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Proc.  P-3333/09 (A5)
 
 
Assunto:  Requisitos relativos à concessão de nacionalidade portuguesa;

Residência legal em Portugal.

 
 
RECOMENDAÇÃO n.º 2-A/2010
[artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]

 
 
I
INTRODUÇÃO
 

No interesse do senhor… foi aberto processo neste órgão do Estado, na medida em que a situação do interessado tem particularidades invulgares que consubstanciam um caso de flagrante injustiça que justifica a minha intervenção.

Com efeito, o senhor…  nasceu em Cabo Verde, no dia 15 de Março de 1983, está em Portugal desde 1998, mas, não obstante ser cabo-verdiano, prestou serviço militar no Exército Português[1], tendo sido incorporado no dia 5 de Janeiro de 2004[2].

Posteriormente, esteve em regime de contrato, o qual apenas foi feito cessar por despacho de 5 de Agosto de 2009 (n.º 144/CEME/2009), do Chefe do Estado-Maior do Exército, exactamente por se ter verificado que não possuía a nacionalidade portuguesa. Assim, passou à situação de disponibilidade no dia 5 de Outubro de 2009

Pelo que se constata que esteve ao serviço do Exército Português, ininterruptamente, durante 5 anos e 9 meses (de 5 de Janeiro de 2004 a 5 de Outubro de 2009).
 
Por efeito da referida cessação do vínculo contratual com o Exército Português, o interessado está, agora, em situação de desemprego e, por não lhe ser reconhecida a residência legal no território português pelo período mínimo de seis anos (e, em consequência, por não preencher este requisito indispensável à naturalização), está também impossibilitado de ser opositor a concursos em que a nacionalidade portuguesa constitui condição indispensável[3].

Mas, o que em concreto motiva a presente Recomendação é a circunstância de o Estado Português apenas estar a reconhecer ao senhor… residência legal em Portugal desde o dia 6 de Julho de 2005 (data da  emissão de autorização de residência pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras)[4], desconsiderando o período de serviço militar comprovadamente prestado desde 5 de Janeiro de 2004 até 6 de Julho de 2005[5].

O tempo reconhecido de residência legal impede que o senhor… possa  requerer, na presente data, a concessão da nacionalidade portuguesa, pelo não preenchimento do período mínimo indispensável de permanência no País.

Contudo, como atesta o seu registo militar, o senhor… serviu o Exército Português desde data anterior (5 de Janeiro de 2004) àquela tida como relevante para o reconhecimento da residência legal.
 

II

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

 
§1.

Naturalização de estrangeiros com residência legal em território português

Sobre os requisitos da aquisição da nacionalidade portuguesa dispõe o n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 87/81, de 3 de Outubro (Lei da Nacionalidade), na redacção conferida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril  que «o Governo concede a nacionalidade portuguesa, por naturalização, aos estrangeiros que satisfaçam cumulativamente os seguintes requisitos:

a)      Serem maiores ou emancipados à face da lei portuguesa;

b)      Residirem legalmente no território português há pelo menos seis anos;

c)      Conhecerem suficientemente a língua portuguesa;

d)   Não terem sido condenados, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa».

Por outro lado, sob a epígrafe ‘(n)aturalização de estrangeiros residentes no território português’, o n.º 1 do artigo 19.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro) estatui que «(o) Governo concede a nacionalidade portuguesa, por naturalização, aos estrangeiros quando satisfaçam os seguintes requisitos:

a)      Sejam maiores ou emancipados à face da lei portuguesa;

b)      Residam legalmente no território português há pelo menos seis anos;

c)      Conheçam suficientemente a língua portuguesa, nos termos do disposto no artigo 25.º;

d)   Não tenham sido condenados, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa».

Sobre a ‘residência legal’, o n.º 1 do artigo 15.º, da já referida Lei da Nacionalidade, dispõe  que se  entende «que residem legalmente no território português os indivíduos que aqui se encontram, com a sua situação regularizada perante as autoridades portuguesas, ao abrigo de qualquer dos títulos, vistos ou autorizações previstos no regime de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros e no regime do direito de asilo»; e, de acordo com a alínea p) do artigo 3.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho (que aprovou o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional), é tido como ‘residente legal’ «o cidadão estrangeiro habilitado com título de residência em Portugal, de validade igual ou superior a um ano».

O senhor…  apenas dispõe de autorização de residência desde o dia 6 de Julho de 2005, facto que, como se referiu, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras atesta, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 25.º do já referido Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (cfr. a Informação n.º 433/DRED/AJ, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, já mencionada na nota 5 e em anexo).

Como é bom de ver, o interessado pretende, em última instância, desencadear o procedimento de concessão de nacionalidade portuguesa, a qual apenas poderá ser presentemente atribuída — verificados que estejam os demais requisitos legalmente exigidos[6] —  caso seja  reconhecida a relevância da residência em Portugal a partir de 5 de Janeiro de 2004.

É que, tendo em atenção a data a partir da qual o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras comprova a residência legal em Portugal, o senhor… apenas verá preenchido o requisito relativo à residência legal no território português pelo período mínimo de seis anos em 6 de Julho de 2011.

 

§2.

A residência legal em território português

Se, antes da entrada em vigor da Lei Orgânica n.º 2/2006 e do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, os candidatos não tinham um direito subjectivo à naturalização e o poder discricionário do Governo só existia no pressuposto de estarem  verificados os requisitos legais (por todos, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 29157, de 21 de Setembro de 2006[7]), actualmente a naturalização pode corresponder a um verdadeiro poder vinculado, designadamente na situação prevista no n.º 1 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade.

Mas, uma vez que, quanto ao requisito relativo à permanência em Portugal, apenas é comprovado que o senhor…  reside legalmente em território português desde o dia 6 de Julho de 2005, importa perguntar: atestando o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 25.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, a residência legal no território português durante determinada fracção de tempo, ficará irremediavelmente esgotada a possibilidade de considerar outros períodos, para além desses?

Estou convicto de que não, desde logo, no caso concreto, por razões de protecção da confiança, de equidade e de Justiça.

Trago aqui à colação a protecção da confiança como critério de solução para o caso concreto, na medida em que entendo que o período, entre 5 de Janeiro de 2004 e 5 de Outubro de 2009, em que o interessado serviu, ininterruptamente, o Exército Português não pode ser desconsiderado, para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa, atendendo até à circunstância de a condição militar do senhor… lhe ter imposto a  sujeição a um estatuto incompatível com o estado de ilegalidade.

Se não, veja-se: no período durante o qual alegadamente estaria em situação ilegal, o senhor… esteve subordinado ao interesse nacional e em permanente disponibilidade para lutar em defesa de Portugal, se necessário com sacrifício da própria vida (artigos 9.º e 14.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas[8] e artigo 36.º  da  Lei de Defesa Nacional[9]).

Esteve, também, sujeito aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares e, bem assim, à formação, instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra.

Do mesmo passo, esteve subordinado à hierarquia militar, inclusive, à aplicação de um regime disciplinar próprio (artigo 17.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas e  artigo 35.º da Lei de Defesa Nacional).

Esteve, igualmente, em situação de permanente disponibilidade para o serviço, mesmo que com sacrifício dos interesses pessoais, estando até obrigado a comunicar a sua residência, mesmo que meramente ocasional (artigo 14.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas).

E, finalmente, sofreu a restrição do exercício de alguns direitos e liberdades (artigo 270.º da Constituição e artigos 26.º e ss. da Lei de Defesa Nacional).

Mal se compreenderia, portanto, que o tempo do serviço militar comprovadamente prestado desde 5 de Janeiro de 2004 até 6 de Julho de 2005 fosse pura e simplesmente esquecido, para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa, sabendo-se que o senhor… , ainda que não dispusesse de autorização de residência formal,  esteve naquele período subordinado ao interesse nacional, sujeito à hierarquia militar e ao respectivo regime disciplinar e em permanente disponibilidade para lutar em defesa de Portugal, se necessário com sacrifício da própria vida.

Às regras que podem ser invocadas para não contabilizar o período de 5 de Janeiro de 2004 até 6 de Julho de 2005, contrapõe o Provedor de Justiça o princípio constitucional da protecção da confiança, ele mesmo «base ou (…) ratio de regras jurídicas»[10].

No caso em apreço, o princípio da protecção da confiança — na medida em que existe, de facto, uma confiança digna de protecção — configura um standart juridicamente vinculante que radica na exigência de Justiça[11], e que impõe o reconhecimento da repercussão do tempo na definição de uma situação jurídica de ‘residência legal’, em linha com o que a doutrina  chama de surrectio[12].

Na situação a que me venho referindo, estão preenchidos os respectivos requisitos:  «um certo lapso de tempo, por excelência variável, durante o qual se actua uma situação jurídica em tudo semelhante ao direito subjectivo que vai surgir; (…) uma conjunção objectiva de factores que concitem, em nome do Direito, a constituição do novo direito; (…) a ausência de previsões negativas que [a] impeçam»[13].

Com efeito, o tempo durante o qual o senhor… esteve ao serviço do Exército Português — de 5 de Janeiro de 2004 a 5 de Outubro de 2009 — não pode deixar de lhe conferir como que uma «permissão específica de aproveitamento»[14], um direito subjectivo, ao seu reconhecimento como ‘período de residência legal em território nacional’, para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa.

 

III
CONCLUSÃO

 
Em face do que deixo exposto e uma vez que, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 7.º do da Lei da Nacionalidade, a competência para conceder a naturalização é do Ministro da Justiça, faço uso dos poderes que me são conferidos pelo disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), e RECOMENDO a Vossa Excelência

Que, caso o senhor… venha a requerer a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização, seja considerado, para aquele efeito, que o interessado teve residência legal em Portugal no período compreendido entre os dias 5 de Janeiro de 2004 e 6 de Julho de 2005.

Se, como espero, a presente Recomendação merecer o acolhimento de Vossa Excelência, darei conta ao senhor… da necessidade de ser pedida a concessão da nacionalidade portuguesa, em cujo procedimentos será contabilizado, como residência legal em território português, o tempo durante o qual serviu o Exército Português.

Dignar-se-á Vossa Excelência comunicar-me, em não mais do que 60 dias, a posição que é assumida em face da presente Recomendação, em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril.

 

Com os melhores cumprimentos,

O Provedor de Justiça,

Alfredo José de Sousa

 

 


ANEXOS:       Cópia da folha de matrícula do Exército Português.

                      Cópia da Informação n.º 433/DRED/AJ, de 14/12/2009, e despacho do Director Regional de Lisboa, Vale do Tejo e Alentejo do SEF.



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[1] Pela importância dos factos que a mesma atesta, junta-se, em anexo, cópia da Folha de Matrícula do interessado no Exército Português.

[2] Não se cuidará de tratar, nesta sede, dos motivos que conduziram à indevida incorporação do senhor…  no Exército Português, uma vez que, para a economia da presente Recomendação, é apenas relevante o tempo de serviço efectivo e não as razões do lapso.

[3] Esta circunstância assume especial relevância no caso concreto, na medida em que a experiência profissional do interessado no Exército Português o habilitaria, em princípio, a desempenhar funções em forças de segurança (GNR e PSP), para as quais se considera especialmente preparado e vocacionado. O ingresso nestas, contudo, exige a nacionalidade portuguesa.

[4] Antes, porém, em 27 de Julho de 1998, o interessado solicitara autorização de residência, ao abrigo do artigo 63.º do Decreto-Lei n.º 59/93, de 3 de Março, tendo sido aberto o processo n.º 7964/1998, o qual  veio a ser  declarado extinto por inutilidade superveniente.

[5] Cfr. a Informação n.º 433/DRED/AJ, de 14 de Dezembro de 2009, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em anexo, a qual mereceu despacho de concordância do Director Regional de Lisboa, Vale do Tejo e Alentejo, de 16 de Dezembro de 2009.

[6] A informação da Conservatória dos Registos Centrais produzida no âmbito do processo n.º 3078/07, relativo a um pedido de concessão da nacionalidade portuguesa, por naturalização, nos termos do n.º 6 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade, revela a satisfação, àquela data, dos demais requisitos, a saber: a maioridade, o conhecimento da língua portuguesa e a não condenação pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos.

[7] Disponível em http://www.dgsi.pt/…

[8] Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 236/99, de 25 de Junho, alterado pela Lei n.º 25/2000, de 23 de Agosto, e pelos Decretos-Leis n.os 197-A/2003, de 30 de Agosto; 70/2005, de 17 de Março; 166/2005, de 23 de Setembro; 310/2007, de 11 de Setembro; 330/2007, de 9 de Outubro, e 59/2009, de 4 de Março.

[9] A Lei Orgânica n.º 1-B/2009, de  7 de Julho, que aprovou a Lei de Defesa Nacional, foi publicada, primeiramente, como “Lei n.º 31-A/2009, de 7 de Julho”. Foi rectificada, posteriormente, para “Lei Orgânica n.º 1-B/2009, de 7 de Julho” pela Declaração de Rectificação n.º 52/2009, de 20 de Julho.

[10] Canotilho, J. J. Gomes,  Direito Constitucional, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 1998, p.1086-1087.

[11] Canotilho, J. J. Gomes, Direito Constitucional, cit, p.1086-1087.

[12] Cfr. Menezes Cordeiro, António Manuel da Rocha, Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II, Coimbra, Almedina, 1984, p.821-823.

[13] Idem, ibidem.

[14] Idem, ibidem.