RECOMENDAÇÃO N.º 17/A/2003
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)


 Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Almada
Procº: R–3978/02 (A4)
Data: 2003/10/10
Área: A4
Assunto: Queixa apresentada por XXXX. Verificação domiciliária da doença. Faltas injustificadas.


 


I – ENUNCIADO


Como é do conhecimento de V. Exa., XXXX, funcionário do Departamento de Acção Sócio-Cultural dessa Câmara Municipal, dirigiu-me uma queixa, contestando a decisão de não justificação das faltas que havia dado por doença comprovada por atestado médico, em consequência de não ter sido encontrado no seu domicílio, aquando da verificação da doença, uma vez que para justificar essa ausência entende ter apresentado, atempadamente, documento idóneo.


Na instrução do processo a que deu origem a referida queixa, foi ouvida essa Câmara Municipal que prestou os esclarecimentos constantes dos ofícios n.º 449, de 27 de Janeiro de 2003, n.º 12/03/DRH/Dir, de 25 de Fevereiro de 2003, n.º 2539, de 13 de Maio de 2003 e, por último, n.º 3079, de 4 de Junho de 2003, e com base nos quais dou por assentes os seguintes factos relevantes: 







1. O queixoso, funcionário do Departamento de Acção Sócio-Cultural, começou a faltar por doença a partir de 1 de Outubro de 2002, tendo apresentado atestado médico justificativo, dentro do prazo legal;


2. Nesse atestado, indica-se que o mesmo está “impossibilitado de comparecer no local de trabalho de 1 a 27 de Outubro de 2002” e que “pode ser visitado no domicílio às 2.ªs., 4.ªs. e sextas-feiras, das 9 h. às 11h. 30 min. e das 16h. 30m. às 19”;


3. Na sexta-feira dia 11 de Outubro de 2002, pelas 16 horas e 45 minutos, foi efectuada a verificação domiciliária da doença;


4. Nesse dia e a essa hora, o funcionário não foi encontrado em casa;


5. Na segunda-feira seguinte, dia 14, requereu a justificação da sua ausência, alegando que se encontrava na Esquadra da Cova da Piedade da Polícia de Segurança Pública, “no âmbito do Processo 1171/02.7 TAALM, em que é queixoso”, e exibindo uma declaração emitida por esta autoridade policial, com data de 11 de Outubro de 2002, na qual se atesta que o mesmo “compareceu neste Departamento Policial, entre as 16H00 e as 17H00, para esclarecimento de assuntos inerentes ao processo 1171/02.7 TAALM”;


6. Tal requerimento foi indeferido, por despacho do Senhor Vereador dos Serviços Municipais de Ambiente, Recursos Humanos, Trânsito, Transportes e Equipamentos Colectivos, de 26 de Novembro de 2002, o qual foi transmitido oralmente ao funcionário em 6 de Dezembro de 2002;


7. Através do ofício dessa Câmara Municipal n.º 450, de 23 de Janeiro de 2003, foi aquele notificado do referido despacho e, do mesmo modo, convidado a esclarecer as circunstâncias em que se deslocou à Esquadra da Polícia de Segurança Pública e os motivos por que não avisou, com antecedência, que não estaria em casa no dia 11 de Outubro de 2002;


8. Em resposta, o funcionário apresentou novo requerimento, datado de 16 de Abril de 2003, solicitando a reapreciação dos motivos que sustentam o despacho de injustificação das faltas, o qual, todavia, não foi considerado pertinente uma vez que o assunto estava ainda em apreciação;


9. Assim, e pelo ofício n.º 2524, de 12 de Maio de 2003, foi o mesmo novamente notificado para, agora no prazo de 10 dias úteis, apresentar prova, não só de que foi à Esquadra da Polícia de Segurança Pública na data da verificação da doença, mas também de que aí tinha de comparecer no dia e à hora em questão, com vista ao conveniente esclarecimento dos factos e descoberta da verdade;


10. Em exposição de 14 de Maio de 2003, veio o funcionário mais uma vez fazer prova da sua presença na referida Esquadra em tal dia, e explicar os motivos por que ali foi, apresentando cópia de ofício com data de 27 de Setembro de 2002 da Procuradoria da República da Comarca de Almada, notificando-o, na qualidade de denunciante, do despacho de arquivamento no Inquérito 1171/02.7 TAALM, cópia de uma declaração do Comando de Polícia de Setúbal, na qual se refere que esteve presente “nas instalações desta Divisão, no dia 11 de Outubro de 2002, para tratar de assuntos relacionados com a sua comunicação à Linha SOS Amb. 24 sobre ruídos (…) , cujo processo foi deferido nesta PSP” e ainda cópia de um artigo publicado na secção “Falam os Leitores” do jornal “A Capital”, de 7 de Outubro de 2002, com o título “Lei do ruído não é cumprida por escola de artes marciais”;


11. Essa exposição e respectivos documentos foram apreciados no Parecer n.º 25/GJ, de 21 de Maio de 2003, homologado por despacho do Exmo. Vereador dos Serviços Municipais de Ambiente, Recursos Humanos, Trânsito, Transportes, e Equipamentos Colectivos, de 26 de Maio de 2003, no qual se concluiu que:



“a) Da prova oferecida pelo funcionário, resulta que este, no dia 11.10.2002, não estava obrigado a deslocar-se à esquadra da P.S.P;


b) Tampouco ocorreram razões que justifiquem a sua deslocação à esquadra, nesse dia, em detrimento da obrigação de permanecer em casa;


c) Por se ter ausentado do seu domicílio, onde devia permanecer, para efeitos de verificação domiciliária da doença de que alega padecer, sem motivo compreensível ou razoável, «todas as faltas dadas são injustificadas», como determina o art. 33.º, n.º 4, do D.L. n.º 100/99.”


 II – APRECIAÇÃO


De tudo quanto fica descrito, resulta que a decisão de não justificação de faltas contestada, que, como vim entretanto a apurar, conduziu à instauração de processo disciplinar ao funcionário, fundou-se, não na inveracidade dos factos que foram alegados e provados através de documento policial, nos termos do n.º 4 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 100/99, de 31 de Março, mas apenas num juízo de censurabilidade acerca da conduta por ele assumida.


Do disposto nos nºs. 1, 2 e 3 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 100/99, de 31 de Março, decorre que, salvo nos casos de internamento, de atestado médico passado por médico privado dos serviços que dele disponham e de doença ocorrida no estrangeiro, pode ser requerida a verificação domiciliária da doença, a qual, sempre que não seja necessária a permanência do funcionário no domicílio, deve ser efectuada nos dias e nas horas para o efeito indicadas, num mínimo de três dias por semana e de dois períodos diários, de duas horas e meia cada um, compreendidos entre as 9 e as 19 horas.


Por sua vez, o n.º 4 do mesmo preceito legal estabelece que se o funcionário não for encontrado no domicílio ou no local onde tiver indicado estar doente, todas as faltas dadas são injustificadas, se ele não justificar a sua ausência mediante apresentação de meios de prova adequados, no prazo de dois dias úteis a contar do conhecimento do facto, que lhe será transmitido por carta registada, com aviso de recepção.


À luz destas disposições deve ter-se como inequívoco que, na situação de doença que não implique a permanência do faltoso no domicílio, como agora sucedia, nem mesmo nos dias e nos períodos que hajam sido indicados para a respectiva verificação essa permanência é imperativa, apenas se impondo àquele o ónus de apresentar meios de prova adequados para justificar a sua ausência, no caso de não ser encontrado aquando da realização de tal diligência.


Por outro lado, nada se estatuindo ali, nem em todo o diploma, sobre o que sejam meios de prova adequados, é também inequívoco que assim têm de ser considerados todos e quaisquer meios de prova admitidos em direito, os quais, por sua vez, devem, naturalmente, merecer uma análise ponderada, segundo critérios de objectividade e imparcialidade, até pela gravidade das consequências que decorrem para o funcionário que, embora doente, não chegue a ser encontrado no seu domicílio ou no local que haja indicado.


No caso em apreço, não tendo sido posta em causa a validade do documento policial apresentado pelo funcionário, em cumprimento do n.º 4 do artigo 33.º do citado Decreto-Lei n.º 100/99, o mesmo faz prova plena dos factos a que respeita, isto é, da sua presença na Esquadra da Cova da Piedade da Polícia de Segurança Pública, no dia e na hora em que ocorreu a verificação domiciliária da doença, a fim de prestar declarações no âmbito de um processo em que era queixoso, processo este respeitante a uma situação de ruído que ameaçava o sossego dos moradores da Rua Rosas do Pombal e da Avenida D. Leonor daquele localidade, também devidamente comprovada.


Importa agora atender ao circunstancialismo concreto que motivou essa presença naquela Esquadra e que, devo salientar, se deve ter por cabalmente esclarecido, quer através das explicações prestadas, quer através dos documentos idóneos exibidos.


Se é certo que ele não estava obrigado a deslocar-se ali no dia em questão, não tendo portanto actuado no cumprimento de qualquer dever, é também certo que agiu em defesa dos seus direitos e interesses, bem como dos dos vizinhos que representa, e, como tal, no exercício legítimo de um direito de queixa. E por esse facto não pode, obviamente, ser penalizado.


Tratando-se assim da formalização de uma queixa legítima, ficou ainda sobejamente demonstrado que, pelo dia em que se estava, se tratou também de uma queixa urgente e oportuna. Na verdade, era então uma sexta-feira, véspera de fim de semana, o que, fundadamente, fazia recear o agravamento da situação de ruído na zona da sua residência, contra a qual, de resto, o funcionário havia sido instruído a reagir através do recurso às autoridades policiais.


Como se sabe, ele fora notificado há bem pouco tempo do despacho do Ministério Público, que arquivava o processo de inquérito iniciado com a queixa que apresentara contra os responsáveis pelo ruído que afectava o seu descanso e o dos demais moradores na zona em questão.


Nesse despacho, concluindo-se que os factos relatados não consubstanciavam a prática de qualquer crime, esclarecia-se expressamente que os mesmos se enquadravam no regime legal sobre a poluição sonora, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 292/2000, de 14 de Novembro, do qual logo se transcreveu, entre outras normas, a do n.º 1 do artigo 10.º, que dispõe que “quando uma situação de vizinhança seja susceptível de constituir ruído de vizinhança, os interessados têm a faculdade de apresentar queixas às autoridades policiais da área”.


Ora, neste circunstancialismo, é forçoso reconhecer que o funcionário actuou com a diligência e cuidado do homem médio: notificado do arquivamento do processo de inquérito, iniciado com queixa por si apresentada, e informado de que os interessados, em situação de ruído de vizinhança, têm a faculdade de apresentar queixas às autoridades policiais da área, foi à Esquadra da Cova da Piedade naquela sexta-feira, movido pelo receio fundado do agravamento da situação de que se queixava com a aproximação do fim de semana, solicitar a intervenção das autoridades policiais.


E não pode, por isso, considerar-se que não ocorreram razões que tenham justificado a sua deslocação àquela Esquadra nesse dia e hora, em que, aliás, o mesmo não estava obrigado a permanecer em casa, mas antes que essa deslocação se justificou por motivos compreensíveis e razoáveis.


De todo o modo, devo sublinhar que, ainda que tais motivos não permitissem julgar a ausência justificada, nos termos do Decreto-Lei n.º 100/99, de 31 de Março, impediriam sempre o juízo de censura disciplinar que sobre ela pudesse recair, o qual, como decorre do disposto no n.º 2 do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, não se basta com a não apresentação de justificação considerada adequada à luz daquele diploma, exigindo antes que os motivos invocados e provados pelo funcionário não sejam, de todo, motivos atendíveis.



III – CONCLUSÃO


Pelo exposto, concluindo, com segurança, que o funcionário deu integral cumprimento ao ónus que legalmente lhe era imposto, não sendo, outrossim, legítimo a essa Câmara Municipal avaliar discricionariamente os factos constantes do documento policial por ele exibido, o qual não foi posto em causa, na sua veracidade e materialidade, entendo exercer o poder que me é conferido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, e RECOMENDAR a V. Exa: 







Que seja revogado o acto administrativo que injustifica as faltas dadas pelo funcionário XXXX, no período compreendido entre 1 e 27 de Outubro de 2002, bem como a decisão de instauração de procedimento disciplinar que nele se fundou, por incorrecta interpretação e aplicação dos nºs. 1 a 4 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 100/99, de 31 de Março, justificando-se-lhe essas mesmas faltas, com todas as consequências legais.


Permito-me lembrar a V. Exa. que, nos termos do estatuído nos nºs. 2 e 3 do artigo 38.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, deve ser comunicada a este órgão do Estado a posição que venha a ser assumida quanto à presente Recomendação, tendo um eventual não acatamento de ser sempre fundamentado.



O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues