RECOMENDAÇÃO N.º 6/B/2003
(Artigo 20º, nº 1, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)


Entidade visada: Ministro das Cidades, do Ordenamento do Território e do Ambiente
Procº: P-20/02 (A1)
Data: 2003/09/25
Assunto: Ambiente; avaliação do impacte ambiental; técnica legislativa; directiva; transposição; poderes discricionários; objecto e fim da norma comunitária; efeitos cumulativos. 



§1º
Considerações preliminares


1. Através do Decreto-lei n.º69/2000, de 3 de Maio, veio o Governo disciplinar o regime jurídico de avaliação dos impactes ambientais, de determinados projectos, públicos ou privados, transpondo a Directiva n.º 85/337/CEE, do Conselho, de 27 de Junho, de acordo com as alterações introduzidas pela Directiva n.º 97/11/CE, do Conselho, de 3 de Março (1).


2. Durante o intervalo de tempo, entretanto decorrido, e na sequência da instrução de processos organizados e instruídos sobre queixas recebidas na Provedoria de Justiça, foi possível observar algumas deficiências na transposição, que se julga dever assinalar, mais recomendando a sua correcção.


3. Assim, e porque compete ao Provedor de Justiça, de acordo com o que dispõe o artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do seu Estatuto, contribuir para o aperfeiçoamento da legislação, é meu dever levar à consideração de Vossa Excelência os resultados da nossa análise, sugerindo a ponderação de algumas modificações ao Decreto-lei nº69/2000, de 3 de Maio, de forma a tornar irrepreensível a transposição da citada Directiva. Com efeito, a incorrecta transposição da Directiva poderá, em qualquer momento, fundar uma decisão desfavorável por parte do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.


4. Não que cumpra especialmente ao Provedor de Justiça zelar pelo primado do direito comunitário ou velar pela harmonia entre as ordens jurídicas dos diferentes Estados da Comunidade Europeia. Pondero, isso sim, na protecção dos interesses difusos ambientais incumbida, de modo particular, a este Órgão do Estado, por via do disposto no art. 20º, nº1, alínea e), da já citada Lei nº9/91, de 9 de Abril.


5. Acima de tudo, o parcial incumprimento da Directiva poderá defraudar a tutela, protecção e promoção dos bens ambientais, compreendidas não apenas nos objectivos comunitários, como realçadas de entre as tarefas fundamentais do Estado, no art. 9º, alínea e), da Constituição. O aperfeiçoamento do regime jurídico da avaliação do impacte ambiental poderá sem alterações substanciais recuperar a unidade e coerência desejadas pelo direito comunitário derivado, obstando a soluções iníquas e a pontos de vulnerabilidade a que a actual redacção parece prestar-se.


§2º
A incidência do dever de avaliação do impacte ambiental


6. De acordo com o art. 2.º, n.º 1 da Directiva, os Estados Membros devem adoptar as disposições necessárias para que todos os projectos que possam ter um impacte significativo no ambiente – devido, nomeadamente, à sua natureza, dimensão e localização – sejam sujeitos à avaliação dos seus efeitos.


7. Por seu turno, no art. 4.º n.º 2, prescreve-se que os Estados Membros determinarão os projectos sujeitos à avaliação do impacte ambiental (2), em conformidade com a lista do Anexo II da Directiva, seja com base numa análise casuística, seja por estipulação legislativa de critérios e limiares quantitativos e qualitativos.


8. Nestes termos, permite-se que a legislação nacional opte ou cumule, em termos equivalentes, a selecção casuística de projectos, a submeter a avaliação de impacte ambiental e a selecção por fixação normativa de limiares e outros critérios.


9. É com base na enumeração dos projectos constantes do Anexo II e da consideração da natureza, dimensão e localização dos projectos, que cabe aos Estados Membros fixar os critérios e limiares a reter para determinar, em abstracto, de entre os projectos pertencentes às categorias enunciadas, quais deles hão-de ser submetidos à avaliação obrigatória. Para a mesma finalidade, cada um dos Estados poderá determinar, com base naquela lista e naqueles factores, uma análise caso a caso. Esta alternativa consiste em determinar discricionariamente, com base numa análise individual de cada projecto abrangido pela Directiva, se deverá ser sujeito a avaliação de impacte ambiental ou se, pelo contrário, a dispensa.


10. Contudo, a margem de apreciação concedida aos Estados Membros, pelo disposto no art. 4.º, n.º 2 da Directiva apresenta como limite, desde logo, a obrigação geral de avaliação, enunciada no já referido art. 2.°, n.° 1. Com efeito, aqui prescreve-se uma obrigação genérica de avaliação de todos os projectos que possam ter um impacte significativo no ambiente, tendo em consideração os três factores já enunciados, ou seja, a sua natureza, localização e dimensão.


11. Da análise do Decreto-lei n.º 69/2000, de 3 de Maio, verifica-se que o legislador nacional, optou pela cumulação das duas alternativas previstas no art. 4.º, n.º 2 da Directiva: (a) no Anexo II é fixada uma lista de projectos a submeter a avaliação de impacte ambiental, desde que preenchidos ou ultrapassados, respectivamente, os critérios e limiares estipulados, em termos abstractos; (b) nos termos do art. 1.º, n.º 3 do Decreto-lei n.º 69/2000, de 3 de Maio, acresce a possibilidade de uma ponderação casuística, por decisão conjunta do membro do Governo competente na área do projecto, em razão da matéria, e do Ministro responsável pelo Ambiente, em relação aos projectos que, em função das suas especiais características, dimensão ou natureza, devam ser sujeitos à avaliação de impacte ambiental.


12. Deve, no entanto, notar-se que a estipulação de limiares e critérios, na legislação nacional, em termos abstractos, dispensa a sujeição individual, de cada projecto, a um exame prévio, para ser aferido o cumprimento dos critérios fixados pelo direito comunitário no art. 2.º, n.º 1 da Directiva. O Tribunal de Justiça já teve oportunidade de considerar que a interpretação contrária, defendida pela Comissão Europeia, privaria de todo e qualquer significado o disposto no art. 4.º, n.º 2. Com efeito, um Estado Membro não teria qualquer interesse em fixar limiares ou critérios se, independentemente destes, cada projecto devesse, apesar disso, ser objecto de uma apreciação individual (3).


13. Como já foi referido, o estabelecimento de limiares ou critérios para cada projecto é expressamente facultado pelo enunciado do art. 4.º, n.º 2, e não teria sentido útil considerar que, depois de o Estado Membro ter optado por tal solução, acrescesse a subsequente exigência de submissão dos mesmos projectos a um exame individual para verificar o cumprimento do enunciado nos art. 2.º e no art. 4.º, n.º 3 da Directiva.


14. Todavia, nem o estabelecimento normativo de limiares e critérios nem a remissão para escolha casuística podem prescindir de algum ou alguns dos critérios de selecção relevantes em virtude dos quais, nos termos da Directiva, se deve avaliar a necessidade de sujeição dos projectos à avaliação do impacte ambiental. Estes encontram-se consubstanciados quer em termos gerais, no já citado art. 2.º, n.º 1 da Directiva, quer em termos particulares, no Anexo III, deste diploma.


15. Com efeito, ao contrário do que sucedia na versão originária da Directiva, em 1997, o próprio legislador comunitário veio concretizar, no Anexo III, os critérios de selecção que devem ser tomados em linha de conta pelo legislador nacional.


16. Neste sentido, o art. 4.º, n.º 3, Directiva estabelece que, quando forem fixados limiares ou critérios, ou efectuada uma análise casuística, para o efeito de determinar se os projectos incluídos no Anexo II da Directiva deverão ser, ou não, submetidos a avaliação de impacte ambiental, devem ser tidos em conta os critérios de selecção relevantes fixados no Anexo III. Estes critérios de selecção subdividem-se em três categorias, a saber: 







a) critérios relativos às características dos projectos, nomeadamente,



i. dimensão;
ii. efeitos cumulativos relativamente a outros projectos;
iii. produção de resíduos;
iv. poluição e
v. incómodos causados;


b) critérios relativos à localização dos projectos, em face dos quais deve ser considerada a sensibilidade ambiental das zonas geográficas susceptíveis de serem afectadas pelos projectos, tendo, nomeadamente, em consideração:



i. a afectação do uso do solo;
ii. a capacidade de absorção do ambiente natural, com especial atenção para zonas húmidas, zonas classificadas ou protegidas pela legislação dos Estados Membros;


c) critérios relativos ao impacte ambiental, nomeadamente:



i. extensão;
ii. probabilidade;
iii. duração e
iv. frequência.


 17. Apesar desta concretização, ainda assiste ao legislador e à Administração Pública de cada Estado uma ampla margem de apreciação relativamente à escolha do tipo de projectos que devem ser sujeitos a avaliação de impacte ambiental.


18. Contudo, o método escolhido pelo legislador nacional não pode pôr em causa os objectivos da Directiva, não pode nomeadamente frustrar ou desviar a necessidade de avaliação do impacte ambiental dos projectos que possam produzir um impacte significativo no ambiente. A prescindir de algum ou de alguns daqueles critérios, nesta avaliação, o Estado Membro viola o direito comunitário. Decerto o legislador nacional terá ultrapassado os limites da margem de apreciação que lhe foi atribuída pela legislação comunitária.


19. Ora, na lista de projectos constante do Anexo II ao Decreto-lei n.º 69/2000, de 3 de Maio, consideraram-se, expressamente, apenas alguns destes critérios, como fundamento de sujeição à avaliação de impacte ambiental. Vejamos algumas destas situações.


20. Em primeiro lugar, os efeitos cumulativos dos projectos, que é considerado como critério de sujeição à avaliação de impacte ambiental, em especial, para os projectos de florestação. Estes devem submeter-se à avaliação do impacte ambiental quando atinjam uma área igual ou superior a 350 ha, ou igual ou superior a 140 ha se, em conjunto com povoamentos preexistentes das mesmas espécies, distando entre si menos de 1 Km, der origem a uma área superior a 350 ha.


21. Algo semelhante é previsto para os projectos de piscicultura intensiva, para os projectos de pedreiras e minas e para os projectos de aproveitamento da energia eólica para produção de electricidade.


22. Quanto aos restantes projectos, entre os quais, os projectos de aterros sanitários, os critérios designados pelo legislador nacional atêm-se a um projecto considerado individualmente, abrindo mão da relação com outros, existentes num mesmo período temporal e num mesmo espaço.


23. Ora, a sujeição a avaliação do impacte ambiental de vários projectos do mesmo tipo que não atinjam, por si só, o limiar estabelecido na legislação nacional, mas que o atingem em conjunto, é uma exigência que resulta da necessidade de permitir uma coerência interna ao sistema de tutela ambiental instituído pela Directiva.


24. Isto mesmo já foi reconhecido pelo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 21.09.1999 (4) (Comissão v. República da Irlanda).


25. Neste caso, a Comissão Europeia considerou ter a República da Irlanda transposto incorrectamente a Directiva, porquanto na fixação de limiares pelo direito interno não fora tomado em conta o efeito cumulativo dos projectos, como critério de sujeição dos mesmos à avaliação do impacte ambiental. Neste sentido, a Comissão argumentava que, se existissem vários projectos distintos, sem que nenhum ultrapassasse o limiar fixado, jamais seria exigida avaliação do impacte ambiental. Não obstante, estes projectos, coligadamente, poderiam ter impactes significativos no ambiente.


26. O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias concordou com a acusação da Comissão e concluiu que a desconsideração do efeito cumulativo dos projectos leva a que todos os projectos de um certo tipo podem ser subtraídas ao dever de avaliação, ao passo que, considerados no seu conjunto, seriam susceptíveis de ter efeitos significativos no ambiente, na acepção do art. 2.º, n.º 1, da Directiva. A República da Irlanda, ao fixar limiares, sem se assegurar de que o objectivo da regulamentação não seria desviado, através do fraccionamento dos projectos, excedeu a margem de apreciação de que dispunha (5).


27. Na verdade, não é difícil estimar que o dono da obra obste à avaliação do impacte ambiental sobre um determinado projecto, limitando-se a cindir o projecto inicial em tantos projectos quanto o necessário para não exceder o limite fixado na legislação nacional.


28. De resto, podem concorrer vários projectos simultâneos ou sucessivos numa mesma zona geográfica contígua, mas levados a cabo por diferentes donos de obra. Estes projectos, considerados individualmente, por não atingirem o limiar escapam à avaliação do impacte ambiental, mas, considerados solidariamente, por força dos efeitos cumulativos provocados, produzirão impacte significativo no ambiente. Deveriam, por conseguinte, sujeitar-se àquela avaliação.


29. Pelo exposto, a utilização de limiares absolutos, sem consideração dos efeitos cumulativos dos projectos representa, no entendimento do Tribunal de Justiça e da Comissão Europeia, mesmo perante a versão originária da Directiva, claro incumprimento da obrigação de transpor correctamente este acto comunitário.


30. Além desta lacuna que se verifica na lei portuguesa, quanto à consideração dos efeitos cumulativos de certos projectos, verifica-se ainda a completa desconsideração, em relação a todos os projectos, da localização em zonas húmidas, costeiras ou montanhosas, em parques ou reservas naturais (6).


31. Ora, perante as lacunas existentes no Anexo II do Decreto-lei n.º 69/2000, de 3 de Maio, só não haveria incumprimento do disposto na Directiva se porventura ocorresse a sujeição dos projectos excluídos (7) a uma apreciação casuística, tendo presente o enunciado dos critérios de selecção relevantes fixados no Anexo III.


32. Ora, os termos em que está consagrada a apreciação discricionária, no art. 1.º, n.º 3, do Decreto-lei n.º 69/2000, de 3 de Maio, não pode deixar de suscitar algumas demasiadas dúvidas de interpretação e mostra-se parcialmente omissa perante o preceituado na Directiva.


33. Por um lado, enquanto que a Directiva estabelece como critérios de selecção relevantes, as características dos projectos, a localização dos mesmos e as características do impacte ambiental, o legislador nacional refere-se a características, dimensões e natureza dos projectos, sendo que estes dois últimos critérios mais não são do que as características dos projectos. Ao fim e ao cabo, reconduzem-se, ambos, ao primeiro factor enunciado.


34. Como tal, ficam integralmente desconsiderados, pelo legislador, os critérios atinentes à localização dos projectos e às características do impacte ambiental.


35. Desde logo, quanto ao critério respeitante à localização, e de acordo com o Anexo III da Directiva, deveria ser considerada a sensibilidade ambiental das zonas geográficas susceptíveis de serem afectadas pelos projectos, tendo, nomeadamente, em consideração, a qualidade e a capacidade de regeneração dos recursos naturais e a capacidade de absorção dos impactes pelo ambiente natural, com especial atenção para as zonas húmidas, zonas costeiras, reservas e parques naturais, zonas de forte densidade demográfica e paisagens importantes do ponto de vista arqueológico.


36. Foi também reconhecido pelo Tribunal de Justiça no citado Acórdão de 21.09.1999, que um projecto, mesmo de reduzidas dimensões, pode ter efeitos significativos no ambiente quando situado num local em que certos factores ambientais, tais como a fauna e a flora, o solo e a água, o clima ou os bens do património cultural, se revelem particularmente sensíveis à mínima modificação.


37. Depois, na avaliação das características do impacte ambiental devem ser ponderados, de acordo com a Directiva – e de entre outros factores não menos importantes – a extensão do impacte ambiental, a sua duração, frequência e reversibilidade.


38. Acresce que a maioria dos critérios relevantes enunciados no Anexo III da Directiva, embora considerados, no art. 12.º, n.º 3 do Decreto-lei n.º 69/2000, de 3 de Maio, e no art. 3.º da Portaria n.º 330/2001, de 2 de Abril, são-no apenas como um dos aspectos a ser abordado no estudo de impacte ambiental. Regressando ao exemplo acima exposto, verifica-se que esta situação tem lugar nos impactes cumulativos.


39. É certo que no anexos I e II da Portaria n.º 330/2001, de 2 Abril, voltam a mencionar-se os impactes cumulativos como elemento integrante da proposta de definição do âmbito do estudo de impacte ambiental e do próprio estudo de impacte ambiental. Neste último anexo, refere-se, aliás, que a análise dos impactes cumulativos deve considerar os impactes no ambiente que resultem do projecto em concurso real com outros empreendimentos ou actividades, já existentes ou previstos, e considerar, bem assim, os projectos complementares ou subsidiários.


40. Sendo assim, porém, os critérios relevantes do Anexo III da Directiva operam, não como pressuposto da incidência do dever de avaliação do impacte ambiental – como deveria suceder – mas apenas como critério na avaliação dos projectos que o legislador nacional, por qualquer outra razão, determinou que deveriam ser sujeitos à avaliação. Por outras palavras, confundem-se dois momentos distintos – o da selecção dos projectos a sujeitar à avaliação e o da avaliação, em si, como procedimento de ponderação entre os diferentes bens e de prognose das medidas de contenção adequadas.


41. Há ainda a assinalar que o legislador nacional, na previsão da análise casuística, restringe a selecção dos projectos a submeter à avaliação do impacte ambiental, aos que apresentem especiais características, dimensão e natureza, mas contudo, nunca define os factores que tornam estes projectos especiais nem tão pouco as razões que levam a qualificá-los como especiais. Se bem que o uso de conceitos indeterminados se justifique em muitas normas de direito administrativo – confiando ao órgão competente uma larga margem – o certo é que a excessiva fluidez de algumas expressões linguísticas – como é o caso – abre as portas à indeterminação quanto aos fins e torna-se praticamente imune ao controlo de legalidade operado pelos tribunais administrativos.


42. Ademais, a Directiva, ao enunciar estes critérios, não se lhes refere como sendo especiais. Faz apelo a critérios, gerais ou especiais, que devem ser utilizados regularmente pelos Estados Membros para decidir se um determinado projecto, constante do Anexo II, deverá, ou não, ser submetido à avaliação do impacte ambiental.


43. O legislador nacional, ao invés, permite que os órgãos competentes considerem, por exemplo, apenas os efeitos cumulativos especiais, a especial produção de resíduos, a especial extensão do impacte, a especial magnitude, a especial duração, a especial frequência e reversibilidade do impacte.


44. Não parece ser este o sentido da Directiva nem subjectiva nem objectivamente interpretada. Deve ter-se presente que, e de novo segundo o Tribunal de Justiça (8), o âmbito de aplicação da Directiva é vasto e os seus objectivos são bastante latos, motivo por que o intérprete há de tomar em consideração este parâmetro.


45. Não se compreende, aliás, se a especialidade é entendida na transposição nacional por aferição das características que os projectos de determinada natureza apresentam, por regra, no nosso País, ou se está em causa uma especialidade intrínseca à própria natureza do projecto. Pode considerar-se especial, por exemplo, um projecto que atinja níveis de poluição anormalmente elevados, em relação aos projectos da mesma natureza já executados ou a executar no País, como é possível fazer tábua-rasa deste elemento e ter em consideração, apenas e sem mais, o tipo de resíduos produzidos.


46. Pelo exposto, é de concluir que a análise casuística não supre as deficiências do Anexo II do Decreto-lei n.º 69/2000, de 3 de Maio, já observadas.


47. Assim, haverá projectos que serão excluídos, indevidamente, da obrigação de avaliação de impacte ambiental, por desconsideração dos critérios relevantes consagrados no Anexo III da Directiva.


48. Aliás, como já fora referido na Recomendação n.º 31/B/99, do meu antecessor, formulada em 28 de Outubro de 1999, estes critérios, constituem verdadeiras normas orientadoras a ter em conta na decisão relativa à necessidade de submeter os projectos contidos no Anexo II à avaliação do impacte ambiental. Já nessa data, apesar das contingências temporais por se aproximar o termo do prazo para transposição, sugeria-se ao legislador que procedesse à mais correcta transposição para o direito interno das normas da Directiva. Não foi o que aconteceu, como já se pôde ver, com a transposição efectuada através do Decreto-lei n.º 69/2000, de 3 de Maio. A transposição foi tardia e precipitada.


49. Assim, e porque o legislador continua aquém da plena consagração e consideração dos critérios do Anexo III da Directiva, Portugal poderá, futuramente, encontrar sérias dificuldades em contestar no Tribunal de Justiça uma acção por incumprimento. Uma hipotética condenação poderá verificar-se ora em termos gerais, por incompleta transposição, ora por força da execução de algum projecto em concreto, que, em virtude da incorrecta transposição, não tenha sido sujeito à avaliação do impacte ambiental.


50. A falta de consagração expressa, pelo legislador nacional, dos critérios constantes do Anexo III é apontada pelos autores mais credenciados como um factor de instabilidade dos operadores económicos – nacionais e estrangeiros da CE – diminuindo a certeza jurídica necessária à captação de investimentos (9). Nesta perspectiva, importa notar que estão em causa, quase sempre, elevados montantes e, sem um mínimo previsível de certeza quanto à incidência do dever de avaliação de impacte ambiental, não será de estranhar um aumento da litigiosidade.


51. Caso contrário, a decisão de sujeitar ou não determinado projecto a avaliação de impacte ambiental pode ser contrariada, no âmbito de uma acção judicial, interposta nos tribunais nacionais ou no Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia. A situação é agravada se o financiamento do projecto for comparticipado com fundos comunitários que poderão ser retirados devido ao incumprimento da legislação comunitária, com todas as consequências negativas daí resultantes.


52. Refira-se ainda que os próprios termos em que está redigido o art. 1.º, n.º 3.º, do Decreto-lei n.º 69/2000, de 3 de Maio, não são particularmente avisados: “podem ainda ser sujeitos a avaliação de impacte ambiental os projectos que … devam ser sujeitos a essa avaliação”. Trata-se de uma evidente tautologia. Com efeito, se os projectos devem ser sujeitos a avaliação de impacte ambiental, então as autoridades competentes devem sujeitá-los a tal procedimento. A utilização do verbo “poder” por contraposição ao verbo “dever” traduz, erroneamente, uma mera faculdade de sujeitar o projecto a avaliação, quando por alguma razão, que o legislador não especifica, o projecto deva ser sujeito a tal.


53. Refira-se ainda que, da análise comparativa entre a legislação nacional de dez Estados Membros da Comunidade Europeia, foi possível concluir que todos os que optaram pela análise casuística dos projectos, como modo de aquilatar da sua sujeição a avaliação de impacte ambiental, procederam à transcrição do Anexo III da Directiva. Inclusivamente, a Dinamarca, aditou outros critérios, tornando assim a operação mais abrangente e rigorosa.


54. Estou em crer, Senhor Ministro, que não é de recear um maior alcance da avaliação do impacte ambiental como obstáculo a novos investimentos de que a economia portuguesa tanto carece. A avaliação, por si, não exclui, não impede, não afasta a criação de riqueza. Apenas a regula, a condiciona, a compatibiliza com outros interesses nacionais e regionais. O que me parece de recear é, isso sim, a menor congruência do sistema aliada à imprevisibilidade da decisão administrativa, mal amparada por uma infeliz transposição.


§3º
CONCLUSÕES


De acordo com as motivações expostas, e no exercício dos poderes que me são conferidos pelo art. 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, Recomendo a Vossa Excelência: 







a) a iniciativa de transposição, para o ordenamento jurídico português, das prescrições constantes do Anexo III, da Directiva 97/11/CE do Conselho, de 3 de Março de 1997, que alterou a Directiva 85/337/CE do Conselho, de 27 de Junho de 1985, onde se prevêem os critérios de selecção relevantes para a análise casuística dos projectos a submeter a avaliação de impacte ambiental;


b) em consonância, a alteração do disposto no art. 1.º, n.º 3, do Decreto-lei n.º 69/2000, de 3 de Maio, por forma a adequá-lo aos parâmetros de apreciação constantes daquele anexo, suprindo-se assim as lacunas existentes e aclarando a sua redacção.


Dignar-se-á Vossa Excelência, em cumprimento do dever consagrado no art. 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, informar-me da sequência que o assunto venha a merecer.


O Provedor de Justiça,

H. Nascimento Rodrigues


 


 


Notas de rodapé:


(1) Na falta de outra indicação, a referência infra à Directiva, reporta-se à Directiva n.º 85/337/CE, com as alterações introduzidas pela Directiva n.º 97/11/CE.
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(2) Pelo contrário, no art. 4.º, n.º 1 prescreve-se que os projectos, constantes do Anexo I, devem ser sempre e obrigatoriamente sujeitos a avaliação de impacte ambiental, independentemente de quaisquer outras considerações.
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(3) Neste sentido, cfr. Acórdão Kraaijeveld/Gedeputeerde Staten, de 24 de Outubro de 1996.
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(4) Procº C-392/96.
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(5) Deve-se notar, que, ao tempo do acórdão do Tribunal de Justiça, estava em vigor a versão originária da Directiva. Nesta versão, era igualmente permitido aos Estados Membros fixarem limiares acima dos quais não seria exigível a sujeição a avaliação de impacte ambiental dos projectos constantes do Anexo II. Todavia, ao contrário do que sucede actualmente, não se enunciavam quaisquer critérios de selecção para a fixação destes limiares, cabendo aos Estados Membros efectuar a sua concretização, tendo em atenção, nomeadamente, os factores já apontados (natureza, localização e dimensão). Deste modo, não era expressamente mencionada a consideração dos efeitos cumulativos de vários projectos. Ainda assim, tanto a Comissão Europeia, como o Tribunal de Justiça, entenderam que tal seria exigível, sob pena de o objectivo instituído pela Directiva não se atingir.
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(6) Para uma análise mais detalhada das deficiências do Anexo II do Decreto-lei n.º 69/2000, de 3 de Maio, v. Alexandra de Sousa Aragão / José Eduardo Figueiredo Dias / Maria Ana Barradas, Regime Jurídico da Avaliação de Impacte Ambiental em PortugalComentário, CEDOUA, Coimbra, 2002, pp. 96 e ss.
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(7) Quer seja excluída toda uma categoria ou subcategoria de projectos, como é o caso dos projectos “de locais para depósito de lamas“, quer sejam excluídos apenas alguns projectos dentro dessa categoria ou subcategoria, porque a sua sujeição a avaliação de impacte ambiental não foi expressamente ponderada pelo legislador, em face dos critérios enunciados no Anexo III da Directiva.
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(8) Acórdão Kraaijeveld/Gedeputeerde Staten (Procº C-72/95) de 24 de Outubro de 1996, em especial, cfr. o considerando n.º 39.
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(9) Neste sentido v.. Alexandra de Sousa Aragão, Direito Comunitário do Ambiente, CEDOUA, Coimbra, 2002, p. 42; Alexandra de Sousa Aragão / José Eduardo Dias / Maria Ana Barradas, O novo regime da AIA: avaliação de previsíveis impactes legislativos, Revista do CEDOUA, Ano III, 1.00, Coimbra, 2000.
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