RECOMENDAÇÃO N.º 7/B/04
(Artigo 20º, nº 1, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)














Entidade visada: Ministra da Justiça
Procº: R-2579/03
Data: 2004/04/12
Assunto: Código das Expropriações. Cálculo da indemnização por expropriação. Dedução do Imposto Municipal sobre Imóveis.
Área: A6


1. O art.º 23.º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, que se refere ao conteúdo da indemnização devida no âmbito dos processos de expropriação, estabelece, no respectivo n.º 4, que “ao valor dos bens calculado por aplicação dos critérios referenciais fixados nos artigos 26.º e seguintes, será deduzido o valor correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de imposto municipal sobre imóveis e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação, nos últimos cinco anos” – cf. igualmente art.º 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, que aprovou designadamente o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI).


Segundo o estabelecido no referido preceito do Código das Expropriações, será deduzida, à quantia apurada a título de indemnização no âmbito de um processo de expropriação, o montante correspondente à diferença, se existente, entre o valor do imposto municipal sobre imóveis devido após a avaliação feita ao imóvel para efeitos precisamente daquela expropriação, e aquele que foi pago, pelo contribuinte – até 30 de Novembro de 2003, como contribuição autárquica –, nos cinco anos anteriores, com base designadamente no valor patrimonial tributável do imóvel constante da respectiva matriz.


Duas considerações desde logo se impõem relativamente ao conteúdo do referido preceito do Código das Expropriações.


2. Em primeiro lugar, a dedução de que falamos – não se verifica aqui uma liquidação, já que o valor em causa é pura e simplesmente subtraído ao montante apurado a título de indemnização, não beneficiando das garantias e demais regime próprio do imposto – é feita, nos termos do preceito do Código das Expropriações supra identificado, relativamente aos cinco anos anteriores, período que ultrapassa o prazo geral de caducidade do direito à liquidação dos tributos, incluindo o referente às liquidações adicionais, de quatro anos, previsto no art.º 45.º da Lei Geral Tributária, e para o qual remete o regime que estabeleceu o imposto municipal sobre imóveis (cf. art.º 116.º, n.º 1, do Código), e já anteriormente o Código da Contribuição Autárquica, no respectivo art.º 21.º, n.º 1.


Assim sendo, a solução prevista no art.º 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações, manifestamente permitindo alguma poupança do Estado nos processos de expropriação, utiliza um mecanismo de dedução de parte do valor de um imposto nos montantes devidos a título de indemnização que não respeita os princípios e normas do sistema fiscal, no qual aquele mesmo imposto está enquadrado. Em bom rigor, pelo menos uma anuidade do imposto em causa nunca poderia ser liquidada ao abrigo das normas da lei tributária em vigor.


3. Em segundo lugar, não me parece adequado o referido mecanismo de dedução, à quantia indemnizatória, do valor adicional do imposto, tal como resulta da norma em discussão, pelas razões que passo a expor.


Antes de mais, pode a administração fiscal, ao abrigo designadamente do disposto no art.º 115.º do CIMI (antes, através do art.º 20.º do Código da Contribuição Autárquica), proceder à revisão oficiosa da liquidação – reportada, conforme referido, aos quatro anos anteriores, já que o prazo de caducidade do direito à liquidação adicional é, nos termos do já referido art.º 116.º, n.º 1, do CIMI, o mesmo – designadamente em resultado de nova avaliação feita ao imóvel [(n.º 1, alínea b)].


Assim sendo, não me parece correcto o estabelecimento de um meio específico tendo em vista aquele mesmo resultado – com a variante de, de forma desviante face à lei tributária, permitir a cobrança de mais uma anuidade do imposto – , apenas aplicável aos processos de expropriação no âmbito dos quais venha a apurar-se, após avaliação feita ao imóvel para o efeito, uma divergência entre o valor patrimonial do imóvel constante da matriz e o resultante da avaliação então feita.


Deste modo, não faz sentido a existência do meio específico consignado no art.º 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações, tendo em atenção que a administração fiscal, naturalmente informada do resultado da avaliação feita ao imóvel para efeitos de expropriação, poderá alcançar aquele mesmo resultado através do referido mecanismo da revisão oficiosa das liquidações, já consagrado na lei tributária.


Mais ainda, não derrogando o mecanismo legal aqui em causa as disposições fiscais pertinentes, sempre se poderá afirmar que nada obsta a que, penalizado o particular no montante da indemnização, venha de seguida a ver liquidado o imposto devido nos 4 anos anteriores, assim arcando duas vezes com o esforço pecuniário em singelo exigido aos demais contribuintes.


4. Por outro lado, a solução do Código das Expropriações aqui em análise promove uma diferenciação ilegítima entre, por um lado, a situação dos proprietários (ou usufrutuários) dos prédios objecto de expropriação litigiosa e, por outro, a dos proprietários dos prédios objecto de contratos de compra e venda ou mesmo de soluções negociadas no âmbito dos processos de expropriação, em clara violação do princípio da igualdade, consignado no art.º 13.º da Constituição da República.


É que a dedução imposta à quantia indemnizatória pelo art.º 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações nunca ocorreria – enquanto tal, isto é, enquanto dedução pura e simples ao preço ou indemnização a receber pelo proprietário – se o mesmo prédio fosse objecto de uma compra e venda e, em termos práticos, no caso de uma aquisição do prédio, por via amigável, pela entidade expropriante, ou até de uma expropriação amigável. Isto é, não obstante nestas últimas situações poder registar-se – se a administração fiscal vier a fazê-lo – uma liquidação adicional do imposto, com base no novo valor patrimonial apurado, ao abrigo designadamente do já mencionado art.º 115.º do CIMI, na primeira situação, abrangida pela regra do Código das Expropriações de que falamos, a dedução desse valor é sempre feita e concretizada na data da entrega da quantia indemnizatória.


5. Nesta perspectiva, entendo que o valor da indemnização apurado após a dedução do valor do imposto municipal sobre imóveis nos termos aqui em análise não corresponderá à justa indemnização imposta pela Constituição no seu art.º 62.º, n.º 2, e concretizada no art.º 23.º, n.º 1, do Código das Expropriações, onde se pode ler que a justa indemnização visa “ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal, à data da publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data” (sublinhado meu).


Conforme se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 52/90, de 7 de Março (1), “seja, porém, qual for a noção mais rigorosa de expropriação, o certo é que ela só pode ser efectuada mediante o pagamento de uma indemnização que a nossa Lei Fundamental quer “justa”, mas sem que nesta Lei se estabeleçam os critérios concretos que permitam realizar tal conceito indemnizatório. (…) O legislador constitucional deixou, por isso, para o legislador ordinário a definição de tais critérios, os quais sempre terão de respeitar, não só na sua formulação como na sua concretização, os princípios materiais da Constituição, designadamente o princípio da igualdade e da proporcionalidade”.


Mais à frente, citando-se Alves Correia, pode ler-se: “Acresce que, como a expropriação se traduz num acto unilateral do Estado, tem de ser suportado pelo particular proprietário do bem a expropriar, em regra em função do interesse público que subjaz à expropriação, tal acto coloca o expropriado numa situação de desigualdade perante os outros cidadãos (…). (…) Daí que “os (…) sistemas de limitação da indemnização violam um princípio que consideramos fundamental nas relações entre os particulares e os poderes públicos e indissociável do próprio Estado de Direito que é o “princípio de igualdade perante os encargos públicos”.” (…) Esta igualdade de contributos só ficará garantida se a generalidade das expropriações se fizer por forma a que as indemnizações atribuídas a final assegurem, em relação a cada caso concreto e tendo em atenção as respectivas circunstâncias específicas, a adequada reconstituição da lesão patrimonial infligida ao proprietário (sublinhados meus).


Num outro Acórdão, com o n.º 184/92 (2), refere o Tribunal Constitucional que “a Constituição, impondo que a indemnização a pagar ao expropriado seja justa, exige que o legislador ordinário defina um critério de determinação do quantum indemnizatório capaz de realizar o princípio da igualdade dos expropriados entre si e destes com os não expropriados. (…) Este desiderato de justiça alcança-se, seguramente, quando o legislador opta pelo critério do valor do mercado do bem expropriado. Num tal caso, com efeito, como sublinha Fernando Alves Correia, “a indemnização (…) está em melhores condições de compensar integralmente o sacrifício patrimonial do expropriado e de garantir que este, em comparação com outros cidadãos não expropriados, não seja tratado de modo desigual e injusto” (…). Outros critérios (para além do valor do mercado) são, no entanto, possíveis. Questão é que eles realizem os princípios de justiça, de igualdade e de proporcionalidade que a indemnização tem de cumprir” (sublinhado meu).


Acrescenta o Tribunal Constitucional, no mesmo aresto, que “a expropriação por utilidade pública – que é imposta ao particular em vista da satisfação de um determinado interesse público – coloca o particular que a sofre numa situação de desigualdade em confronto com os demais cidadãos. (…) Num Estado de direito, tem, porém, que haver igualdade de tratamento, designadamente perante os encargos públicos. (…) Por isso, a desigualdade, que vai implicada na expropriação, tem de ser compensada com o pagamento de uma indemnização que – repete-se – assegure “uma adequada restauração da lesão patrimonial sofrida pelo expropriado”. Só assim se restabelecerá o equilíbrio que a igualdade postula” (sublinhado meu).


E ainda: A igualdade, por outro lado, proíbe que se dê tratamento jurídico desigual aos expropriados colocados na mesma situação. Só podem na verdade estabelecer-se distinções de tratamento quando exista fundamenta material para tanto. (…) Escreve, a propósito, Fernando Alves Correia (…): o princípio da igualdade não permite que particulares colocados numa situação idêntica recebam indemnizações quantitativamente diversas ou que sejam fixados critérios distintos de indemnização que tratem alguns expropriados mais favoravelmente do que outros grupos de expropriados” (sublinhado meu).


Ora, a norma contida no art.º 23.º, n.º4, do Código das Expropriações, precisamente ao contrário do sentido a dar ao conteúdo do conceito de justa indemnização assinalado pelo Tribunal Constitucional, onera ainda mais alguns dos proprietários dos prédios objecto de expropriação, nos termos acima explicitados, criando uma desigualdade entre as situações descritas sem que se verifique a existência de fundamento material bastante para tal.


6. Perante o que fica exposto, terá de concluir-se no sentido de que a norma constante do art.º 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações não deverá subsistir na ordem jurídica portuguesa, bastando, para os fins com a mesma visados pelo legislador, não só a possibilidade, consagrada no CIMI [(art.º 115.º, n.º 1, alínea b)], de a administração fiscal rever oficiosamente a liquidação, reportada aos quatro anos anteriores, do imposto municipal sobre imóveis, com base na nova avaliação feita ao imóvel, como a solução consignada no art.º 127.º do mesmo Código, que determina que não são pagas quaisquer indemnizações por expropriação sem que se mostrem pagas ou garantidas todas as dívidas vencidas do imposto.


Naturalmente que não se contesta a previsão simultânea de um mecanismo que promovesse a comunicação, pela entidade expropriante, à administração fiscal, do novo valor patrimonial do imóvel resultante da avaliação feita para efeitos de expropriação.


7. Mais chocante se mostraria a situação caso, legalmente ou de facto, não viesse a Administração Tributária a reformar as liquidações de anos anteriores ao da transmissão da propriedade, no caso de uma compra e venda. É que, aqui, estar-se-ia, por esta via, a estabelecer um encargo específico de quem é expropriado, discriminando negativamente a sua situação face à dos demais proprietários.


8. Deste modo, pelas razões acima expostas e ao abrigo do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, recomendo a Vossa Excelência








a revogação da norma contida no art.º 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro.


9. Permito-me recordar a Vossa Excelência que não foi ainda aqui recebida qualquer comunicação na sequência da Recomendação n.º 1/B/2004, enviada a Vossa Excelência em 14 de Janeiro p.p., através do ofício n.º 686, na qual se sugere a promoção, pelo Governo, de medida legislativa, designadamente em sede do Código das Expropriações, que estabeleça que, no caso em que o expropriado, inconformado com a proposta de indemnização que lhe é feita, em sede de expropriação amigável, pela entidade expropriante, recorra à arbitragem ou posteriormente aos tribunais comuns, e aí veja satisfeita, posto que parcialmente, a sua pretensão – no sentido de vir a ser fixado valor indemnizatório mais elevado que o proposto pela entidade expropriante em sede de expropriação amigável –, o pagamento das despesas inerentes a essa iniciativa, incluindo o imposto de selo que possa incidir sobre o documento através do qual é pago ao indemnizando o valor da indemnização, constitua encargo da entidade expropriante.


Naturalmente aguardando pela comunicação sobre a posição que o Governo venha a assumir quanto ao sugerido no presente documento bem como na acima referida Recomendação n.º 1/B/2004.


O Provedor de Justiça,

H. Nascimento Rodrigues



 

 

Notas de rodapé:


(1) Publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 395, de Abril de 1990, pp. 91 e segs.
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(2) Publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992.
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