Número: 1/A/2009
Data: 16.01.2009
Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Santo Tirso
Assunto: ruído – estabelecimento de restauração e bebidas – Café Kanimambo, Jardim Dr. Rodrigues Ferreira
Processo: R-4936/06 (A1)

RECOMENDAÇÃO N.º1/A/2009
[art. 20º, n º 1, alínea a) da Lei n º 9/91, de 9 de Abril]

I
exposição de motivos

1.    Dirijo a presente Recomendação à Câmara Municipal presidida por V. Exa., cumprindo-lhe, por conseguinte, inscrever a sua apreciação na ordem de trabalhos do executivo, de modo a dar cumprimento ao disposto no artigo 38.º, n.º 2 da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril.

2.    Desde 2006, tem sido solicitada a minha intervenção junto da Câmara Municipal de Santo Tirso por moradores do denominado Complexo Panorama dos Carvalhais, relativamente ao funcionamento ruidoso do estabelecimento “Café Kanimambo”, situado na morada supra identificada que dizem afectar seriamente a sua tranquilidade. E queixam-se a este órgão do Estado por não verem adoptadas providências municipais de polícia administrativa.

3.    Em particular, afirmam os reclamantes serem incomodados pelo ruído às sextas-feiras e sábados, a partir das 22 horas, situação que recentemente ter-se-á agravado com a colocação de ventiladores de extracção de fumo.  

4.    Procedeu-se à audição do Senhor Presidente, de modo a obter informações sobre a procedência da queixa.

5.    A apreciação da reclamação passaria, inelutavelmente, pela realização de ensaios acústicos que a Câmara Municipal opõe não estar em condições de realizar, por não dispor dos meios técnicos necessários para o efeito.

6.    Por parte do Senhor Presidente da Câmara Municipal foi esclarecido mostrar-se a actividade em conformidade com o uso previsto no alvará de licença de utilização. E, mais afirma, que no âmbito do licenciamento do mesmo estabelecimento, foi apresentada certificação de cumprimento do Regulamento Geral do Ruído.

7.    No entendimento expresso pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal, às câmaras municipais compete apenas licenciar operações urbanísticas. A partir do momento em que os estabelecimentos se encontrem habilitados pelos respectivos títulos administrativos, não podem ser assacadas responsabilidades aos municípios pela eventual incomodidade gerada pelo ruído.

8.    Assim, incumbiria aos munícipes, ao queixarem-se de actividades ruidosas, fazer prova de serem excedidos os limites admitidos como valor máximo pelas pertinentes prescrições legais, ónus que resultaria do disposto no artigo 88.º, n.º 1 e n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, suportando os custos inerentes.

9.    Tanto mais que o orçamento municipal não se encontraria em condições de prover à adjudicação dos ensaios de medição a empresas acreditadas, considerando os preços praticados e o elevado o número de queixas, muitas das vezes improcedentes.

(II)
Apreciação

1.    No interesse público estão incluídos não só os interesses da comunidade como também os interesses particulares relevantes, mesmo que respeitantes a determinado grupo, cuja prossecução e defesa incumbe às entidades públicas.

2.    Assim, assumem relevância de interesse público os valores relacionados com a tranquilidade pública (definida como tal, mesmo quando afecte apenas algumas pessoas) que se traduzem na garantia do repouso e do sossego e como elementos integradores do direito fundamental à integridade pessoal, moral e física (artigo 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – CRP), do direito à saúde (artigo 64.º, da CRP) e do direito a um ambiente sadio e equilibrado (artigo 66.º da CRP) que incumbe às autoridades públicas assegurar.

3.    A nossa lei fundamental concede uma maior protecção jurídica a estes direitos do que à liberdade de iniciativa económica privada (artigo 61.º, n.º 1), condicionada, à partida, pelo interesse geral, havendo entre eles uma ordem decrescente de valoração. E na lei ordinária existe um dispositivo que, expressamente, manda dar prevalência, em caso de conflito de direitos, àquele que for considerado superior: o artigo 335.º n.º 2 do Código Civil.

4.    Já a Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro – que estabeleceu o novo quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais – previa, em matéria de ambiente, a competência dos órgãos municipais para participar na fiscalização do Regulamento Geral do Ruído [artigo 26.º, n.º 2, alínea a)].

5.    Um dos princípios orientadores do citado diploma é o princípio da subsidiariedade, ao abrigo do qual as atribuições e competências deverão ser exercidas pelo nível mais bem colocado para as prosseguir com racionalidade, eficácia e proximidade dos cidadãos  (artigo 2.º, n.º 2 da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro).

6.    O Regulamento Geral do Ruído em vigor atribui aos municípios, em especial, competência para tomar todas as medidas adequadas para o controlo e minimização dos incómodos causados pelo ruído resultante de quaisquer actividades (artigo 4.º  do Decreto-lei n.º 9/2007, de 27 de Janeiro).

7.    A fiscalização do ruído consta entre as atribuições municipais (artigo 26.º, alíneas b) e d), do Decreto-lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro), o que implica necessariamente promover a realização dos ensaios técnicos necessários a apurar do cumprimento dos parâmetros ali fixados.

8.    Ora, as competências administrativas são irrenunciáveis (artigo 29.º, n.º 1, do C.P.A.), ao ponto de se ter considerado nulo todo o acto que importe um modo de renúncia (n.º 2). E não é de admitir que uma Câmara Municipal pretenda transferir para os particulares os custos de uma tarefa pública que lhe compete.

9.    Por outro lado, ainda que o cumprimento do Regulamento Geral de Ruído tenha sido apreciado no âmbito do licenciamento do estabelecimento visado, tal facto não dispensa a fiscalização camarária posterior, em caso de reclamação.

10.    Aliás, pode ter ocorrido uma alteração das condições de funcionamento, sem que a apreciação efectuada no momento do licenciamento garanta o cumprimento das exigências que a legislação actualmente em vigor estabelece para a produção de ruído.

11.    Os serviços municipais ou as polícias municipais constituídas devem dispor de recursos humanos e de meios técnicos para o desempenho de todas as suas funções, independentemente da procedência ou improcedência das reclamações apresentadas pelos cidadãos.

12.    O controlo e repressão do ruído não têm de ficar de fora e, para o efeito, a formação de pessoal e a aquisição de um sonómetro parecem-me plenamente justificadas.

13.    De outro modo, ficaria comprometida a regular prossecução das atribuições municipais no domínio da fiscalização e do controlo das actividades ruidosas, com lesão irreparável para os moradores que se oponham ao seu exercício, com fundamento na ausência de requisitos técnicos idóneos.

14.    Acresce que fazer recair sobre os interessados o ónus da prova do ilícito seria introduzir um factor de injustiça social extremamente penoso. Com efeito, só os reclamantes que disponham de recursos financeiros para custear as despesas com o ensaio acústico poderiam ver atendidas as suas interpelações à Câmara Municipal de Santo Tirso. Ao invés, os mais desfavorecidos seriam privados de um direito que a todos assiste por igual.

15.    A Câmara Municipal de Santo Tirso não pode simplesmente ignorar a lei, neste caso, o Regulamento Geral do Ruído. E nem se diga que ele comporta uma inovação, pois já o Decreto-lei n.º 251/87, de 24 de Junho e o Decreto-lei n.º 292/2000, de 14 de Novembro, previam um papel essencial das autoridades municipais na fiscalização do ruído.

16.    Pergunto-me que significado adquirem os princípios constitucionais da descentralização e da autonomia local, quando um município se recusa a cuidar de uma tarefa elementar de polícia administrativa, uma tarefa que remonta à primeira geração das atribuições municipais.

17.    Não ignoro que muitas das reclamações apresentadas por ruído são destituídas de fundamento. Mas será por isso que deixará de assegurar-se o cumprimento da lei?

18.    Este tipo de raciocínio é manifestamente perigoso, pois subverte o princípio da legalidade e os padrões mínimos de igualdade no território nacional. Pode uma câmara municipal deixar de averiguar factos em matéria florestal, de contaminação de águas ou de ocupação da via pública, apenas porque parte das denúncias ou queixas não têm fundamento? E como sabe ou presume saber que não têm fundamento se não leva a cabo o nível mais  básico de fiscalização?

Apreciado o teor dos esclarecimentos prestados e cumprido, assim, o dever de prévia audição da entidade visada (art. 34º do Estatuto do Provedor de Justiça), pondero o seguinte:

(C)
Conclusões

1.    A Câmara Municipal de Santo Tirso tem-se abstido de realizar acções de fiscalização ao estabelecimento reclamado tendente a aferir da conformidade do ruído provocado pelo seu funcionamento com os níveis permitidos no Regulamento Geral do Ruído.

2.    Porém, compete aos municípios, no quadro das suas atribuições e das competências dos respectivos órgãos, promover as medidas de carácter administrativo e técnico adequadas à prevenção e controlo da poluição sonora, nos limites da lei e no respeito do interesse público e dos direitos dos cidadãos.

3.    O controlo e repressão do ruído não têm de ficar de fora e, para o efeito, torna-se necessária a formação de pessoal e a aquisição de um sonómetro.

De acordo com as motivações expostas, devo exercer o poder que me é conferido pela disposição compreendida no art. 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei nº9/91, de 9 de Abril, e, como tal, Recomendar à Câmara Municipal de Santo Tirso o seguinte:

a)    Que delibere fazer aplicar o disposto no Decreto-lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro, em matéria de fiscalização do ruído, à semelhança do que sucede nos outros municípios.
b)    Que seja ponderada a aquisição de sonómetro e a formação de pessoal, sem o que não poderá com autonomia prosseguir o regular desempenho das atribuições do Poder Local em matéria de protecção contra o ruído.

Solicito que esta Recomendação seja presente a reunião da Câmara Municipal e ainda a atenção para o pronto cumprimento do dever de me transmitir a posição assumida no prazo de sessenta dias (art. 38º, n.º 2, do Estatuto aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril).

O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues