RECOMENDAÇÃO N.º 2-A/2006
[artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


 


Entidade visada: Secretário Regional da Educação e Ciência
Proc.º: R-1737/05 (Açores)
Data: 19-05-2006


Assunto: Cessação de funções dirigentes. Gestão corrente. Efeitos remuneratórios.


 


I
INTRODUÇÃO


Em Abril de 2005, iniciou-se na Extensão dos Açores da Provedoria de Justiça um processo aberto no interesse da Senhora Dra. XXX, conselheira de Orientação Profissional Assessora, do quadro de pessoal da Agência para a Qualificação, Emprego e Trabalho de Angra do Heroísmo (AQETAH), que contesta uma decisão do Ex.mo Senhor Director Regional da Juventude, Emprego e Formação Profissional. 


A controvérsia teve origem na discordância daquele serviço operativo e da funcionária quanto à exigência de reposição de 996,40 €, percebidos a título de vencimentos e despesas de representação, no período que vai de 29 de Agosto a 6 de Outubro de 2003. 


De facto, enquanto a Direcção Regional entende que tal remuneração foi indevidamente paga, uma vez que a funcionária teria cessado funções dirigentes à data da entrada em vigor do diploma que operou a extinção da Agência para a Qualificação e Emprego de Angra do Heroísmo, e não à data de início de funções do dirigente do serviço criado (a AQETAH), a Senhora Dra. XXX afirma que, no período que mediou entre aqueles dois momentos, tais funções foram efectivamente por si exercidas a título de gestão corrente.



II
QUESTÃO PRÉVIA  


A reclamante pondera que a atribuição da indemnização a que teve direito (v. n.º 10 do artigo 32.º da Lei n.º 49/99, de 22 de Junho) deveria ter tido em conta o facto de ser conselheira de Orientação Profissional Principal à data da cessação da comissão de serviço. 


A indemnização foi calculada tendo em conta a diferença entre a remuneração que deixou de auferir como chefe de divisão, e a que receberia como assessora. 


É justo que assim tenha sido, pelo que, neste aspecto particular, julgo que não assiste razão à Senhora Dra. XXX. 


O facto de o diploma em questão prever que os funcionários nomeados para cargos dirigentes têm direito, findo o exercício dessas funções, ao provimento em categoria superior à que possuam à data da cessação do exercício de funções dirigentes, a atribuir em função do número de anos de exercício continuado nestas funções, agrupados de harmonia com os módulos de promoção na carreira, associado ao direito a uma indemnização de montante igual à diferença entre a remuneração do cargo dirigente cessante e a remuneração da respectiva categoria calculada em função do tempo que faltar para o termo da comissão, faz com que não possa deixar de concluir-se que tal categoria há-de ser aquela que resultar do provimento na categoria superior, sob pena de a indemnização se transformar num prémio, rectius num enriquecimento sem causa (V. artigo 32.º da lei citada). 



III
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
A


A fim de permitir o adequado enquadramento da situação, começo por recordar alguns factos relevantes. 






 1. A Senhora Dra. XXX foi nomeada como Chefe de Divisão da Agência para a Qualificação e Emprego de Angra do Heroísmo, a 25 de Junho de 2002. 

2. A Agência para a Qualificação e Emprego de Angra do Heroísmo foi extinta pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 27/2003/A, de 28 de Agosto, que aprovou a orgânica da então Secretaria da Regional da Educação e Cultura (hoje da Educação e Ciência — v. Decreto Regulamentar Regional n.º 4/2006/A, de 11 de Janeiro — ), sendo criada no seu lugar a Agência para a Qualificação, Emprego e Trabalho (resultante da fusão daquela com a Divisão das Relações de Trabalho). 


3. Do processo existente na Direcção Regional constam autorizações de processamento salariais (subscritas pela Dra. XXX), sendo a última datada de 1 de Outubro de 2003, as quais tinham na sua génese uma delegação de competências (v. ofício cit. em assunto). 


4. A 6 de Outubro de 2003, foi nomeada a dirigente da novel Agência para a Qualificação, Emprego e Trabalho.


 B


Em matéria de exercício de cargo dirigente, na alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 49/99, de 22 de Junho, previa-se expressamente que a comissão de serviço cessa automaticamente “por extinção ou reorganização da unidade orgânica (…)”.


 C


1. Como se disse anteriormente, a reclamante afirma que “no período que mediou entre a publicação da nova estrutura orgânica e a entrada da nova chefia em funções, (…) praticou todos os actos destinados a assegurar o regular funcionamento do serviços, designadamente o processamento salarial ” e que, por isso, “entende que deverá beneficiar da respectiva retribuição (…)”. 


2. A Direcção Regional da Juventude, Emprego e Formação Profissional, ao invés, defende que: 



a) As funções dirigentes nunca poderiam ser exercidas em gestão corrente, pois não estava em causa a manutenção e continuidade de serviço reformulado; 


b) Não existia, para os casos de reestruturação do serviço, norma como a do n.º 5 do artigo 18.º da mesma Lei n.º 49/99, que determinava para os casos em que a comissão não fosse renovada, que “(A)té à nomeação do novo titular, as funções são asseguradas em regime de gestão corrente ou por substituição (…) “; 


c) O entendimento de que a reclamante tinha cessado funções dirigentes em 29 de Agosto foi determinante para a indemnização, bem como para a nomeação na categoria de conselheira de orientação profissional assessora, ao abrigo da norma relativa ao direito à carreira dos dirigentes (artigo 32.º da Lei n.º 49/99, de 22 de Junho), indemnização e nomeação que não teriam ocorrido se a funcionária não tivesse cessado a comissão de serviço com efeitos automáticos; 


d) A assinatura das folhas salariais nada prova, já que sempre poderia ser feita, na falta de dirigentes, pela mesma funcionária na qualidade de funcionário mais antigo de categoria superior, em exercício de funções, conforme artigo 41.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo. 


e) O despacho do Director Regional da Juventude, Emprego e Formação Profissional, de 4 de Novembro de 2004, exarado na informação n.º 5/2004/GEAJ/PT, considera que a Dra. XXX cessou funções a 29 de Agosto de 2003, por força da entrada em vigor do Decreto Regulamentar Regional n.º 27/2003, de 28 de Agosto, que extinguiu a Agência para a Qualificação e Emprego de Angra do Heroísmo.



D


Passo a apreciar os argumentos aduzidos pelo Ex.mo Senhor Director Regional, para melhor concluir quanto à pertinência da pretensão da reclamante. 



1. É incontestável que uma reestruturação orgânica de um organismo público, para mais supondo uma fusão, faz cessar as comissões de serviço dos seus dirigentes. Mas daí não decorre uma cessação imediata, sem mais, de todas as funções e tarefas a ele cometidas. 


A análise da presente situação não dispensa uma articulada distinção entre comissão de serviço e exercício de funções dirigentes. 


O carácter automático da cessação da comissão de serviço “resulta do facto de o cargo exercido se extinguir, ou seja, o cargo cujas funções a pessoa desempenhava não existe mais. Não obstante, as pessoas continuam a exercer uma dada função. Da reorganização legal do serviço à sua integral implementação há-de necessariamente ocorrer um lapso de tempo.” (Sentença de 25 de Fevereiro de 2000, proferida no processo 82/99, do TAFPDL. Confirmada pelo acórdão do STA de 27 de Outubro de 2004, proferido no processo 46799). 


Ou, acompanhando o Parecer da Procuradoria Geral da República n.º 47/1996, publicado no Diário da República, II série, de 10 de Dezembro de 1997, o dirigente “manter-se no exercício de funções até à nomeação do novo titular de cargo (…) só se compreende por exigências fundamentais de interesse público: não deixar um vazio de direcção no espaço interinário, e por natureza tendencialmente breve, até à designação e início de funções de novo titular.”  


2. Do facto de não ser imposta a continuidade de funções até à efectiva substituição não se segue, sem mais, o fim do vínculo do dirigente cuja função cessou por extinção do lugar ao efectivo exercício de funções. “Na situação de reorganização de uma unidade orgânica, a cessação do exercício de funções pode ser — e em princípio é — automática atendendo ao facto da lei não impor o exercício de funções de gestão corrente.” (V. a Recomendação n.º 2/A/00, de 1 de Julho, deste órgão do Estado, dirigida ao Secretário Regional da Economia do Governo Regional dos Açores). 


Assim, a lei não proíbe que tais funções continuem a ser exercidas. Essa é a única conclusão que se retira do silêncio da lei. 


E a jurisprudência, como este órgão do Estado teve já oportunidade de lembrar ao Senhor Director Regional, confirma aquele entendimento. Embora por referência ao regime previsto no Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro, o acórdão abaixo transcrito é válido para o regime em apreciação (como, aliás, para o actualmente vigente): 


“Não se prevê expressamente (…) a situação jurídica em que fica o dirigente que, após a cessação automática da comissão de serviço por reorganização dos serviços, permanece a exercer as funções que desempenhava anteriores à cessação, até que a reorganização dos serviços já determinada se concretize. 


“No entanto, para a situação de não renovação de comissão de serviço por falta de manifestação expressa de intenção de renovação por parte do membro do Governo competente, esclarece-se que «o dirigente se manterá no exercício de funções de gestão corrente até à nomeação de novo titular do cargo». 


“Trata-se, aqui, de um outro caso de cessação automática da comissão e de continuação do exercício de funções após o momento em que a cessação ocorre, pelo que é manifesta a analogia entre a situação prevista naquele n.º 3 do art. 5.º e a que resulta da cessação automática prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 7.º, seguida de continuação do exercício pelo dirigente das funções que anteriormente vinha exercendo. 


“Por isso, de harmonia com o disposto no art. 10.º, n.º 1, do Código Civil, deverá preencher-se a lacuna de regulamentação relativa à situação jurídica do titular de cargo dirigente após a cessação automática da comissão de serviço por reorganização dos serviços, entendendo que este fica numa situação de exercício de funções de gestão corrente. (…) Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo de 26-11-1997, proferido no recurso n.º 34133, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 471, página 222.)”. — V. acórdão do STA de 27 de Outubro de 2004, proferido no processo 46799) —. 


Não é aceitável que o afastamento pela Administração Regional Autónoma de entendimento jurisprudencial de um Supremo Tribunal seja feita por recurso ao argumento de que pode haver muitas interpretações (v. of. n.º 615-P, de 19 de Dezembro de 2005, da Direcção Regional da Juventude Emprego e Formação Profissional). 


E justamente, não só da actuação concreta da Direcção Regional não pode retirar-se que tenha havido decisão de cessação efectiva de funções, como da actuação da Dra. XXX pode constatar-se que houve um efectivo exercício de funções. 


3. A atribuição de indemnização, bem como a nomeação na categoria de conselheira de orientação profissional assessora, ao abrigo da norma relativa ao direito à carreira dos dirigentes (artigo 32.º da Lei n.º 49/99, de 22 de Junho), nada provam quanto à efectiva manutenção do exercício de funções, porquanto é exactamente por referência à cessação da comissão, rectius à cessação ope legis da comissão, que tais direitos são aferidos (v. o acórdão citado). O tempo de exercício efectivo de funções é, para estes efeitos, irrelevante. 


4. A assinatura de folhas salariais, pelo contrário, prova que a Dra. XXX continuou a assegurar as funções inerentes ao cargo e direcção do serviço extintos, até ao início de funções da nova dirigente. 


“Manter-se no exercício de funções significa continuar no âmbito e no domínio da relação própria do cargo — tanto na subordinação, como no cumprimento pleno dos deveres e exigências, designadamente da disponibilidade e das competências definidas pela lei, rectius nos termos e nas condições que a lei define para a concreta situação.” (v. PPGR cit.) 


É certo que o exercício de funções de gestão corrente corresponde a um exercício limitado, já não ao exercício pleno do cargo, mas contempla, pelo menos, assegurar o expediente normal do serviço a extinguir, o pagamento de vencimentos dos funcionários, agentes e restantes trabalhadores, bem como os assuntos mais normais e repetidos nas funções desse serviço. 


A invocação da norma do artigo 41.º do Código de Procedimento Administrativo, que regula a substituição (1), parece desprezar o facto, de todo incontornável, de que o dirigente existia, não estava impedido, nem ausente nem em situação de falta, fora designado nos termos legais e exercia funções para prossecução do interesse público. (Poderia, inclusive, afirmar-se que a norma em causa, ao contrário, sublinha a importância de ser assegurada a continuidade de funções). 


5. Alega ainda o Senhor Director Regional que os seus despachos exarados nas informações n.º 17/SAA/2003, de 15 de Outubro, e n.º 5/2004/GEAJ/PT, de 14 de Outubro, manifestam a vontade do dirigente máximo do serviço no sentido da não continuidade de exercício efectivo de funções. Assim seria, não se desse o facto de tais despachos serem posteriores à cessação efectiva de funções, pela tomada de posse da nova dirigente (21 de Outubro de 2003 e 4 de Abril de 2004); nesta circunstância, o primeiro deles limita-se a dar cumprimento ao artigo 32.º da Lei n.º 49/99, de 22 de Junho, e o segundo decide recurso, quando já decorria o dissídio agora em apreciação. 


6. Nem podem esquecer-se as normas do Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho; nem do Decreto-Lei n.º 353-A/89, de 16 de Outubro, no que respeita ao sistema retributivo da Administração Pública. 


“(A) conjugação das regras sobre aquisição e cessação do direito [ao lugar], com o princípio da necessária ligação da remuneração ao lugar, determinará que enquanto um funcionário se mantiver no desempenho e/ou titularidade de um lugar a que corresponda uma dada remuneração, adquire para a sua esfera jurídica o direito a essa remuneração, que só cessa quando cessar o desempenho, nos termos, nas condições e segundo o complexo modelo da relação estatutária definido na lei.” (v., ainda, PPGR cit.), leis e entendimento que obedecem, e não podia deixar de ser assim, ao comando constitucional de que “para trabalho igual salário igual” (artigo 59.º, n.º 1, alínea a,). 


IV
CONCLUSÕES 


Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, recomendo a V. Exa.: 







A. Que seja reconhecido à Senhora Dra. XXX, conselheira de Orientação Profissional Assessora, do quadro de pessoal da Agência para a Qualificação, Emprego e Trabalho de Angra do Heroísmo, o direito à percepção do vencimento correspondente ao exercício das funções de Chefe de Divisão da Agência para a Qualificação e Emprego de Angra do Heroísmo, no período que mediou entre a entrada em vigor do Decreto Regulamentar Regional n.º 27/2003/A, de 28 de Agosto, e a nomeação da dirigente da Agência para a Qualificação, Emprego e Trabalho (29 de Agosto a 6 de Outubro de 2003).



B. E, em consequência, seja revogada a ordem de reposição de 996,40 € constante do ofício n.º 34/02/2, de 10 de Janeiro de 2005, da Agência para a Qualificação, Emprego e Trabalho de Angra do Heroísmo.



Permito-me lembrar a V. Exa. a circunstância da formulação da presente recomendação não dispensar, nos termos do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 38.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, a comunicação a este órgão do Estado da posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.


O Provedor de Justiça
H. Nascimento Rodrigues


 


Notas de rodapé:


(1) “1 – Nos casos de ausência, falta ou impedimento do titular do cargo, a sua substituição cabe ao substituto designado na lei.
      2 – Na falta de designação pela lei, a substituição cabe ao inferior hierárquico imediato, mais antigo, do titular a substituir.
      3 – O exercício de funções em substituição abrange os poderes delegados ou subdelegados no substituído.”
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