Sua Excelência


A Ministra da Educação


Av. 5 de Outubro, 107


1069-018 LISBOA


 


 


Vossa Ref.ª Vossa Comunicação Nossa Ref.ªProc. R-2380/10 (A6)15/11/2010


 


Assunto: Instituições particulares de solidariedade social. Educadores de infância. Caixa Geral de Aposentações.


Recomendação n.º 9/B/2010


(art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril)


1. O Provedor de Justiça recebeu algumas queixas de cidadãos pelo facto de a Caixa Geral de Aposentações não ter aceite a inscrição de educadores de infância a exercer as suas funções em instituições particulares de solidariedade social, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 321/88, de 22 de Setembro.


Este diploma veio permitir a inscrição, na Caixa Geral de Aposentações, do pessoal docente dos estabelecimentos de ensino não superior, particular e cooperativo.


De acordo com o apurado no âmbito de troca de correspondência mantida, a propósito das referidas situações concretas, com a Caixa Geral de Aposentações, a não aceitação das inscrições dos docentes em causa apoiar-se-á no entendimento de que os estabelecimentos de educação pré-escolar detidos por instituições particulares de solidariedade social se encontrarão excluídos do âmbito de aplicação do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro, sendo certo que o âmbito de aplicação deste Estatuto é feito coincidir com o âmbito de aplicação do citado Decreto-Lei n.º 321/88.


Ainda no seguimento da instrução realizada, apurou-se que, muito concretamente, o referido entendimento terá tido como suporte uma informação de 24 de Março de 2008, subscrita pelo então Secretário de Estado da Educação e dirigida à referida Caixa (cuja cópia anexo, para mais fácil elucidação), na qual expressamente se refere “que os estabelecimentos de ensino pré-primário das IPSS que ministrem educação pré-escolar não se integram no âmbito do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, aprovado pelo DL n.º 553/80, de 21 de Novembro”.


Nesse documento, fundamenta o então membro do Governo tal conclusão da seguinte forma:


“Com efeito, compulsando os artigos 7.º e 14.º da Lei Quadro da Educação Pré-escolar e no que se reporta aos estabelecimentos de ensino que integram a respectiva rede privada, resulta claro o facto de a mesma integrar, por um lado, estabelecimentos de ensino particular e cooperativo e, por outro, instituições particulares de solidariedade social, sendo certo que o estatuto dos primeiros se encontra consagrado no DL n.º 553/80, de 21 de Novembro e o estatuto das segundas foi instituído pelo DL n.º 119/83, de 25 de Fevereiro”.


2. Creio, no entanto, Senhora Ministra, que a fundamentação e as conclusões ínsitas na informação transcrita encerram uma interpretação da legislação pertinente que não é, nem a mais adequada, nem tão pouco conforme à Constituição, pelas razões que me permitirei expor de seguida.


A Lei Quadro da Educação Pré-Escolar, aprovada pela Lei n.º 5/97, de 10 de Fevereiro, bem como o Decreto-Lei n.º 147/97, de 11 de Junho, que, em concretização da primeira, estabelece o regime jurídico do desenvolvimento e expansão da educação pré-escolar, definindo o respectivo sistema de organização e financiamento, assumem que a educação pré-escolar, no que à rede privada diz respeito, integra os estabelecimentos de educação pré-escolar que funcionem no âmbito designadamente do ensino particular e cooperativo e em instituições particulares de solidariedade social.


É o que resulta, em primeira linha, do art.º 14.º da Lei Quadro mencionada, e naturalmente também do disposto no respectivo art.º 7.º, embora nesta última o objectivo seja o de esclarecer que tipo de iniciativas da sociedade – de natureza particular, cooperativa e social –no domínio da educação pré-escolar incumbe ao Estado apoiar.


Naturalmente que existindo – como, de facto, existem – enquadramentos legais distintos para a criação dos estabelecimentos de educação privados – o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo aplica-se à criação em geral dos estabelecimentos particulares e cooperativos, e o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social (Estatuto das IPSS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, aplica-se à criação dos estabelecimentos privados de iniciativa destas entidades –, são as normas de cada um destes Estatutos que deverão aplicar-se a cada caso concreto, como for de razão. De resto, e existindo legislação distinta para a criação de estabelecimentos de ensino em função da natureza das entidades que os detêm, não seria naturalmente necessária a existência de normas específicas, por exemplo no âmbito da Lei Quadro da Educação Pré-Escolar, para que cada um dos Estatutos se fizesse aplicar à respectiva situação .


Sucede que o Estatuto das IPSS – que se aplica a todas as instituições com esta natureza, quer detenham ou não estabelecimentos de educação – contém essencialmente normas respeitantes à constituição, modificação, extinção e organização interna das instituições, nada estipulando quanto ao funcionamento dos estabelecimentos de educação pelas mesmas eventualmente detidos, nem muito menos ao regime aplicável ao respectivo pessoal, designadamente docente. Concretamente, nada estipula este Estatuto sobre as condições de exercício das funções dos docentes que prestam serviço nos estabelecimentos de educação geridos por instituições particulares de solidariedade social, ao nível pré-escolar ou outro.


Assim sendo, as questões relacionadas com as condições de exercício da actividade dos docentes de estabelecimentos de educação das instituições particulares de solidariedade social, qualquer que seja o nível de ensino que ministrem, terão de ser necessariamente resolvidas através das regras decorrentes do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, já que, como se disse, o Estatuto das IPSS nada diz a respeito.


De resto, nunca foi posta em causa a aplicação do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo aos estabelecimentos de educação das IPSS que ministram os restantes níveis de ensino, básico e secundário, só existindo a presente questão, crê-se, por via da dicotomia expressa nas duas primeiras alíneas do art.º 7.º da Lei-Quadro, à qual se quis atribuir um alcance que efectivamente não tem nem pretende ter.


Aliás, a Caixa Geral de Aposentações é clara a este propósito, afirmando, no âmbito da troca de correspondência acima mencionada, que “estando os estabelecimentos de ensino das IPSS abrangidos pelo Estatuto Particular e Cooperativo (…), a generalidade do seu pessoal docente encontra-se integrada no sistema gerido pela Caixa Geral de Aposentações, nos termos do Decreto-Lei n.º 321/88, de 22 de Setembro”.


A Caixa apenas exclui da possibilidade de inscrição os docentes dos estabelecimentos de educação pré-escolar das IPSS, invocando, como se disse, que estes não se encontram abrangidos pelo Estatuto Particular e Cooperativo, mas pelo Decreto-Lei n.º 119/83, que aprova o Estatuto das IPSS. Ora, este Estatuto não consagra, como vimos, qualquer disposição aplicável aos docentes da educação pré-escolar que designadamente leve à sua exclusão do âmbito de aplicação do Estatuto Particular e Cooperativo, por se considerar estar perante um caso de norma especial vs. norma geral.


Deste modo e em síntese, não há dúvida sobre a aplicação, no que toca à constituição, modificação, extinção e organização interna das IPSS que detêm estabelecimentos de educação pré-escolar, das normas para o efeito consagradas no Estatuto das IPSS, devendo as restantes matérias relacionadas com o funcionamento destes estabelecimentos de ensino, designadamente as referentes às condições de exercício da actividade dos respectivos docentes, relativamente às quais o Estatuto das IPSS é inteiramente omisso, ser reguladas pelo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo nos mesmos moldes previstos para os restantes docentes do ensino privado, incluindo os da IPSS.


3. Por outro lado, a argumentação utilizada em 2008 para distinguir artificiosamente entre docentes de estabelecimentos detidos por IPSS e docentes de estabelecimentos detidos por outras entidades privadas, com prejuízo para aqueles, assente exclusivamente numa repartição por duas alíneas distintas do art.º 7.º da Lei n.º 5/97 destas duas realidades, é bastante fraca, mesmo do ponto de vista literal e sistemático.


Assim, em primeiro lugar, não é apresentada qualquer fundamentação que explicasse a racionalidade da distinção em causa, ainda mais cabendo perguntar qual o motivo que levaria à maior desprotecção dos docentes em IPSS, comparativamente com os docentes em instituições privadas de outro cariz, designadamente lucrativo. Não parece ter tido lugar a interrogação, que julgo normal a qualquer observador, de qual seria o motivo lícito que assim promoveria e discriminaria positivamente o exercício de funções num estabelecimento com fins lucrativos, isto face a quem desempenhasse as mesmíssimas funções, mas desta feita em estabelecimento com fins sociais.


Em termos literais (os únicos em que se alcança algum arrimo), a infelicidade de tal argumentação é idêntica. É verdade que o acima citado art.º 7.º da Lei n.º 5/97, ao elencar os diversos tipos de estabelecimento cujo funcionamento deve merecer o apoio estadual, distingue, nas suas três alíneas, os “estabelecimentos de ensino particular e cooperativo” das “instituições particulares de solidariedade social”, bem como, já agora, das “outras instituições sem fins lucrativos que prossigam actividades nos domínios da educação e do ensino”.


Se a razão desta tricotomia, que não é clara, pode eventualmente pretender incutir uma diferenciação dos apoios a prestar (a sua forma) pelo Estado, seguramente que não se pode ver em tal norma, de conteúdo e alcance tão limitados, a interpretação autêntica do âmbito do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, de 1980. Aliás, aparentemente não se geraram dúvidas a este propósito até momento bastante posterior à publicação da Lei n.º 5/97.


Do mesmo modo, a nova terminologia – de rede privada –, empregue nesta Lei n.º 5/97, englobando as realidades educativas acima discriminadas, tal como enunciado no seu art.º 14.º, não parece ser decisiva na questão que ora nos ocupa ou, em termos mais latos, na definição do âmbito do Estatuto de 1980, pelo menos no que ao funcionamento dos estabelecimentos e ao regime do pessoal diz respeito.


A própria Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar determina, no respectivo art.º 18.º, sob a epígrafe “Regime de pessoal”, que “aos educadores de infância que exerçam funções na rede privada [incluindo naturalmente os educadores das IPSS, já que a lei não os exclui e isto por via do já citado art.º 14.º da mesma Lei] devem ser, progressivamente, proporcionadas idênticas condições de exercício e de valorização profissionais” (n.º 2).


Também o diploma que aprova as bases do ensino particular e cooperativo, a Lei n.º 9/79, de 19 de Março, nos orienta em sentido inverso ao da informação citada, desde logo referindo, no respectivo art.º 11.º, que “todo aquele que exerce funções docentes em escolas particulares e cooperativas de ensino, qualquer que seja a sua natureza ou grau, tem os direitos e está sujeito aos específicos deveres emergentes do exercício da função docente, para além daqueles que se encontram fixados na legislação do trabalho aplicável” (sublinhado meu).


O art.º 12.º da mesma Lei concretiza a ideia de uniformização das condições de exercício dos docentes, não só dentro da rede privada como relativamente aos docentes da rede pública, definindo que “os contratos de trabalho dos professores do ensino particular e cooperativo e a legislação relativa aos profissionais de ensino, nomeadamente nos domínios salarial, de segurança social e assistência, devem ter na devida conta a função de interesse público que lhes é reconhecida e a conveniência de harmonizar as suas carreiras com as do ensino público”.


O legislador sublinha, ainda, que para o efeito o Governo deve “proporcionar a progressiva integração dos docentes numa carreira profissional comum, garantindo na medida do possível a manutenção dos direitos adquiridos, desde que devidamente comprovados” (art.º 13.º, n.º 5).


O Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, aprovado em concretização das bases referidas, reforça estas orientações designadamente nos respectivos art.ºs 45.º e 46.º. Nos art.ºs 70.º e 71.º, este Estatuto prevê um conjunto de regras para o trânsito de docentes da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário entre o sector particular e o sector público, não excluindo, em nenhum momento, os educadores das IPSS.


Aliás, o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo não exclui, em momento algum, da sua previsão os educadores das IPSS, sendo certo que dispõe de uma norma específica, a do art.º 3.º, n.º 3, que expressamente afasta do âmbito de aplicação do diploma um conjunto de situações, nenhuma delas directa ou indirectamente referente à educação pré-escolar prestada por IPSS.


Na falta de norma excludente, como a do citado art.º 3.º, n.º 3, tem necessariamente que reger a cláusula geral do respectivo n.º 2, quando manda aplicar o referido Estatuto a “todas as escolas particulares de nível não superior”, definindo-se no n.º 1 do mesmo art.º 3.º que escola particular é a criada por pessoa singular ou colectiva privada “em que se ministre ensino colectivo a mais de cinco alunos ou em que se desenvolvam actividades regulares de carácter educativo”, uma vez mais nada bulindo, bem pelo contrário, com a abrangência dos estabelecimentos detidos por IPSS no seu âmbito.


4. Finalmente, há que sublinhar que as considerações de ordem substantiva que motivaram o legislador a permitir, no âmbito do regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 321/88, a inscrição dos docentes do ensino particular e cooperativo na Caixa Geral de Aposentações, constantes do preâmbulo do diploma, aplicam-se integralmente aos educadores da IPSS.


São elas – algumas naturalmente com uma localização e terminologia históricas específicas – o facto de os docentes (do ensino particular e cooperativo) terem deixado de beneficiar da isenção do imposto profissional, a circunstância de, conforme já referido, o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo preconizar a progressiva aproximação das situações dos professores do ensino particular e cooperativo e do ensino público, designadamente através de mecanismos tendentes à respectiva integração em carreira profissional comum, e ainda o facto de a Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro) atribuir a natureza de interesse público às funções desempenhadas pelos estabelecimentos de ensino particular e cooperativo no âmbito do sistema educativo.


Assim sendo, e sem conceder, mesmo que não se considerassem válidas as razões de ordem mais formal acima enunciadas para a não exclusão dos educadores das IPSS da possibilidade, à semelhança dos demais docentes do ensino particular, de inscrição na Caixa Geral de Aposentações, razões de mera justiça material imporiam sempre que a solução fosse idêntica para todos.


Existindo a mesma ratio decidendi para todas as realidades em presença, como se augura a partir da leitura do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 321/88, a diferenciação em apreço, resultando apenas da mera titularidade de dois estabelecimentos privados, um com fins lucrativos e o outro com fins sociais, em prejuízo deste último, redundaria sempre num resultado não querido pela Constituição.


Na verdade, esse resultado, que traduz a posição até agora defendida e que ora se critica, mostra-se violador, não só do princípio da igualdade, como também dos princípios que, em sede de coexistência de sectores, da definição do sistema educativo e das responsabilidades do Estado neste domínio, são simultaneamente aqui convocados, por força dos art.ºs 74.º, 75.º e 82.º da Constituição.


Ora, existindo uma posição interpretativa conforme à Constituição e outra, que apenas para este efeito se toma como possível – e que manifestamente não o é –, um dos princípios basilares de hermenêutica jurídica manda que se opte pela primeira, assim salvando a efectividade da norma .


5. À luz das considerações atrás expendidas, entendo que a interpretação das normas legais constante da informação do Governo que se anexa, no sentido de se excluir os docentes da educação pré-escolar das IPSS do âmbito de aplicação do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo – logo, do âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 321/88, diploma que possibilitou a inscrição na Caixa Geral de Aposentações dos docentes do ensino particular e cooperativo –, é inconstitucional por promover a discriminação dos referidos educadores, sem que se vislumbre fundamento material atendível para essa distinção, em violação directa, portanto, do art.º 13.º da Constituição.


Mostrando-se possível uma interpretação conforme à Constituição, permito-me recomendar a Vossa Excelência, ao abrigo do art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,


que seja rectificada junto da Caixa Geral de Aposentações a interpretação do acervo normativo em causa, não excluindo do âmbito de aplicação do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro, os docentes dos estabelecimentos de educação pré-escolar detidos por quaisquer entidades do ensino particular e cooperativo, incluindo por instituições particulares de solidariedade social.


Na expectativa de que o que fica recomendado mereça o acolhimento que me parece tão desejável, aguardo naturalmente por uma resposta a esta minha comunicação no prazo para o efeito previsto na lei (art.º 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça).


Aproveito a oportunidade para apresentar a Vossa Excelência os meus melhores cumprimentos,


O Provedor de Justiça,


 


Alfredo José de Sousa


 


 


 


 


 


 


Anexo: Cópia da informação do Governo acima mencionada.