RECOMENDAÇÃO N.º 11/B/2008
[art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]



Entidade visada: Presidente da Direcção da Federação Portuguesa de Futebol
Proc.º: R-3682/08
Data: 06-10-2008
Área: A6


Assunto: Transferências internacionais. Menores. Taxas. 



I



Foi-me apresentada a situação concreta de um menor alemão, de 14 anos de idade, cujos pais passaram a residir em Portugal, o qual, pretendendo inscrever-se nessa federação, em futebol de onze, para prosseguir actividade desportiva que realizava no seu país de origem, terá todavia sido confrontado com a exigência, para a época de 2007/2008, do pagamento de uma taxa de 1 320 euros.



Contesta-se a existência de disposição regulamentar, em vigor na Federação Portuguesa de Futebol, ao abrigo da qual será devido o pagamento de uma quota, de valor consideravelmente elevado, pela inscrição de jogadores com transferência internacional.



Estabelecia efectivamente o Capítulo 14.º, n.º 4, do Comunicado Oficial n.º 1 – 2007/2008, sob a epígrafe “Quotas de Transferência”, que “as quotas aplicáveis à inscrição com transferência de Clubes Estrangeiros para Clubes Nacionais de jogadores masculinos ou femininos, modalidades de onze, de sete ou de futsal, a pagar pelos Clubes Nacionais”, seriam fixadas, “para Clubes do Campeonato Nacional de Juniores “B” e “C””, assim como para “Clubes Distritais ou Regionais”, na quantia enunciada.



Actualmente, determina o Capítulo 9.º, n.º 5, do Comunicado Oficial n.º 1 2008/2009 uma actualização dos valores acima referidos, estabelecendo que as quotas a pagar, pelos clubes nacionais, nas transferências internacionais para clubes do Campeonato Nacional de Juniores “C” (Iniciados – SUB-15) serão de 1 500 €, ao passo que, para clubes a disputar campeonatos distritais ou regionais (como parece acontecer na situação relatada), o valor agora devido seria de 1 420 €.



II



Postula o artigo 70.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, que “os jovens, sobretudo os jovens trabalhadores, gozam de protecção especial para efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente na educação física e no desporto”, incumbindo ao Estado, nos termos positivados no art.º 79.º, n.º 2, “em colaboração com as escolas e as associações e colectividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto”.



No desenvolvimento das normas programáticas acima enunciadas, a Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro), estabelece, no seu artigo 2.º, n.º 1, que “todos têm direito à actividade física e desportiva, independentemente da sua ascendência, sexo, raça, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”, na estrita observância do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado, a qual não deixa, nos termos do art.º 15.º da Lei Fundamental, de compreender os cidadãos estrangeiros e os apátridas que se encontrem em Portugal. Procede-se, desta forma, à proclamação do direito à educação física e ao desporto como direito fundamental de todos os cidadãos, cuja efectiva prossecução cabe ao Estado assegurar, designadamente, e através de um modelo colaborativo, de natureza descentralizadora, através da acção de certos “corpos sociais intermediários” que a Constituição reconhece, e de entre os quais se destacam as federações desportivas (neste sentido, Canotilho, Gomes, Moreira, Vital, Constituição da República portuguesa Anotada, pg. 379 a 381).



Também diversos instrumentos internacionais têm recolhido declarações que aqui interessam, como a Carta Internacional da Educação Física e do Desporto da UNESCO que, no seu artigo 1.º, ponto 1.13, postula que “devem ser dadas condições especiais aos jovens [para a prática desportiva] a fim de permitir o desenvolvimento integral da sua personalidade”.



De facto, não podemos deixar de ter presente, conforme resulta da Declaração n.º 29 adoptada pela Conferência Relativa ao Desporto, no âmbito do Tratado de Amesterdão, ratificado por Portugal em 1999, o importante “significado social do desporto, em especial o seu papel na formação da identidade e na aproximação das pessoas”, num quadro que, tendo a construção europeia como pano de fundo, assume dimensão particularmente importante quando esteja em causa a livre circulação, no espaço comunitário, de jovens praticantes, e de entre estes, aqueles que desenvolvam, de forma amadora, uma actividade desportiva.



Aliás, ainda no âmbito da actividade das instituições comunitárias, será de realçar o teor do Anexo IV da Declaração de Nice – Conclusões da Presidência do Conselho Europeu de Nice, reunido entre 7 e 9 de Dezembro de 2000, sob a epígrafe “Declaração Relativa às Características Específicas do Desporto e à sua Função Social na Europa, a tomar em consideração ao executar as políticas comuns”. Reconhece aquele órgão comunitário, no quadro das conclusões então adoptadas, que o desporto “constitui um factor de inserção, de participação na vida social, de tolerância, de aceitação das diferenças e de respeito pelas regras” (cfr. ponto 3 da acima citada Declaração), razão pela qual a “actividade desportiva deve ser acessível a todas as pessoas, no respeito das aspirações e capacidades de cada um e na diversidade das práticas competitivas ou de lazer, organizadas ou individuais” (cfr. ponto 4). Resulta ainda de modo inequívoco do documento em causa a proclamação do papel primordial que os Estados-Membros em geral, e as organizações desportivas em particular, devem desempenhar na “condução das questões desportivas”, com destaque para as práticas amadoras, ao considerar-se que “as federações desportivas desempenham um papel central na necessária solidariedade entre os vários níveis de prática: permitem o acesso de um largo público ao espectáculo desportivo, o apoio humano e financeiro às práticas amadoras (…) a formação de jovens”, entre os diversos objectivos que a prática desportiva, implícita ou explicitamente, pretende prosseguir (cfr. ponto 8 do documento acima citado).



Assim sendo, não pode deixar de merecer integral concordância a declaração de princípio explanada no ponto 9 do diploma sub judice, segundo a qual as funções sociais reconhecidas, nesta matéria, às organizações desportivas, “implicam responsabilidades específicas para as federações e nelas assenta o reconhecimento da competência destas últimas na organização das competições”, naquilo que se poderia entender como uma genérica alusão ao reconhecimento do estatuto de utilidade pública e, mais recentemente, de utilidade pública desportiva, do qual gozam, em Portugal, diversas estruturas federativas, designadamente, a Federação Portuguesa de Futebol.



Também o Tratado de Lisboa, actualmente em ratificação por parte dos Estados-membros da União Europeia, reserva o Título XI à problemática da “Educação, Formação Profissional, a Juventude e o Desporto”, estabelecendo, no n.º 1 do artigo 149.º, como objectivo para a União o de contribuir “para a promoção dos aspectos europeus do desporto, tendo simultaneamente em conta as suas especificidades, as suas estruturas baseadas no voluntariado e a sua função social e educativa”. Por esta razão, a sua acção terá por objectivo, nos termos declarados no n.º 2 do mesmo preceito, desenvolver a dimensão europeia do desporto, promovendo a equidade e a abertura nas competições desportivas e a cooperação entres os organismos responsáveis pelo desporto, bem como protegendo a integridade física e moral dos desportistas, nomeadamente dos mais jovens de entre eles(sublinhado meu).



É assim inequívoco o papel fundamental que as associações desportivas são chamadas a desempenhar, em colaboração com o Estado, na efectivação dos direitos proclamados neste domínio, papel esse potenciado, no elenco de direitos e deveres que assistem às referidas associações, e em particular, na situação protagonizada pela Federação Portuguesa de Futebol, pelo estatuto de utilidade pública desportiva à mesma atribuído, e actualmente disciplinado pela Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro, em direitos e deveres.



III



No que se reporta ao estatuto de que gozam os praticantes da modalidade em apreço, determina o artigo 2.º, n.º 1 do Regulamento do Estatuto, da Inscrição e Transferência de Jogadores, em vigor na Federação Portuguesa de Futebol, que o “jogador de futebol é profissional ou amador”, sendo tal condição definida, conforme decorre do n.º 2 daquele preceito, “pelo Clube ou sociedade anónima desportiva (SAD) no momento da respectiva inscrição”. Por sua vez, o artigo 2.º, n.º 2 do Regulamento sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores da FIFA, estabelece inequivocamente que o jogador profissional é aquele que tem um contrato escrito com um clube, e que recebe um montante superior aos gastos que tem com a sua actividade futebolística, considerando que “qualquer outro jogador considera-se amador”.



De facto, o n.º 4 do artigo 2.º do Regulamento do Estatuto, da Inscrição e Transferência de Jogadores, em vigor na Federação Portuguesa de Futebol, define jogador amador como sendo “o praticante de futebol que visando objectivos de uma sã convivência e conservação da sua condição física, não receba remuneração nem aufira, directa ou indirectamente, proveito material, com excepção do montante recebido a título de subsídio de formação, pela sua actividade desportiva, exercendo esta mediante a celebração de um compromisso desportivo”. Ora, importa tornar presente que, nos termos previstos no artigo 5.º, n.º 1 do diploma regulamentar em apreço, qualquer “jogador, para poder exercer a sua actividade a favor de um Clube ou de uma SAD, tem que estar inscrito na Federação Portuguesa de Futebol”.



Resulta assim do acima exposto que um jovem jogador de futebol, que pretenda exercer a sua actividade desportiva em Portugal, ainda que como amador, deverá inscrever-se nessa federação desportiva, aceitando, logicamente, “as normas constantes dos respectivos estatutos e da regulamentação desportiva nacional e internacional”.



Ora, relativamente às quotas de inscrição com transferência, de jogadores nacionais ou estrangeiros, entre clubes nacionais, estabelece o ponto 2 do Capítulo 9.º do Comunicado Oficial n.º 1 – 2008/2009, que, quando esteja em causa a transição para clube que dispute o Campeonato Nacional de Juniores “C” (SUB-15), ou para clubes distritais ou regionais, será devido o pagamento de uma taxa de 37,50 €, em moldes que em nada são comparáveis com os valores previstos no quadro que, parte integrante do ponto 5 daquele capítulo, merece, por isso, particular atenção.



Tratando-se de contribuições pecuniárias enquadradas na categoria de taxa, ainda que não se esqueça não ser exigível uma correspectividade económica estrita, não deixa de parecer estar-se perante um exemplo de total desproporção entre o serviço prestado e o montante exigido ao particular.



Assim, o montante exigido a um praticante oriundo do estrangeiro corresponde a quase 4000% do montante em geral cobrado a quem não saia do território nacional, isto para uma actividade burocrática que é em tudo similar.



O choque provocado por esta desigualdade é maior quando se está a tratar da inscrição, com transferência internacional de jogadores que, tanto pela idade – escalão etário de competições – v.g. Juniores “C”, como pela natureza das competições (campeonatos distritais e regionais), se encontram natural e tendencialmente afastados do mercado de contratações de natureza profissional, onde os interesses económicos assumem relevância de outra monta.



Não há sequer interesses de carácter extra-financeiro que se vislumbrem, isto na medida em que, nos termos previstos no artigo 11.º do Regulamento do Estatuto, da Inscrição e Transferência de Jogadores, em vigor na Federação Portuguesa de Futebol, a “transferência internacional de jogadores menores proceder-se-á de acordo com as normas da FIFA aplicáveis”.



Ora, de acordo com o artigo 19.º, n.º 1 do Regulamento sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores da FIFA, “as transferências internacionais de jogadores só serão permitidas quando o jogador atinge a idade de 18 anos”. Terá a FIFA tido em mente, com o estabelecimento das regras em apreço, e cujo cumprimento deverá ser garantido, a nível nacional, pelas federações desportivas respectivas, assegurar que os jogadores jovens possam vir a beneficiar de um ambiente estável para a sua formação como praticantes desportivos e para a sua educação.



Só nos estritos termos do n.º 2 do citado preceito se admite a existência de excepções à regra geral acima enunciada, das quais haverá a realçar a constante da alínea a) do referido normativo, nos termos da qual será admitida a transferência internacional, se os pais do jogador mudarem a sua residência, por razões não relacionadas com o futebol, para o país onde o novo clube tem a sua sede. Quer isto dizer que um jogador menor de 16 anos não pode pretender proceder à sua inscrição com transferência internacional, nessa federação desportiva, a não ser quando a mesma for consequência da mudança de residência do agregado familiar no qual aquele se encontra inserido, nunca como fim principal mas sempre como garantia acessória da liberdade de circulação e de estabelecimento.



Como tal, dificilmente se poderá argumentar que a exigência de pagamento de taxas a propósito da inscrição, com transferência internacional, de jovens jogadores (com particular destaque para aqueles que tenham menos de 16 anos), pretenderá salvaguardar os interesses daqueles praticantes, porquanto semelhante protecção resulta automaticamente da proibição geral consagrada no artigo 19.º, n.º 1 do Regulamento sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores da FIFA.



De resto, a FIFA, na senda da excepção acima enunciada, estabelece ainda que um jogador que tenha entre os 16 e os 18 anos poderá deslocar-se dentro do território da União Europeia/Espaço Económico Europeu, desde que a sua educação desportiva e académica estejam garantidas pelo novo clube, de acordo com as directrizes constantes dos diversos pontos que constituem a alínea b) do n.º 2 do artigo em análise, não se justificando por isso, relativamente àqueles, e de igual forma, a adopção de medidas eventualmente consideradas dissuasoras de práticas abusivas àqueles dirigidas.



Afigura-se, deste modo, consensual considerar que um jovem praticante de futebol (14 anos) que, estando inscrito na Federação de Futebol do respectivo país de origem, e que pretenda inscrever-se, com transferência internacional, com o mesmo estatuto, na Federação Portuguesa de Futebol (tendo em vista a aceitação da sua inscrição em um clube da sua área de residência), pretenderá exercer a sua actividade desportiva como jogador amador, afastado do processo formativo no qual, naturalmente, se encontram inseridos aqueles que no futuro, tendencialmente, ascenderão à categoria de profissionais.



Nem mesmo se poderá vir argumentar que os montantes exigidos nos termos em análise, não configurando uma taxa de transferência, apenas constituem uma taxa aplicável às inscrições de qualquer atleta que queira competir em provas oficiais, destinada a suportar os custos de estrutura relativos à organização e funcionamento das mesmas.



Tais custos, na parte em que se queiram repercutir nos praticantes, porque a todos dizem respeito, por todos devem ser suportados de um modo equitativo. Não faz sentido aproveitar-se uma mudança de país, como se viu por razões profissionais dos progenitores, com alteração de círculos de amizade, de língua, de clima, etc., para se sobrecarregar financeiramente o legítimo desejo de prosseguimento da prática desportiva, de um modo extraordinário e desproporcionado no universo dos praticantes.



Também não é aceitável que se argumente que os valores em causa são exigidos aos clubes que procedem à inscrição dos jogadores e não a estes. Não tenho particulares dúvidas, desde logo na situação relatada a este respeito, que tais custos se repercutem nos praticantes a inscrever, à partida pela dimensão dos clubes em causa.



É ainda especialmente de notar, e reprovar, que o ponto 4 do Capítulo 9.º do Comunicado Oficial n.º 1 2008/2009 estabelece, de forma inequívoca, que o montante das taxas exigidas a propósito das inscrições com transferência entre clubes nacionais é também “aplicável aos Jogadores de nacionalidade Portuguesa que se transfiram de Clubes estrangeiros para Clubes portugueses”, fazendo, deste modo, incidir apenas sobre as transferências internacionais de jogadores estrangeiros os montantes constantes da tabela que integra o ponto 5 daquele diploma.



Ocorre aqui uma discriminação em função da nacionalidade que suscita óbvias críticas, muito especialmente no contexto da União Europeia.



Ainda que assim não fosse, convoque-se o artigo 4.º, n.º 1, da Carta Europeia do Desporto, que determina que “o acesso às instalações ou às actividades desportivas será assegurado sem qualquer discriminação fundada no sexo, raça, língua, religião, opiniões políticas ou outras, origem nacional ou social, pertença a uma minoria nacional, condição material, nascimento ou qualquer outra situação”. Importa ainda ter presente que o artigo 3.º, n.º 2, dos Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol prescreve que será “objecto de sanção disciplinar qualquer acto de discriminação em razão da nacionalidade, do indivíduo ou grupo de indivíduos, étnicos, sexo, língua, religião, política ou por qualquer outra razão”.



Refiro ainda que, contactados sobre esta matéria os serviços da Federação Alemã de Futebol, fui informado que, em situação simétrica, isto é, para a inscrição nesta Federação de jogador menor oriundo de Portugal (ou de qualquer outro país), não se encontra prevista a cobrança de qualquer taxa, prática que também foi relatado ocorrer em outras das principais federações europeias de futebol, como a francesa.



IV



Deste modo, evocando o papel que a Federação Portuguesa de Futebol deve, nos termos constitucional e legalmente previstos, desempenhar no desenvolvimento de uma sã política desportiva, no respeito pelos princípios constitucionalmente consagrados, recomendo a V.ª Ex.ª, nos termos do art.º 20.º, n.º 1, b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, que, de forma premente, venham a ser encetados os mecanismos internos conducentes a:







a) imediata aplicação do ponto 4 do Capítulo 9.º do Comunicado Oficial n.º 1 2008/2009 a todos os jogadores de nacionalidade que, por via dos compromissos assumidos internacionalmente por Portugal, devam beneficiar da igualdade de tratamento com os jogadores de nacionalidade portuguesa;


b) promoção dos mecanismos tendentes à modificação do quadro actualmente vigente, designadamente no ponto 5 do mesmo Capítulo 9.º, por forma a que sejam estabelecidos valores das quotas de transferência adequados e proporcionais à actividade administrativa efectivamente desenvolvida, e tendo especialmente em mente a situação dos jogadores não profissionais.






O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues