RECOMENDAÇÃO N.º 17/A/2001
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal da Madalena (Pico)
Nossa Ref.ª: Proc. R- 3586/96 (Aç)
Data: 2001/12/08


Assunto: Ocupação de terreno destinado à construção de estrada de acesso ao aeroporto.


 


I – INTRODUÇÃO


Os factos que deram origem à reclamação apresentada neste órgão do Estado acerca do assunto em epígrafe remontam ao ano de 1982, quando o impetrante recebeu da Câmara Municipal da Madalena o ofício nº 961, com data de 30/08/82, que continha uma proposta negocial nos seguintes termos: “Conforme referido pessoalmente a V.Ex.ª este Município ao adquirir a parcela de terreno que se destina à Construção da Estrada de Acesso ao Aeroporto, propõe o pagamento do mesmo aos preços praticados para os restantes proprietários ou, em alternativa, a cedência, naquela zona de idêntica parcela para construção” (vide cópia).


O interessado aceitou a proposta de permuta sob condição de o terreno em causa ter viabilidade de construção (vide cópia) e, tendo sido obtido acordo relativamente à parcela a atribuir pela Câmara Municipal da Madalena, o Senhor Presidente mandou delimitar o terreno e procedeu à sua entrega ao interessado (vide cópia igualmente em anexo).


Quando ocorreu a primeira mudança de titular do cargo de Presidente da Câmara Municipal da Madalena desde a obtenção do acordo supra referido, nenhum contrato havia sido celebrado, sob nenhuma forma. E, até ao momento em que V.Ex.ª assumiu as funções de Presidente da Câmara Municipal da Madalena, esta situação não sofreu alterações relevantes.


Finalmente, conforme resulta do teor do ofício nº 2644, de 19/07/99 (vide cópia), V.Ex.ª deu andamento ao procedimento, tendo solicitado ao Senhor Chefe de Divisão dos Serviços de Florestas e Ambiente do Pico que diligenciasse no sentido de ser obtida a desanexação urgente dos 5000m² daquela área florestal.


A coberto do ofício nº 2258, de 30/07/2001 (vide cópia), o Senhor Director Regional dos Recursos Florestais remeteu a este órgão do Estado cópia da informação nº 26-G.J./2001, daquela Direcção Regional, na qual, e em suma, se refere que:



– o terreno em causa é um terreno baldio;


– uma vez que está vedada a apropriação privada de terrenos baldios é inviável o prosseguimento de quaisquer diligências tendentes a conferir a propriedade do terreno em causa ao interessado.


Resumidamente, foram os seguintes os factos computados no decurso da instrução, com relevância para a economia da presente recomendação:



1. ainda na pendência de processo negocial em curso, a Câmara Municipal da Madalena ocupou um terreno do Senhor L…, tendo procedido à construção de uma estrada;


2. a esta ocupação seguiu-se a atribuição material ao particular de uma parcela de terreno, através da delimitação física das respectivas fronteiras e da sua entrega;


3. contudo, o processo negocial iniciado com a proposta consubstanciada no ofício nº 961, de 30/08/1982, da Câmara Municipal da Madalena, nunca foi concluído;


4. por esta razão, não chegou a ser celebrado qualquer contrato relativamente à ocupação da parcela destinada à construção da estrada nem, tão pouco, relativamente ao terreno entregue ao particular;


5. somente no decurso do mês de Julho do presente ano, a Direcção Regional dos Recursos Florestais – instada pela Câmara Municipal da Madalena a proceder à desanexação do terreno florestal entregue ao interessado – veio a concluir tratar-se de terreno baldio sendo, como tal, insusceptível de apropriação particular.Verifica-se, pois – passados que estão quase vinte (20) anos desde a proposta negocial apresentada pela Câmara Municipal da Madalena através do ofício nº 961, de 30/08/82 – que o prédio cuja desanexação (e posterior cedência ao interessado) constituía o objecto do contrato tem a natureza de terreno baldio – sendo, em função desta circunstância, insusceptível de apropriação privada.Desta verificação segue-se necessariamente a conclusão de que o objecto do contrato é legalmente impossível, facto que acarreta, nos termos do disposto no artigo 280º, nº 1, do Código Civil, que o negócio visado esteja ferido de nulidade.


 II – EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS


O direito de propriedade privada, consagrado constitucionalmente no artigo 62º da Constituição da República (adiante, C.R.P.), “abrange, pelo menos, quatro componentes: (a) o direito de adquirir bens; (b) o direito de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; (c) o direito de os transmitir; (d) o direito de não ser privado deles” (1).


Acrescente-se, ainda, que, constituindo o primeiro dos direitos económicos e não fazendo parte do elenco dos direitos, liberdades e garantias, o direito de propriedade privada goza do respectivo regime na vertente em que reveste natureza análoga à daquelas (artigo 17º, da C.R.P.) (2). Esta circunstância releva particularmente nos aspectos fulcrais do regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias, a saber:



a) a aplicabilidade directa, independentemente da eventual intervenção do Legislador (artigo 18º, nº 1, da C.R.P.);


b) a eficácia externa, que redunda na vinculação imediata dos poderes públicos e das entidades privadas (artigo 18º, nº 1, da C.R.P.);


c) a exigência de autorização constitucional expressa para as leis restritivas (artigo 18º, nº 2, da C.R.P.);


d) a sujeição das leis restritivas aos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (artigo 18º, nº 2, da C.R.P.);


e) a salvaguarda da extensão do conteúdo essencial destes direitos perante leis restritivas, e a legitimidade de autodefesa e de resistência em caso de ofensa (artigo 21º, da C.R.P.);


f) a responsabilidade solidária do Estado e demais entidades públicas nos casos de violação desses direitos por parte dos titulares dos órgãos, dos agentes ou dos funcionários, praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício (artigo 22º, da C.R.P.).


Estes preceitos constitucionais – e, em especial, o regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias – vieram vivificar as disposições que, no Código Civil, já regulavam a matéria do direito de propriedade (cf. artigos 1302º e ss., do Código Civil, adiante C.C.).Como regra geral, destaque-se que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (artigo 1305º, do C.C.) e que, em consequência, ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade, senão nos casos fixados na lei (artigo 1308º, do C.C.).


Ora, a lei não prevê o acordo verbal como modalidade susceptível de operar a transferência da propriedade sobre bens imóveis. Na verdade, poder-se-ia ter tentado um processo de expropriação, mediante a verificação de determinados requisitos (v.g. utilidade pública do imóvel, carácter urgente da obra ou impossibilidade de obtenção de acordo com o proprietário); ou, como parecia ser o caso na situação agora em apreciação, poder-se-ia ter optado pela via do direito privado.


Contudo, as diversas modalidades de aquisição da propriedade de bens imóveis por via do direito privado previstas no ordenamento jurídico (v.g. compra e venda, doação ou sucessão) não permitem a aquisição por mero acordo verbal.


Não obstante a prática tantas vezes desconforme faz sentido, ainda e sempre, trazer à colação o princípio da legalidade administrativa cuja noção vem definida no artigo 3º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo: “os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos”.


O quadro normativo que, em termos sucintos, tenho vindo a enunciar, demonstra à evidência que, em caso algum, a Câmara Municipal da Madalena deveria ter ocupado o terreno do interessado sem que estivesse habilitada com o necessário título.


E não se invoque, nesta sede, a circunstância de o interessado no presente processo ter consentido na ocupação do terreno. Quando muito, poder-se-ia alegar que o proprietário permitiu a antecipação da ocupação do seu prédio (ainda durante a fase negocial); mas este facto seria facilmente explicável pela expectativa de que a negociação fosse, para além de legalmente viável, concluída num prazo razoável.


Na situação ora em análise deve destacar-se que, ao passo que o interessado particular dispôs de um bem imóvel que lhe pertencia e relativamente ao qual podia, a todo o tempo, celebrar o contrato que consubstanciasse a transferência da propriedade, o então Presidente da Câmara Municipal da Madalena fez incluir no negócio um bem de que a Edilidade não podia dispor e que, como resulta do disposto no artigo 280º, do C.C., inquinaria de nulidade qualquer celebração contratual.


Não será despiciendo acrescentar, ainda, que é pacífico o entendimento segundo o qual o resultado da actuação – mesmo que ilegal ou ilícita – dos titulares de órgãos das pessoas colectivas públicas, que é feita nessa qualidade, é sempre imputado ao órgão do respectivo titular e à pessoa colectiva em que aquela actividade se insere (3). Assim sendo, afigura-se irrelevante, neste contexto, o facto de terem ocorrido diversas alterações de titulares do cargo de Presidente da Câmara da Madalena deste o início do procedimento reclamado até à presente data.


Ainda assim, não posso deixar de louvar a actuação de V.Ex.ª, Senhor Presidente da Câmara Municipal da Madalena, no sentido de, finalmente, ser concluído este sinuoso procedimento. Contudo, a impossibilidade legal de concretização da transferência da propriedade do prédio em causa, que resulta da sua natureza de terreno baldio, não pode significar que a Câmara Municipal da Madalena tenha esgotado todas as possibilidades de salvaguarda da boa fé, confiança e segurança jurídicas.


Com efeito, subsiste a possibilidade da Câmara Municipal da Madalena dar por encerrada a questão da ocupação indevida do terreno do Senhor L… através do pagamento de uma quantia indemnizatória susceptível de ressarcir os danos sofridos pelo proprietário privado, nomeadamente nos termos do disposto no artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967.


Na verdade, o interessado tem vindo a sofrer um prejuízo efectivo, que pode ser computado através da ponderação das seguintes parcelas:



– valor do terreno ocupado;


– montante relativo ao facto de se ter visto privado da utilização do terreno nos últimos dezanove anos;


– verba destinada a ressarcir os prejuízos morais que o particular tem vindo a sofrer ao longo deste procedimento.


 III – CONCLUSÕES


Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, recomendo à Câmara Municipal da Madalena:






Que indemnize o Senhor L…, nos termos referidos, e que, para tanto, encete de imediato contactos com o interessado para que seja obtido acordo sobre o montante da indemnização a pagar.


Caso a presente recomendação venha, como espero, a merecer acolhimento junto da Câmara Municipal da Madalena, disponibilizo desde já a intervenção mediadora da Provedoria de Justiça, se tal colaboração vier a ser julgada pertinente tanto por V.Ex.ª como pelo interessado.


Permito-me, ainda, chamar a atenção de V.Ex.ª para a circunstância de o artigo 38º, nºs 2 e 3, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, impor aos órgãos destinatários de recomendações a obrigação de estes comunicarem ao Provedor de Justiça, no prazo de 60 dias, a posição que assumem em face das respectivas conclusões.


Por fim, devo comunicar a V.Ex.ª que dei conhecimento do teor da presente recomendação ao Senhor Presidente da Assembleia Municipal da Madalena.


O Provedor de Justiça,


H. Nascimento Rodrigues


 


 


 


 


Notas de rodapé:


(1) Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra, 1993, p.332.
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(2) Ibidem.
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(3) Vide, por todos, Mário Esteves de Oliveira e Outros, Código do Procedimento Administrativo comentado, 2ª edição, Coimbra, 1998, p.140.
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