RECOMENDAÇÃO N.º 1/A/2002
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)


 


Entidade visada: Director-Geral do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras
Nossa Ref.ª – Procº.: R-2304/01 (Aç)
Data: 2002/01/24
Área: A4
Assunto: Capitão da Força Aérea na reserva TC – gratificação



§1 – INTRODUÇÃO


O presente processo foi aberto no interesse do então Chefe da Delegação Regional de Angra do Heroísmo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (adiante, S.E.F.), capitão da Força Aérea na reserva TC, e a situação reclamada é relativa ao montante da gratificação atribuída pelo exercício de funções no S.E.F., após passagem à situação de reserva, nos termos do disposto no artigo 84º, nº 1, do Decreto-Lei nº 440/86, de 31 de Dezembro.


É a seguinte a situação cuja apreciação foi suscitada ao Provedor de Justiça:








– o interessado é Capitão da Força Aérea, na situação de reserva, e exercia funções, em regime de requisição, no S.E.F.;


– quando passou à situação de reserva, o interessado vencia pelo escalão 5 do posto de Capitão da Força Aérea e recebida, ainda, o suplemento da condição militar;


– por despacho conjunto de 06/11/90, publicado no D.R., II série, nº 275, de 28/11/90, (p.12975), o interessado foi autorizado a continuar a exercer funções, em regime de requisição, no S.E.F.;


– no mesmo despacho, foi atribuída ao interessado uma gratificação, pelo exercício de funções no S.E.F., de montante igual a um terço do vencimento a elas inerente;


– uma vez que não estava estipulada a remuneração do Chefe de Delegação, o interessado optou pela estatuto remuneratório de origem;


– à data da passagem à situação de reserva, o interessado estava no escalão 5 do posto de Capitão da Força Aérea; contudo, a gratificação que lhe foi atribuída foi de um terço do vencimento correspondente ao escalão 1 do mesmo posto.



A questão em debate consistia, pois, em saber qual a remuneração relevante para o cálculo do valor da gratificação a que o interessado tinha direito.


Com efeito, existia uma divergência interpretativa que se consubstanciava na consideração de que o vencimento inerente às funções exercidas no S.E.F. correspondia:








– no entender do interessado, ao posto de Capitão da Força Aérea, escalão 5, uma vez que era neste escalão em que estava posicionado à data da passagem à reserva;


– ou, no entender do S.E.F., ao escalão 1, porque esta era a remuneração base do posto de Capitão da Força Aérea.




§2 – QUESTÃO PRÉVIA: A FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO


Para além da questão central contida na reclamação e atrás exposta, a queixa mencionava o facto da decisão contestada não ter sido devidamente fundamentada.


Da leitura da documentação constante do processo – a qual inclui cópia das posições assumidas tanto pelo S.E.F. como pela Direcção-Geral do Orçamento – não pode deixar de se concluir que não foi produzida uma explanação sucinta dos motivos de facto e de direito que fundaram a decisão, pelo que não é claro o processo cognoscitivo que levou à interpretação perfilhada. A decisão em causa padeceu de falta de fundamentação.


Ainda assim, existem elementos que permitem uma aproximação às posições postas em crise.



§3 – AS POSIÇÕES DO S.E.F. E DA 4ª DELEGAÇÃO DA D.G.O.


O S.E.F. informou a Extensão dos Açores deste órgão do Estado (vide ofício nº 10268, de 17/07/2001) que, em face da existência de diversos elementos das Forças Armadas na situação de reserva a receber pensões de reforma diferenciadas, suscitou parecer à 4ª Delegação da Direcção-Geral Orçamento (adiante, D.G.O.), tendo-se esta pronunciado no sentido da concordância com a interpretação que vinha sendo seguida (vide ofício nº 1001, PROC. 879, LIV. 4, DIV. 31/2, sem data).


Atendendo ao facto deste último ofício apenas referir que no entender desta Delegação, a interpretação dada por esse Serviço relativamente ao cálculo do montante da gratificação está correcta, a Provedoria de Justiça questionou directamente a 4ª Delegação da D.G.O. e solicitou a exposição sucinta das razões, de facto e de direito, que sustentaram aquela posição. Contudo, a resposta recebida (vide ofício nº 1321, de 20/08/2001) somente referiu que entendemos, salvo melhor opinião, que a gratificação, atribuída ao capitão TC, deverá ser calculada tendo por base a remuneração correspondente às funções que exerce, como se encontra determinado no despacho conjunto que autorizou o exercício das mesmas.


Subsiste, pois, tanto por parte do S.E.F. como por parte da D.G.O. uma fundamentação insuficiente da decisão reclamada.



§4 – A QUESTÃO DO MONTANTE DA GRATIFICAÇÃO


Já se viu que o interessado é Capitão da Força Aérea, na situação de reserva, e que, quando passou à situação de reserva, vencia pelo escalão 5 daquele posto (e que recebida, ainda, o suplemento da condição militar). Também se sabe que, por despacho conjunto de 06/11/90, publicado no D.R., II série, nº 275, de 28/11/90, (p.12975), foi autorizado a continuar a exercer funções, em regime de requisição, no S.E.F.


Esta autorização foi dada nos termos do disposto no artigo 84º do Decreto-Lei nº 440/86, de 31 de Dezembro, cujo nº 1, in fine, dispunha que o montante da gratificação atribuída deveria ser fixada no mesmo despacho que autorizava o desempenho de funções no S.E.F., tendo como limite máximo os valores fixados na lei geral (nº 2).


O despacho em apreço atribuiu ao interessado, pelo exercício de funções no S.E.F., uma gratificação de montante igual a um terço do vencimento a elas inerente. Faça-se notar, neste ponto, que estando a matéria em debate restringida à interpretação desta expressão, seria de esperar que as diversas posições que foram sendo assumidas a ela se referissem, e sobre ela trabalhassem. Contudo, ao invés, nem o S.E.F. nem a 4ª Delegação da D.G.O. (pelo menos no primeiro momento em que foi chamada a pronunciar-se) trataram de explicar o seu entendimento sobre a essência da discordância, a saber: qual era o vencimento inerente às funções que o interessado desempenhava.


Assim sendo, não restam dúvidas de que, caso estivesse legalmente estipulada a remuneração a que corresponde o cargo de Chefe de Delegação, seria devido ao interessado o montante correspondente a um terço desse vencimento. Contudo, não estando definida em abstracto essa remuneração, a que montante se deveria considerar reportada a afirmação vencimento inerente às funções desempenhadas ?


Levando em atenção o facto das gratificações terem natureza similar aos abonos, subsídios e ajudas de custo, razão pela qual não constituem remuneração (vide, por todos, acórdão do S.T.A., de 03/07/80, proferido no processo 13056), parecem existir fundados motivos para buscar em outros institutos do ordenamento jurídico um traço de ligação com a questão que aqui nos ocupa.


Veja-se, para começar, que o suplemento remuneratório por trabalho prestado em condições de risco, penosidade ou insalubridade é apurado com base no valor do índice corresponde ao primeiro escalão da categoria de ingresso em cada carreira, nos termos do disposto no artigo 6º, nº 1, do Decreto-Lei nº 53-A/98 (vide, quanto a este aspecto, a anotação 804 de PAULO MOURA, Função Pública, regime jurídico…, 1º Vol., Coimbra Editora, 1999, p.326). Já no caso do suplemento para a fixação na periferia, o seu montante é obtido pela multiplicação de determinado coeficiente pela remuneração base, i.e. aquela que o funcionário ou agente efectivamente aufere (idem, p.331); e o cálculo do subsídio de férias é também feito em função da remuneração base efectivamente auferida (idem, p.364).


Verifica-se, pois, que esta aproximação a outros institutos jurídicos afins não só revela grandes limitações como não permite encontrar um animus comum com aplicação à presente situação.


Diferentemente, na presente situação assume particular relevância o facto do interessado ter iniciado funções, no S.E.F., no ano de 1987 (vide cópia do termo de posse, de 06/06/87) e a circunstância do despacho conjunto que autorizou o prosseguimento do exercício de funções – destaque-se que o despacho autorizava, expressamente, que o interessado continuasse a exercer funções – ter sido emitido em 06/11/90. É que, indubitavelmente, nesta data (06/11/90), não só estava fixado o vencimento inerente ao desempenho de funções pelo interessado, como este vinha já sendo remunerado com aquele montante desde 1987.


A circunstância do interessado ter optado pelo estatuto remuneratório da Força Aérea em nada pode infirmar este entendimento, uma vez que resultou directamente de permissão legal conferida pelo disposto no nº 2 do artigo 64º do Decreto-Lei nº 440/86, de 31 de Dezembro.


Assim sendo, a solução da situação em debate deve buscar-se, necessariamente, através da conjugação do disposto no artigo 84º, nº 1, do Decreto-Lei nº 440/86, de 31 de Dezembro (que prevê a atribuição de gratificação aos indivíduos na situação de reserva que hajam sido autorizados a desempenhar funções no S.E.F.), no despacho conjunto de 06/11/90 (que dispõe que o montante da gratificação será igual a um terço do vencimento inerente ao exercício das funções) e no artigo 64º, nº 2, daquele mesmo diploma (que permite a opção pelo estatuto remuneratório da Força Aérea).


Ora, neste contexto, dificilmente se poderá obter uma resposta que não parta da seguinte premissa: uma vez que o Senhor Capitão TC era, desde 1987, Chefe de Delegação, à data do despacho conjunto tinha já fixada a remuneração correspondente ao vencimento inerente às funções que desempenhava. Deste modo, o despacho conjunto que, em 06/11/90, autorizou a continuação do exercício de funções pelo Senhor Capitão TC levou em consideração o facto de este ter já remuneração fixada e não pôde deixar de assumir como referência da gratificação o vencimento efectivamente recebido pelo interessado em 06/11/90.


E era este – porque não poderia deixar de ser – o vencimento inerente às funções que o interessado continuava a exercer.


Sendo assim, o valor da gratificação devida, nos termos do despacho conjunto de 06/11/90, deveria ser de montante igual a um terço do vencimento correspondente ao escalão 5 de Capitão da Força Aérea.


Neste ponto, deve destacar-se a circunstância da matéria da ilegalidade resultante do facto do montante da gratificação atribuída não ter sido fixado com base na remuneração correspondente ao escalão 5 do posto de Capitão da Força Aérea ser de difícil resolução uma vez que “nenhuma norma aborda especificamente a restituição de vencimentos processados por defeito” (idem, p.393).


Mas, ainda que assim seja, não pode esquecer-se que o regime da administração financeira do Estado definido no Decreto-Lei nº 155/92, de 28 de Julho, trata da questão da reposição dos dinheiros públicos e o respectivo artigo 35º, nº 1, contém uma regra geral que deve ser aplicável à situação em apreço: devem ser restituídas as importâncias de quaisquer receitas que tenham dado entrada nos cofres do Estado sem direito a essa arrecadação. Diferentemente do que era entendido no vigência do Decreto-Lei nº 324/80 – que a obrigação da Administração pagar os vencimentos aos funcionários prescrevia no prazo de 20 anos (vide acórdão do S.T.A., de 22/10/91, BMJ, nº 410, p.516) – é hoje pacífico, em face do disposto no artigo 35º, nº 3, do Decreto-Lei nº 155/92, de 28 de Julho (cuja redacção foi alterada pelo Decreto-Lei nº 113/95, de 25 de Maio) que o direito à restituição prescreve no prazo de cinco anos após a data da arrecadação indevida.


Não obstante o fica dito, importa afastar eventuais dúvidas que possam surgir resultantes do facto de ter sido largamente ultrapassado o prazo para efectivar a revogação do acto inválido (um ano, nos termos do disposto no artigo 141º, do C.P.A.) ou da “ilegalidade [ter perdido] a sua força invalidante” (ESTEVES DE OLIVEIRA, Código do Procedimento Administrativo comentado, 2ª edição, Almedina, 1998, p.661) ou, por outras palavras, da circunstância do acto de processamento de vencimentos poder ser tido como um acto administrativo constitutivo de direitos e, como tal, ter-se convalidado na ordem jurídica.


Com efeito, poder-se-ia defender que os actos de processamento de vencimentos que enfermam de anulabilidade apenas poderiam ser revogados com fundamento em ilegalidade no prazo máximo de um ano, sob pena de formarem caso resolvido (decorrente da não impugnação atempada). Esta posição partiria do entendimento de que, como refere PAULO MOURA, “nessa hipótese, seria lícito pensar-se que a não impugnação de tal acto no prazo máximo de um ano conduziria à formação de caso resolvido, com a consequente cessação do dever dos serviços administrativos procederem à restituição dos abonos deixados de processar ou processados por defeito” (ob.cit., p.394). Mas, como prontamente responde o mesmo Autor, “ainda que houvesse lugar à formação de caso resolvido, não estaria a Administração Pública desvinculada do dever de proceder à restituição das quantias deixadas de abonar aos seus funcionários ou agentes. Na verdade, o caso resolvido só se poderia formar sobre as quantias efectivamente pagas e já não sobre as que ficaram por processar” (idem).


Afastada a possibilidade de invocação do regime da anulabilidade dos actos administrativos chame-se a atenção, acrescidamente, para o facto do não processamento de abonos, ou o processamento por defeito de abonos legalmente devidos, ferir gravemente o direito fundamental à retribuição do trabalho e, como tal, ser susceptível de conduzir à nulidade parcial desse acto de processamento de vencimentos (idem). Ora, como se sabe, a nulidade é invocável a todo o tempo.


Em qualquer dos casos (i.e., independentemente da posição que vier a ser assumida relativamente à questão da eventual prescrição) é inegável que – para além de subsistir a questão da injustiça resultante do pagamento, durante cerca de dez anos, de uma gratificação de valor inferior aquele que era devido ao interessado – perdura inequivocamente a obrigatoriedade legal do S.E.F. pagar os abonos que, (pelo menos) nos últimos cinco anos, não foram processados.


Ainda assim, e para que não restem dúvidas, deve afirmar-se com clareza a posição da Provedoria de Justiça: o montante devido ao interessado é aquele que resulta do facto de, durante cerca de dez anos, ele ter recebido uma gratificação de valor inferior aquele que lhe era devido.



§5 – CONCLUSÕES


Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, recomendo:








Que o S.E.F. proceda ao pagamento ao Senhor Capitão TC dos montantes da gratificação que, nos termos expostos na presente recomendação, eram devidos e não foram mensalmente processados.



Permito-me chamar a atenção de V.Ex.ª para a circunstância da presente recomendação não dispensar, nos termos do disposto no artigo 38º, nºs 2 e 3, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, a comunicação a este órgão do Estado da posição que venha a ser assumida em face das respectivas conclusões.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues