encontrando-se, à partida, em vigor, na parte para aqui relevante, tal normativo – que, pelo menos nessa parte, tem vindo a ser aplicado pelos Tribunais, pronunciando-se a jurisprudência dominante no sentido da sua actual vigência (1) –, entendo que seria conveniente, também nesta sede, uma intervenção do legislador, no sentido que a seguir fica expresso.


Antes de mais, estamos neste caso perante uma verdadeira prescrição aquisitiva a favor do Estado, concretizada num prazo que se revela manifestamente pequeno, mais a mais quando se enquadra a questão no panorama global da morosidade que afecta a Justiça. De facto, não parece razoável que, às vezes após longos anos de espera por uma decisão final, seja imposto às partes um prazo tão curto para a reclamação de bens de cuja propriedade são titulares.


Por outro lado, recorda-se que pelo menos parte da jurisprudência considera que o decurso do prazo de três meses sem que tenham sido reclamados pela seu titular o objecto ou quantia em dinheiro, apenas faz presumir legalmente o abandono do respectivo direito de propriedade, podendo essa presunção ser ilidida, pelo proprietário dos bens, designadamente durante o prazo estabelecido na lei geral para a aquisição por usucapião.


Conforme se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Secção Criminal, de 2 de Março de 2000 (2), com referência ao preceito de que nos ocupamos, “estão em causa apenas os objectos que, tendo sido apreendidos no âmbito do processo, não devam ser declarados perdidos a favor do Estado, nos termos dos arts. 109.º e ss do CP. Com aquela norma pretendeu o legislador evitar ou reduzir as despesas decorrentes do depósito de objectos durante longo tempo e permitir o arquivamento dos processos em que existissem bens apreendidos em tais condições. Dessa forma evitam-se situações de inacção e de não afirmação do direito de propriedade pelo seu titular. (…) Mas num Estado de Direito uma norma como aquela não pode ser interpretada no sentido de conferir ao Estado um verdadeiro direito de confisco sobre os bens apreendidos. Sob pena de violação das garantias constitucionais (art. 62.º da CRP), o direito de propriedade sobre tais bens, que não serviram nem estavam destinados a servir à prática de qualquer crime, só poderá ser considerado transferido para o Estado quando, nos termos da lei geral, se puder dizer que eles foram abandonados pelo titular do respectivo direito, ou que ocorreu a aquisição do Estado com base na ocupação, usucapião ou qualquer outra forma de aquisição originária do direito (cfr. art. 1316.º do CC)”.


Acrescenta-se naquele mesmo aresto: “Como se referiu, com ela (a norma aqui em causa) pretendeu-se evitar situações duradoiras de inacção e de não afirmação do direito de propriedade pelo seu titular que, a maior parte das vezes, revelam intenção de abandono da sua parte. (…) Com a declaração de prescrição a favor da Fazenda Pública, decorridos que sejam três meses após o trânsito em julgado da decisão final, apenas se presume legalmente o abandono do respectivo direito de propriedade, presunção essa que pode ser ilidida por prova em contrário – art. 350.º n.º 2 do CC”.


Citando depois um outro Acórdão seu, adianta o referido Tribunal que “antes de consumada a usucapião poderá o interessado exercer o seu direito contra o Estado ilidindo a presunção de abandono, mediante a acção de reivindicação (arts. 1311.º e 1331.º do C.C.) ou acção de enriquecimento sem causa (arts. 473.º e ss do mesmo código), conforme ao caso couber”. (…) Esta solução “atende a todos os interesses em jogo: o Estado desonera-se do depósito e conservação dos bens e realiza logo uma receita, praticamente definitiva na maioria dos casos e o titular do direito não sofre, desde logo e sem remédio, a perda do seu direito”.


Ora, para além de ser útil a clarificação legal de qual das duas soluções é a correcta, desde já se fazendo apelo a uma opção mais amiga da Constituição, parece também razoável que se dispense, em situação que na maioria das vezes não é litigiosa, o recurso ao meio jurisdicional de composição de conflitos, já tão assoberbado com aquilo que é sua reserva para se ter que ocupar com aquilo que em geral é pacífico.


Face ao que acima fica dito, seria conveniente uma alteração da regulamentação do regime de reclamação de bens aqui em discussão, estabelecendo-se claramente a aplicabilidade dos prazos de prescrição actualmente consignados na lei, permitindo a reclamação dos mesmos – ou do produto da venda, pelo Estado, de eventuais bens deterioráveis, ao abrigo de norma expressa que o possibilite.


Deste modo, num primeiro nível importaria terminar com a vigência de uma norma avulsa de 1926, em diploma que no remanescente foi revogado pelo Código de Processo Penal de 1929, integrando-o nas disposições, processuais ou substantivas, que na actualidade merecem por parte dos operadores jurídicos e do público em geral um maior e mais facilitado conhecimento.


Mantendo-se o prazo actualmente consagrado na lei, ou alargando-o, para a reclamação dos bens junto do Tribunal onde correu termos o processo, findo o qual poderia o processo judicial ser arquivado, revela-se da maior justiça o estabelecimento, na lei, de um mecanismo administrativo que viabilize uma posterior devolução dos bens em causa, da responsabilidade da entidade administrativa a favor da qual os bens reverteram, precisamente durante o período correspondente ao prazo consignado na lei geral para a aquisição por usucapião da coisa em causa.


Tomando em consideração a jurisprudência acima citada, tal medida obviaria ainda ao recurso desnecessário aos Tribunais por parte dos particulares proprietários desses bens, designadamente para a ilisão da presunção de abandono da titularidade da propriedade dos bens, através de acções de reivindicação da propriedade ou de enriquecimento sem causa.


Naturalmente que o procedimento acima sugerido implicaria sempre a consulta, por parte daquela entidade administrativa, tendo em vista a satisfação do pedido em causa, do processo no âmbito do qual os bens foram apreendidos.


Noto também que, o caso de outros bens que não quantias em dinheiro, será admissível o estabelecimento de um esquema compensatório, quer do Estado, pelos gastos com armazenagem ou conservação, quer do particular (e pense-se no caso dos veículos, utilizados entretanto por entidades públicas, nos termos do regime já existente).


Assim sendo, ao abrigo do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, recomendo a Vossa Excelência:








B) a consagração legal da possibilidade de os objectos e quantias apreendidos nos processos criminais – ou o produto de eventuais bens deterioráveis entretanto vendidos pelo Estado, ao abrigo de norma expressa que o possibilite – poderem ser reclamados, pelos respectivos proprietários, após o prazo de reclamação junto do Tribunal onde correu termos o processo, actualmente consagrado no art.º 14.º, §1.º, do Decreto n.º 12 487, de 14 de Outubro de 1926 (ou outro que se entenda mais conveniente), através de requerimento a apresentar à entidade administrativa a favor da qual aqueles vieram a reverter, no prazo consignado na lei geral para a aquisição por usucapião do tipo de bens em causa.



Na expectativa de que as recomendações acima formuladas venham a merecer o acolhimento que me parece desejável, aguardo naturalmente pela posição que o Governo venha a tomar sobre as mesmas.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 


 


Notas de rodapé:

(1) Cf., por exemplo, Acórdão da Relação de Évora, Secção Criminal, de 8 de Outubro de 1996, publicado na Colectânea de Jurisprudência, 1996, Tomo IV, pp. 300 e 301.
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(2) Publicado na Colectânea de Jurisprudência, 2000, Tomo II, pp. 137 e 138.
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