RECOMENDAÇÃO N.º 5/B/2007
[art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


 Entidade visada: Presidente do Instituto Politécnico de Viana do Castelo
Proc.º: R-3347/07
Data: 20-11-2007
Área: A6





Assunto: Regulamento de propinas. Incumprimento do prazo de pagamento de propinas. Juros de mora. 


1. Foi recebida uma exposição contestando as disposições constantes do art. º 4.º do Regulamento de Propinas (1) dessa instituição de ensino superior, relativo a taxas de juros moratórios, cujos termos aqui reproduzo:



Artigo 4.º
Taxas de mora


1 – O não pagamento de propinas, ou de cada uma das prestações, nos prazos fixados implica o pagamento das seguintes taxas de mora:


a) Mora até 30 dias consecutivos, 5% do valor total da taxa fixada nesse ano a título de propina;
b) Mora superior a 30 dias consecutivos, 15% do valor da taxa fixada nesse ano a título de propina.


2 – As taxas de mora previstas no número anterior não são cumuláveis quando se referem ao pagamento de uma mesma prestação.


3 – Ao valor de cada prestação em atraso será acrescida a respectiva taxa de mora fixada nos termos das duas alíneas anteriores, podendo o pagamento efectuar-se até à data da renovação da inscrição. 


2. Não é a primeira vez que me pronuncio a propósito do alcance da penalização pecuniária por incumprimento do prazo de pagamento de propinas (2). A este respeito, e como tive oportunidade de referir noutra ocasião: 



Importa notar que a Lei n.º 37/2003, de 22 de Agosto, no seu art.º 29.º, estabelece, em caso de incumprimento de pagamento da propina, para além da nulidade de todos os actos curriculares praticados, a “suspensão da matrícula e da inscrição anual (…) até à regularização dos débitos, acrescidos dos respectivos juros, no mesmo ano lectivo em que ocorreu o incumprimento da obrigação.”  Este normativo sancionatório não é isento de dúvidas em vários aspectos, o que tenho apontado ao Governo, para adequada correcção. Entre essas dúvidas encontra-se a ausência de fixação expressa de uma taxa de juro, o que, a suceder, evitaria incertezas e contribuiria para fazer cessar esquemas sancionatórios ainda vigentes em várias instituições, herdeiras de soluções legais diferentes, como era a da responsabilidade contra-ordenacional, prevista pela Lei 20/92, de 14 de Agosto.   Na verdade, a lei, hoje, não permite a construção de qualquer figura contra-ordenacional, com o estabelecimento de coimas, e muito menos o recurso à figura da multa, aliás extinta recentemente fora do âmbito penal.   Para além de efeitos no plano meramente jurídico, de cominação de nulidade para certos actos, a sanção hoje possível é do âmbito civil, reduzindo-se ao recebimento de juros. (…)  


3. Nesse preciso sentido dispõe o citado Regulamento de Propinas do Instituto Politécnico a que V.ª Ex.ª preside, ao consagrar o seu art.º 4.º às “taxas de mora“, devidas pelo não pagamento de propinas, ou de cada uma das suas prestações, nos prazos fixados. 


3.1. Todavia, em face do teor deste preceito, não posso, em primeiro lugar, deixar de expressar a minha perplexidade perante a solução normativa do mesmo constante, no sentido de ancorar o cálculo da taxa de juros de mora, não por referência ao montante em dívida, mas sobre o «valor total da taxa fixada nesse ano a título de propina» (alíneas a) e b), in fine, do n.º 1 do citado art.º 4.º). Se o teor normativo em apreço não causa surpresa no caso de o incumprimento concernir ao valor da totalidade da propina, já o mesmo não pode afirmar-se na hipótese de mora no pagamento de uma das respectivas prestações, tanto mais agravada quanto mais forem as prestações em atraso, porquanto nesta situação, e atento o disposto no n.º 3 do mesmo preceito, «[a]o valor de cada prestação em atraso será acrescida a respectiva taxa de mora» (sublinhado meu), fixada nos termos supra referidos.


Neste enquadramento, a um estudante, que, por hipótese, seja inadimplente em relação a apenas uma das quatro prestações, será cobrada idêntica quantia a título de juros de mora que a exigida a um outro estudante, por idêntico lapso de tempo, relativamente à totalidade da propina.


3.2. Permito-me a este respeito – sem deixar de ter presentes as necessárias adaptações – evocar a lição do Professor Antunes Varela sobre a matéria das obrigações de juros, na qual se incluem as situações correlacionadas com os efeitos da mora nas obrigações pecuniárias. Assim, nas palavras deste Autor, o «montante [dos juros] varia em função de três factores, que são: a) o valor do capital devido; b) o tempo durante o qual se mantém a privação deste por parte do credor; c) a taxa de remuneração fixada por lei ou estipulada pelas partes» (VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 870; sublinhado meu). 


A esta luz, não se coaduna com os princípios informadores do nosso ordenamento jurídico a solução normativa apontada, a qual tem, afinal, como efeito a obtenção, para essa instituição de ensino superior, de uma ilegítima vantagem de carácter patrimonial. 


Com efeito, na medida em que esta vantagem patrimonial não se harmoniza com o sentido jurídico da obrigação de juros moratórios em caso de incumprimento e resultando a mesma do correlativo prejuízo económico sofrido pelo estudante inadimplente, a norma questionada atenta, desde logo, contra as exigências do princípio geral de direito do não locupletamento à custa alheia (art.º 473.º do Código Civil) – cuja aplicação, no âmbito das relações jurídico-administrativas, foi já reconhecido quer pela doutrina (3), quer pela jurisprudência (4), associado que está, de resto, aos princípios da boa fé, da justiça e da proporcionalidade –, carecendo, por conseguinte, de causa a atribuição patrimonial que naquela se funda, na medida em que a respectiva base de cálculo exceda o valor da quantia em dívida. 


4. Contudo, não se esgota neste plano a impropriedade das normas constantes do citado art.º 4.º do Regulamento de Propinas a que me reporto. Como me expressei a propósito de caso com contornos análogos (5)



(…) não pondo em causa a possibilidade e mesmo a necessidade de se estabelecerem sanções pecuniárias para situações (…) de atrasos no pagamento de propinas, não creio que a concretização desta norma regulamentar (…) suporte o confronto com as taxas de juro hoje legalmente previstas, para os fins mais diversos. 


4.1. A propósito da taxa de juros, e citando novamente Antunes Varela, a mesma «exprime-se normalmente numa percentagem sobre o capital, por determinado período de tempo (usualmente um ano). Nada impede, porém, que a taxa se exprima por outra forma e se reporte a um período diverso de tempo». Acrescenta o mesmo Autor que «[o] que a partes não podem, por imperativo legal inspirado em razões de moralidade pública, é exceder certos limites, na fixação dessa taxa. Desde há muitos séculos que as leis combatem a usura: primeiro, proibindo pura e simplesmente o vencimento de juros, a pretexto de que o dinheiro não frutificava por si (…); mais tarde, estabelecendo limites rígidos à taxa estipulada pelas partes, sob a cominação de sanções severas, que abrangiam as diversas formas pelas quais os interessados têm pretendido defraudar as regras estabelecidas. O Código [Civil] vigente não só estabeleceu os limites máximos que separam o mútuo oneroso (lícito) dos negócios usurários, como fixou a taxa dos juros legais, a qual vale supletivamente para os próprios juros voluntários (estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo)» (in ob. cit., pp. 871-872).


4.2. Assim, tomando como referência a taxa anual dos juros legais e dos estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo, fixada em 4% através da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, ao abrigo do disposto no art.º 559.º, n.º 1, do Código Civil (6), não posso, outrossim, deixar de considerar absolutamente desproporcionados os valores fixados no art.º 4.º do Regulamento de Propinas em apreço. 


Com efeito, partindo do exemplo relatado na exposição que motiva a presente iniciativa, pelo atraso no pagamento de uma das quatro prestações, correspondente a um quarto (€ 187,50) do valor da propina anual (€ 750,00), verifica-se que, por um atraso de um dia, seria exigida a quantia de € 37,50, isto é, correspondendo a uma taxa de juro de 20% ao dia. Anualizando esta taxa, é fácil de ver a desproporção que aqui temos presente. Mesmo no caso de se estar no limite dos 30 dias, mantendo-se a taxa de juro nos mesmos 20%, mas agora reportada a um mês, a anualização indica ainda um claro excesso. 


Ora, os valores atingidos anualmente, no presente caso, levariam, no âmbito civil, à aplicação do disposto nos art.os 559.º-A e 1146.º do Código Civil, sobre juros usurários; num outro contexto e comprovados outros elementos tipificados na lei, o credor de semelhantes juros poderia certamente recair sob a alçada do art.º 226.º do Código Penal, relativo ao crime de usura.  4.3. Resulta de tudo o que antecede que as taxas contestadas excedem, de facto, em muito o valor da taxa de juro legal, para a qual aponta, no meu entendimento, a Lei n.º 37/2003, cujo art.º 29.º vem, de resto, reproduzido no art.º 7.º do Regulamento de Propinas desse Instituto Politécnico. Na verdade, segundo posição já por mim assumida (7):  


(…) num caso que não pode deixar de se considerar mais grave do que a simples mora, isto é, quando há fraude em declarações prestadas com vista a obter apoio da acção social escolar, o art.º 31.º da Lei n.º 37/2003 obriga à reposição das verbas indevidamente recebidas, apenas às mesmas acrescendo juros de mora, de acordo com a taxa legal em vigor (hoje, a acima apontada de 4%) e não qualquer outra mais desfavorável ao aluno. Se assim é em caso de fraude, tem-se mais um motivo para descortinar a solução pretendida pela Lei n.º 37/2003, numa hierarquização de valores indiscutível.   Poderá argumentar-se com a eficácia dissuasória que uma taxa de 4% ao ano terá ou não em comportamentos omissivos. Estou em crer que, para a esmagadora maioria dos alunos, a regularidade da sua situação escolar é motivo bem mais premente para a regularização dos pagamentos em causa do que a ameaça pecuniária.  


Contudo, mesmo que assim não seja, uma argumentação neste plano, por mais atendível que fosse, não pode seguramente comportar soluções como as contidas no art.º 4.º do Regulamento de Propinas em causa, sem a mínima correspondência com a lei, cujo estrito respeito se impõe a esse Instituto Politécnico.


5. Neste sentido, sem prejuízo das reformas em curso em matéria do regime jurídico das instituições do ensino superior, designadamente, no que ao regime de propinas nas instituições de ensino superior públicas concerne (v. art.º 9.º, n.º 5, alínea h), da Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro), recomendo a V.ª Ex.ª, ao abrigo do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,







que seja adoptada solução normativa diversa, desde já devendo ser corrigidas as situações pendentes, em matéria de penalização pelo incumprimento do prazo no pagamento das propinas, aplicando-se a taxa de juro legal, fixada na Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.



Na expectativa do que o que acima fica exposto venha a merecer o acolhimento que se me afigura desejável, muito agradeço a V.ª Ex.ª que oportunamente me transmita o que houver por conveniente a respeito do teor da presente Recomendação.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 


 






Notas de rodapé:


(1) Aviso n.º 1730/2004, publicado no Diário da República, II Série, N.º 31, de 6 de Fevereiro de 2004, pp. 2262-2264.


(2) V., a título exemplicativo, PROVEDOR DE JUSTIÇA, Relatório à Assembleia da República – 2006, Vol. II, Lisboa, 2007, pp. 903-905 [Proc. R – 1445/06].


(3) V. LEITÃO, Alexandra. O Enriquecimento sem Causa da Administração Pública, Lisboa: AAFDL, 1998.


(4) V. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de Fevereiro de 1999 (Proc. 38962).


(5) Proc. identificado supra, nota 2.


(6) Faço notar que a taxa de juro legal é igualmente tomada como valor de referência para os juros compensatórios por dívidas fiscais (art.º 35.º, n.º 10, da Lei Geral Tributária).


(7) Proc. identificado supra, nota 2.


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