RECOMENDAÇÃO N.º 3/B/2002
[Art. 20º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


Entidade visada: Sua Excelência o Ministro da Cultura
Nossa Ref.ª – Proc.º: P-1313/97
Data: 2002/09/27
Assunto: Cultura; espectáculos tauromáquicos; assistência médica; responsabilidade civil extracontratual.


 
I – Exposição de motivos


1. Concluída a instrução de um processo organizado na Provedoria de Justiça, para apreciação de uma queixa motivada pelo reiterado incumprimento da disciplina legal dos espectáculos tauromáquicos, entendo expor a Vossa Excelência as conclusões da apreciação que efectuei, nos termos e com os fundamentos seguintes:


2. Em reclamação apresentada, foi apontado não se conformar a realização de touradas com o disposto no art. 23º, nºs. 7 e 8 do Regulamento do Espectáculo Tauromáquico, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº62/91, de 29 de Novembro. Isto, por não se encontrar garantida a prestação de assistência e de cuidados médicos nos termos ali definidos.


3. Diligenciou a Provedoria de Justiça pela audição da Inspecção-Geral das Actividades Culturais, expondo os factos descritos na queixa e visando conhecer do seu fundamento.


4. Viria o Senhor Inspector-Geral a reconhecer a procedência da reclamação, retorquindo não dispor o Sistema Nacional de Saúde de meios humanos e técnicos que permitam assegurar o cumprimento das citadas exigências regulamentares. Do mesmo passo, foi-nos revelado terem sido definidas instruções no ano de 1992, em derrogação de tais preceitos, para melhor conformar a disciplina reguladora à prática adoptada (Of. nº6/GIG/GAC/97).


5. Manifestou, ainda, o Senhor Inspector-Geral das Actividades Culturais, por via de comunicação recebida em 5.05.1997, o propósito de, em concertação com as demais entidades competentes, proceder à reavaliação da matéria.


6. Confrontado com o teor dos esclarecimentos prestados, viria a reclamante, porém, declarar que a generalidade dos espectáculos se realizaria em desrespeito às pertinentes normas regulamentares, por não disponibilizarem os promotores nem soro nem sangue nem plasma, não assegurando, tão pouco, a presença de uma equipa médica e de uma ambulância especialmente preparada.


7. A reclamante exibiria reprodução de um ofício do Hospital Distrital de Viseu, de que se junta cópia, em cujos termos se evidencia ter o Serviço de Imuno-Hemoterapia do Hospital sido contactado pelo promotor de um espectáculo tauromáquico para cedência de sangue e de plasma, não tendo o pedido sido satisfeito “por não haver condições de conservação quer do sangue, quer do plasma.” (doc.1)


8. Em face do exposto, foi inquirido o Senhor Inspector-Geral das Actividades Culturais sobre a disponibilidade para ponderar a adopção de solução que comporte a revisão do Regulamento do Espectáculo Tauromáquico, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº62/91, de 29 de Novembro.


9. Admitiu o Senhor Inspector-Geral das Actividades Culturais a eventualidade de virem a ser adoptadas medidas de índole legislativa (Of.nº21/GIG/IGAC, de 18/02/2000).


10. Esclarecimentos mais detalhados vieram a ser facultados ulteriormente, aditando-se, em síntese, o seguinte:








(a) “Desde a entrada em vigor do Regulamento do Espectáculo Tauromáquico, que se configurou difícil de cumprir, em parte, o preceituado nos números 7 e 8 do artigo 23º do dito Regulamento”;


(b) “À data de entrada em vigor do Regulamento as ambulâncias medicalizadas eram escassas para fazer face à quantidade de espectáculos realizados um pouco por todo o país, principalmente no verão.” (Ofº SIG/IGAC, de 30.10.2000).


(c) A solução consignada no art. 23º, nºs. 7 e 8 do Regulamento dos Espectáculos Tauromáquicos foi proposta pela Direcção-Geral de Saúde, tomando por padrão as praças de touros de Santarém, Moita e Alcochete. Tal solução mostra-se, porém, inexequível quanto à maioria dos espectáculos tauromáquicos. Na verdade, cerca de 52% das praças de touros localizam-se no Distrito de Portalegre, nas imediações de zonas fronteiriças, em pequenas localidades, afastadas de centros urbanos. Nestas situações não é viável garantir o meio ambulância medicalizada e a presença de equipa médica. Ora, o Regulamento aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 62/91, de 29 de Novembro não prevê quaisquer restrições de índole geográfica à promoção dos espectáculos. Acresce que a larga maioria dos espectáculos ocorre na época de veraneio o que coloca dificuldades acrescida ao rigoroso cumprimento dos preceitos regulamentares. Assim, a IGAC fixou instruções no sentido de os espectáculos tauromáquicos não poderem iniciar-se sem que o director da corrida diligencie previamente junto do estabelecimento hospital da zona, informando os serviços de urgência da data do evento, requerendo a presença de uma ambulância e a designação de um médico de serviço à praça. O médico de serviço preenche um questionário atinente aos elementos disponíveis no posto de socorro.


(d) Informou, ainda, o Senhor SubInspector-Geral não ter a IGAC ponderado o recurso a entidades privadas prestadoras de cuidados de saúde como forma de garantir o cumprimento das obrigações que neste domínio adstringem o director de corrida. Todavia, tal hipótese terá sido já equacionada pela Direcção-Geral de Saúde e pelo Instituto Nacional de Emergência Médica (1).



11. Inquirida a Direcção-Geral de Saúde, ser-nos-ia transmitido o seguinte:








“face aos recursos actualmente existentes na área da Cirurgia não nos parece possível que o Serviço Nacional de Saúde possa assegurar outro tipo de cuidados que não o do Serviço de Urgência no hospital da área de atracção onde se realizam os espectáculos tauromáquicos. Assim, ou a Entidade Organizadora assegura a contratação de uma equipa cirúrgica (já que a presença de apenas um cirurgião é inaceitável do ponto de vista técnico, face a uma situação de emergência) ou há necessidade de rever a legislação pela impossibilidade do seu cumprimento” (v.doc.2).



12. Por seu turno, esclareceu o Instituto Nacional de Emergência Médica, por via de comunicação dirigida à Inspecção-Geral das Actividades Culturais:








“a presença de ambulância medicalizada implica a presença, na ambulância, de um médico e dois elementos com formação em TAS. Por outro lado a exigência de sangue e plasma a bordo das ambulâncias não está de acordo com a carga habitual das ambulâncias INEM (…) Assim pensamos que a entidade organizadora deverá ter o cuidado de assegurar este serviço através de qualquer entidade legalmente autorizada pelo que não terá que ser necessariamente o INEM a assegurar a presença de uma ambulância medicalizada” (of.de 28/11/2000).



II – Apreciação


1. Fica, assim, largamente demonstrada a não conformação dos espectáculos tauromáquicos com as pertinentes exigências regulamentares em matéria de assistência médica e de prestação de cuidados de saúde. Essa verificação encontra-se na base da orientação perfilhada pela Inspecção-Geral das Actividades Culturais que, pese embora mais ajustada à prática adoptada, é claramente ilegal.


2. Ora, não posso deixar de manifestar viva reprovação perante a posição assumida pela Inspecção-Geral, ao desresponsabilizar os promotores dos espectáculos do cumprimento dos deveres regulamentares, sem que, concomitantemente, se providencie por rever os parâmetros legais, em consonância com o conteúdo das novas instruções.


3. Pode a actual situação propiciar aos que sofram lesão nos recintos de espectáculos tauromáquicos, por falta de pronta assistência clínica, o direito a deduzirem pretensão indemnizatória contra o Estado por facto ilícito (art. 6º, do Decreto-Lei nº48.051, de 21 de Novembro de 1967). Isto, por não serem legítimas as instruções fixadas, ao aligeirarem o zelo e a diligência que o legislador, ponderados os especiais riscos da actividade, entendeu erigir em parâmetro da actuação dos promotores de espectáculos para precaução da integridade dos artistas intervenientes.


4. Mal se compreende como possa a Administração Pública dispor sobre os requisitos aplicáveis ao exercício de uma actividade, disciplinada por regulamentação específica, afastando, desse modo, a observância dos condicionalismos definidos pelo legislador.


5. Desta forma, os órgãos administrativos sobrepõem critérios autónomos de avaliação à valoração efectuada pelo poder legislativo, eximindo os sujeitos destinatários da norma jurídica do seu rigoroso cumprimento. Julgo não oferecer dúvidas o carácter ilícito da conduta sob apreciação (2).


6. Nesta perspectiva, cumpriria equacionar procedimentos que permitam suprir o não cumprimento dos parâmetros reguladores da prestação de cuidados de saúde nos recintos dos espectáculos tauromáquicos.


7. Entendo merecerem ponderação duas soluções de ordem diversa: o equacionar de meios que assegurem a prestação dos cuidados mínimos nos termos definidos pelo Regulamento em vigor (3), ou, em alternativa, a revisão das disposições regulamentares que se mostram inobservadas por forma a conformar a lei à prática sedimentada.


8. No plano da primeira linha de orientação, e perante a incapacidade do Sistema Nacional de Saúde, cuidar-se-ia de indagar da possibilidade de a necessária colaboração (na disposição dos meios que o legislador estimou necessários para salvaguarda da segurança pública) ser prestada por entidades privadas prestadoras de cuidados de saúde e de assistência médica, nos termos sugeridos pela Inspecção-Geral de Saúde. A admitir a viabilidade desta solução, impor-se-ia, ainda, neste âmbito:








(a) a definição de novas instruções dirigidas aos serviços da Inspecção-Geral das Actividades Culturais,


(b) a sua divulgação junto dos agentes organizadores dos espectáculos e


(c) um rigor acrescido no exercício dos poderes de fiscalização.



9. De outro modo, cumpriria desencadear os pertinentes procedimentos de índole legislativa para revisão do Regulamento do Espectáculo Tauromáquico, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº62/91, de 29 de Novembro, em ordem à reformulação das disposições compreendidas no art. 23º, nºs 7 e 8 do sempre citado regulamento, por forma a que o seu conteúdo reflicta quanto foi definido pela autoridade administrativa.


10. A manter-se inalterada a situação vivida actualmente, incorre o Estado num quadro de responsabilidade que não parece estar em condições de assumir, do mesmo passo que permite aos artistas tauromáquicos representarem um risco contido nos seus espectáculos que, ao fim e ao cabo, não encontra tradução real .


III – Conclusão








De acordo com o exposto, entendo RECOMENDAR a Vossa Excelência, no exercício do poder que me confere a disposição compreendida no art. 20º, nº1, alínea a), da Lei nº9/91, de 9 de Abril, que se digne tomar uma posição clara sobre o problema exposto, após prévia e adequada ponderação dos benefícios na adopção de uma ou outra solução, tendo em conta a natureza dos interesses públicos em presença e os recursos disponíveis, desencadeando mecanismos que permitam suprir a não conformação das orientações adoptadas pela Inspecção Geral das Actividades Culturais, e, por conseguinte, a promoção dos espectáculos tauromáquicos, com os pertinentes parâmetros legais no domínio da prestação de cuidados de saúde e de assistência médica.



Solicito a Vossa Excelência que, em cumprimento do dever consagrado no art. 38º, nº2, do Estatuto aprovado pela Lei nº9/91, de 9 de Abril, se digne informar sobre a sequência que o assunto venha a merecer.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 





Notas de rodapé
:


(1) A informação condensada nos campos(c) e (d)) foi prestada pelo Senhor SubInspector-Geral das Actividades Culturais, em reunião realizada nas instalações da Provedoria de Justiça em 8.02.2002, na presença da Senhora Assessora responsável pela instrução do Processo.
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(2) Permito-me aderir às considerações expendidas por Maria da Glória Dias Garcia, quando afirma “O reconhecimento da responsabilidade estadual ou do poder exercido a nível estadual pelas tarefas que tem de desempenhar apresenta-se como o reverso do reconhecimento prévio dos direitos fundamentais, em si mesmos garantia de um agir responsável, enquanto traçam os limites do Estado como tarefa”. (…) “A responsabilidade do Estado, na medida em que este só existe para cumprir tarefas específicas, para as quais o direito o habilita a agir através de órgãos próprios, tende a fundar-se não na culpa individualizada, mas na ilicitude. Isto porque a razão de agir do Estado o obriga desde logo, a agir bem. Como não há actuação sua à margem do direito, toda a acção obedece a um dever jurídico: o de agir conforme ao direito” (A Responsabilidade Civil do Estado e Demais Pessoas Colectivas Públicas, Col. Estudos e Documentos, Conselho Económico e Social, Lisboa, 1996)
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(3) A Direcção-Geral de Saúde parece manifestar oposição ao conteúdo das novas instruções ao julgar inaceitável a presença de um único cirurgião no recinto dos espectáculos (cfr.supra,ponto 8)
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