Ex.mo Senhor
Presidente da Câmara Municipal de Portimão
Edifício Paços do Concelho
Praça 1.º de Maio 
8500 – 543 PORTIMÃO


 


Vossa Ref.ª  Vossa Comunicação  Nossa Ref.ª
N.º de registo 29537
NIPG 34716/11  Ofício n.º 23728/11
 de 21.09.2011 Proc.º R – 2618/11 (A2)
 


 


Assunto: Queixa apresentada na Provedoria de Justiça acerca do Regulamento da Actividade da Venda Ambulante. Restrição de acesso aos não residentes.  


 


RECOMENDAÇÃO N.º  9/A/ 2011


 – Art.ºs 8.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril  –


 


I
– Enunciado – 


1. Uma cidadã, residente em Monchique e que pretendia exercer a sua actividade de vendedora ambulante em Portimão, apresentou junto do Provedor de Justiça uma queixa por ter sido indeferido o seu pedido de emissão do cartão de que necessitava para esse efeito. 


2. Na verdade, a emissão de cartão de vendedor ambulante terá sido recusada com fundamento no art.º 4.º, n.º 2 do Regulamento da Actividade da Venda Ambulante de Portimão, ou seja, pelo facto de a requerente residir fora do município de Portimão.


3. Compulsado esse Regulamento, confirmou-se, efectivamente, que a decisão de indeferimento do pedido de atribuição do cartão encontra respaldo naquela norma regulamentar, já que aí se refere que “só será emitido cartão de vendedor ambulante aos residentes e recenseados na área do Município de Portimão há mais de cinco anos, e aos que não se encontrando nestas condições provem exercer a actividade de vendedor ambulante há mais de 10 anos consecutivos ou sejam considerados casos excepcionais de reconhecido interesse para o Município”.


4. Ora, o problema objecto desta queixa decorreu, precisamente, do facto de a reclamante não preencher qualquer um desses requisitos: reside em Monchique, só em Julho de 2010 adquiriu o veículo destinado a venda ambulante e nada na actividade que se propõe exercer (venda de produtos alimentares na Praia da Rocha) permite classificá-la como excepcional.     


5. Contudo, impunha-se proceder à apreciação da correcção daquela norma à luz da conformação a que estão obrigadas as normas regulamentares face às disposições legais e aos comandos constitucionais.



   II
 – Apreciação –


6. Nos termos da alínea a) do n.º 2 do art.º 53.º da Lei das Autarquias Locais (Lei n.º 169/99, de 18.09 ), foi atribuída competência aos municípios para a aprovação de regulamentos com eficácia externa, dispondo as autarquias de poder regulamentar próprio nos limites das leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.


7. Como se ensina no Manual de Direito Administrativo do Prof. Marcello Caetano , a propósito do instituto do regulamento, “(…) o Direito criado pelo regulamento não possui o mesmo valor do estatuído por lei . E assim:


a) O regulamento estatui na medida em que a lei lho consinta – dentro dos limites por ela marcados, ou por execução das suas normas, ou sobre as matérias por ela abandonadas;
b) Os regulamentos existentes ficam revogados pelo aparecimento de uma lei que estatua contrariamente às suas disposições;
c) O regulamento não vale em tudo o que contrariar o disposto na lei que executa, ou a cuja sombra nasce.” (sublinhado nosso).          


Deste modo, os regulamentos municipais não podem dispor para além dos limites da lei, contrariando-a, ou, sequer, excedendo-a.


8. Dispõe o art.º 16.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 122/79, de 8.05 , que, entre outras competências, “(…) podem as câmaras municipais (…) restringir, condicionar ou proibir a venda ambulante, tendo em atenção os aspectos hígio sanitários, estéticos e de comodidade para o público”. 


9. Ou seja, em matéria de restrições ao exercício da venda ambulante, a lei habilitante apenas autorizou a intervenção das autarquias em nome de exigências relacionadas com a higiene, a estética e o conforto dos espaços, sem que tenha sido feita qualquer menção à residência dos potenciais vendedores.


10. Nestes termos, haveria que questionar a legalidade da norma constante do art.º 4.º, n.º 2 do Regulamento da Actividade de Venda Ambulante do Município de Portimão que instituiu um requisito – ex novo, isto é, que não constava da lei habilitante – para o exercício da venda ambulante, relacionado com o local de residência ou de recenseamento dos vendedores. 


11. Adicionalmente, chamou-se ainda à discussão a necessidade de asseverar a correcção dessa norma regulamentar à luz dos princípios constitucionais da iniciativa económica privada e de organização empresarial (cfr. art.ºs 61.º, n.º 1 e 80.º, alínea c), respectivamente, da Constituição República Portuguesa) e das regras da concorrência que proíbem restrições ao acesso e ao exercício das actividades económicas que não se afigurem justificadas face ao imperativo do bom funcionamento do mercado. 


12. Por conseguinte, foi o Senhor Presidente da Câmara Municipal de Portimão instado a pronunciar-se acerca da adequação da norma regulamentar em crise, equacionando a possibilidade de promover a respectiva expurgação do Regulamento da Actividade da Venda Ambulante de Portimão.


13. Esse pedido foi ainda corroborado pela experiência que já havia sido obtida aquando da análise de uma outra queixa, apresentada por um outro particular contra a Câmara Municipal de Porto, visando uma norma – o art.º E-5/3.º do respectivo Código Regulamentar – que se afigurava igualmente restritiva do exercício da actividade da venda ambulante a quem residisse fora da área do respectivo território concelhio.


14. Através do Aviso n.º 7791/2010, de 19.04.2010, essa norma foi expurgada do referido Regulamento, o que claramente traduz a consciencialização, da parte da Câmara Municipal do Porto, da irregularidade que aquela norma transportou para o Regulamento em causa, ao restringir, sem causa juridicamente atendível, o exercício da actividade da venda ambulante.


15. Distanciando-se desse entendimento, porém, através de ofício remetido pela Senhora Chefe da Divisão Administrativa, a Câmara Municipal de Portimão decidiu manter aquela norma no seu Regulamento da Actividade da Venda Ambulante. Fê-lo, argumentando da seguinte forma:


a) Esse Regulamento entrou em vigor em 1.01.2005 e teve como objectivo “(…) evitar o aumento do número de pessoas a exercer aquela actividade e inclusivamente diminuir o número de pessoas que a exerciam (…)”, já que, até então, existia um número substancial de pessoas que se dedicavam a essa actividade sem quaisquer restrições;
b) Esse objectivo mantem-se actual, uma vez que o município “(…) pretende restringir o acesso à actividade da venda ambulante por questões de ordem estética e de ordenamento do espaço urbano (…)”;
c) A competência da edilidade para regulamentar a actividade da venda ambulante no domínio da respectiva circunscrição territorial não está limitada aos aspectos hígio-sanitários, estéticos e de comodidade para o público, porque “(…) havia também que estabelecer alguns requisitos de acesso ao exercício da actividade sob pena de qualquer um poder exercer a actividade desde que respeitasse as questões higiénicas, estéticas e de conforto dos espaços,, o que não é possível face ao enorme universo de pretensões dessa natureza (…)”.            


16. Salvo o devido respeito, porém, e como melhor adiante se defenderá, julga-se que esta posição não deve proceder, quer à luz da legislação – nacional e comunitária -, quer por respeito aos princípios constitucionais e de direito comum que, simultaneamente, animam e devem conformar o exercício de todas as actividades económicas, sobretudo na actual conjuntura financeira que abalou fortemente o mercado laboral no lado da oferta de emprego.
   
17. Comecemos então por apreciar o poder regulamentar de que dispunha a autarquia de Portimão no sentido de disciplinar o acesso à actividade da venda ambulante nesse Município e de restringir o respectivo exercício.


18. A fonte primitiva desse poder encontra-se no art.º 241.º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “as autarquias locais dispõem de poder regulamentar próprio nos limites da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com poder tutelar”.


19. Como se começou por referir no início desta apreciação, decorre do art.º 53.º, n.º 2, alínea a) da Lei das Autarquias Locais que as autarquias dispõem de competência para aprovarem regulamentos com eficácia externa.  


20. Como referiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 77/2003 (processo n.º 416/02) , a existência de um diploma específico, atribuindo aos municípios competências numa determinada matéria constitui um limite negativo dessas competências, enquanto norma especial, prevalecente sobre a genérica atribuição de competências resultante da Lei n.º 169/99, de 18.09.


21. Na verdade, a jurisprudência constante desse Tribunal acolheu o “(…) princípio da primariedade ou da precedência da lei, utilizado pela Constituição para restringir um amplo grau de liberdade de conformação normativa da Administração que se representa pouco compatível com o Estado de direito democrático” , o que implica que “(…) as autarquias locais dispõem de poder regulamentar próprio, cuja medida a lei determina, e que tem como limite, nomeadamente, o domínio reservado à lei (…), pelo que, (…) o regulamento não pode ir além de simples pormenores de execução (…)” .


22. Por considerar que “(…) a Constituição, ao impor o dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos, pretende garantir que a subordinação do regulamento à lei (e, assim, a precedência da lei relativamente a toda a actividade administrativa) seja explícita (ostensiva), tornando ilegítimos os regulamentos que não indiquem expressamente a lei que visam regulamentar ou que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão (…)” , o Tribunal Constitucional declarou já, por diversas vezes, a inconstitucionalidade de regulamentos que não indiquem, de forma expressa, a respectiva lei habilitante, ou que extravasem os limites pela mesma impostos.               


23. Por tudo isto, julga-se que, não obstante a multiplicidade de alterações que as leis comuns e a Lei Constitucional sofreram desde o seu tempo, os ensinamentos do Prof. Marcello Caetano se mantêm perfeitamente actuais, nomeadamente quando defendeu que o alcance do que é estatuído por um regulamento tem que se conter dentro dos limites que lhe foram marcados pela respectiva lei habilitante, sob pena de a respectiva constitucionalidade ser posta em causa, inclusivamente pelo Provedor de Justiça, ao abrigo dos poderes que lhe foram conferidos pelo respectivo Estatuto.


24. Adicionalmente, deve ainda recordar-se a competência de que dispõe o Ministério Público para se pronunciar a respeito da legalidade de regulamentos com eficácia externa, categoria em que se enquadra, com facilidade, o Regulamento da Actividade de Venda Ambulante de Portimão, uma vez que não se destina a produzir os seus efeitos unicamente na esfera dos serviços internos dessa autarquia, antes se repercutindo em terceiros integrados num universo de destinatários genérica e abstractamente definido.             


25. Assim, no caso em apreço, o “diploma específico”, a que se referiu supra (cfr. ponto 20), será, claramente, o Decreto-Lei n.º 122/79, de 8.05, diploma que veio regulamentar a venda ambulante.


26. Disciplina esse diploma, directamente, isto é, sem necessidade de interposição de outros intervenientes, maxime das autarquias locais e do respectivo poder normativo–regulamentar, vários aspectos relacionados com essa actividade, como sucede com a definição de vendedores ambulantes (cfr. art.º 1), as interdições a que ficam sujeitos (cfr. art.º 4.º), ou com as regras de transporte, arrumação, exposição e arrecadação dos produtos (cfr. art.ºs 8.º e  9.º).


27. Entendeu o legislador, ainda assim, deixar a cargo das câmaras municipais a competência para regular determinados aspectos da venda ambulante, conforme previsto nos art.ºs 16 a 19.º desse diploma, ou seja, matérias relacionadas com a possibilidade de condicionar o exercício da venda ambulante em certos locais e desde que preenchidos determinados requisitos e com a emissão do cartão de vendedor.  


28. Ora, em sede de restrições, condicionamentos e proibições para o exercício da venda ambulante, a norma a ter em conta encontra-se plasmada na alínea a) do art.º 16.º desse diploma, segundo a qual – recorda-se – compete às câmaras municipais “restringir, condicionar ou proibir a venda ambulante, tendo em atenção os aspectos hígio-sanitários, estéticos e de comodidade”.      
 
29.  Julga-se, assim, evidente que a única interpretação possível dessa norma é a de que o poder normativo pela mesma conferido às câmaras municipais acha-se limitado e deve, portanto, conter-se, aos aspectos relacionados com a higiene, a estética e o conforto proporcionado ao público por esse espaço.


30. Para essa conclusão concorre não só o elemento literal da interpretação e a presunção de que legislador soube exprimir-se correctamente (cfr. art.º 9.º, n.º 3 do Código Civil), mas também os elementos sistemático e teleológico.


31. Na verdade, lê-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 122/79, de 8.05, que as alterações que esse diploma introduziu prosseguiram o objectivo de “coordenar as diligências dos interessados na prática do exercício legítimo do seu comércio, bem como o de salvaguardar o interesse geral, em que ocupa lugar proeminente a posição do consumidor, na linha do rumo que, em sua defesa, vem sendo traçada”.            


32. Significa isto que as restrições, condicionamentos e proibições a introduzir pelas autarquias municipais devem respeitar os direitos dos vendedores – sem que, automaticamente, se reconheçam mais direitos aos vendedores residentes no concelho do que aos restantes – e os direitos dos consumidores, que certamente em nada saem reforçados com uma oferta na venda ambulante circunscrita aos vendedores residentes no concelho.         


33. Por esse motivo, não pode acolher-se a posição veiculada pela Câmara Municipal de Portimão no sentido de o respectivo poder regulamentar em matéria de venda ambulante não estar limitado aos aspectos sanitários, de estética ou conforto dessa actividade, porque a “lei habilitante” assim o impõe e exige e porque só dessa forma os objectivos definidos no respectivo preâmbulo são acautelados.


34. Outra forma de abordagem do assunto que ora nos ocupa é-nos dada pelo Decreto- Lei n.º 92/2010, de 26.07, que, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12, relativa aos serviços no mercado interno, veio estabelecer os princípios e as regras para simplificar o livre acesso e exercício das actividades de serviços realizadas em território nacional.


35. Nos termos do art.º 14.º, 1), b) daquela Directiva “(…) os Estados-Membros não devem condicionar o acesso a uma actividade de serviços ou o seu exercício no respectivo território (…) ao requisito da residência do prestador (…)”.


36. Transpondo essa orientação, o art.º 10.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26.07, estipulou, em sede de igualdade e não discriminação de prestadores de serviços, que “o acesso ou o exercício de uma actividade de serviços por parte de um prestador de serviços não pode ser condicionado à verificação de pressupostos, de requisitos ou de condições discriminatórias baseadas na nacionalidade, no local de residência ou no local da sede”.  


37.  Mostrando-se inequívoco que um vendedor ambulante se integra, sem dificuldade, na noção de “prestador de serviços”, enquanto pessoa que oferece ou presta um serviço (cfr. art.º 2.º, n.º 3) e que essa actividade se enquadra no âmbito objectivo desse diploma, definido como o leque de “actividades de serviços que se realizem mediante contraprestação económica e que sejam prestados ou oferecidos no território nacional”, poderiam surgir algumas dúvidas quanto ao enquadramento da venda ambulante nesse diploma, atenta a noção de estabelecimento que decorre do respectivo art.º 4.º, questionando-se, designadamente, se uma caravana pode ser considerada uma “infra-estrutura estável”, para esse efeito.


38. O legislador, porém, evitou essa dúvida, quando, em anexo ao diploma, juntou uma “lista exemplificativa  de actividades de serviços a que se refere o n.º 1 do art.º 3.º” (âmbito objectivo do diploma), da qual consta expressamente o comércio não sedentário (feirantes e venda ambulante) e realização de feiras.   


39. Assim, sem margem para quaisquer dúvidas, pode afirmar-se que esse diploma abrange a actividade da venda ambulante, sendo, por via dessa norma legal, expressamente proibido restringir o acesso ou exercício dessa actividade em função do local de residência do prestador do serviço.


40. Por todo o exposto, julga-se que a norma constante do art.º 4.º, n.º 2 do Regulamento da Actividade da Venda Ambulante de Portimão é manifestamente ilegal, quer porque extrapola as competências que foram atribuídas nessa matéria às autarquias locais pelo art.º 16.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 122/79, de 8.05, quer porque contraria, flagrantemente, a proibição fixada no art.º 10.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26.07.  


41. Atestada a ilegalidade dessa norma, restaria ainda a análise da sua conformidade face aos princípios constitucionais e às regras gerais da concorrência.


42. Dispõe o art.º 61.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que “a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos na Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral”.


43. Como escreveram Gomes Canotilho e Vital Moreira  em anotação a esse comando constitucional,“(…) sendo a regra a liberdade de iniciativa (…), as limitações ou restrições terão de ser justificadas à luz da proporcionalidade e sempre com respeito de um “núcleo essencial” que a lei não pode aniquilar (…)”.


44. Donde decorre que, limitar o acesso à actividade da venda ambulante, sob o pretexto de ter que se controlar o número de pessoas que exercem esta actividade, implica uma completa desproporção entre o sacrifício que se impõe aos particulares que vêem negada a respectiva pretensão, isto é, a privação de uma determinada actividade profissional, e o resultado que se obtém, isto é, reduzir o número de vendedores ambulantes.


45. Não se compreendem, sequer, os motivos pelos quais a selecção dos comerciantes que a Câmara Municipal de Portimão defende, se faça, primordialmente, em função da respectiva residência.


46. Aliás, sempre que nos serviços públicos há a necessidade de gerir uma situação de numerus clausus, os critérios fixados baseiam-se no mérito dos proponentes (como sucede com o ingresso dos estudantes no ensino superior ou mesmo com os concursos públicos), ou, simplesmente, na ordem de chegada, como acontece, por exemplo, com o sistema de senhas para efeitos de atendimento em Serviços de Finanças e da Segurança Social.


47. Adicionalmente, em muitos casos em que os serviços públicos se vêem na contingência de ter que proceder a uma selecção de propostas ou de proponentes, é seguida a modalidade do concurso público, em que se estabelece previamente uma grelha na qual são estabelecidos critérios e subcritérios de avaliação em função dos parâmetros que, legalmente, são fixados.      


48. Isto é, são fixados critérios que não contendem com quaisquer direitos fundamentais dos cidadãos e que se afiguram proporcionais à pretensão que se procura obter: quanto mais séria é a pretensão ou maior a vantagem que se procura obter, maior é o grau de exigência colocado na apreciação dos proponentes (ou das respectivas propostas).


49. Pelo contrário, não se descortina em que medida os lugares de concelho de Portimão destinados à venda ambulante serem providos exclusivamente por residentes implica uma promoção e um estímulo maior da economia local do que aconteceria se os não residentes também pudessem participar nessa actividade.


50. Mesmo quando no art.º 6.º, n.º 5 do Regulamento da Actividade de Venda Ambulante de Portimão se procurou beneficiar os cidadãos deficientes (como aí se refere, os “diminuídos físicos”), referindo que gozam de prioridade na atribuição do cartão de vendedor ambulante – o que seria de aceitar face à discriminação positiva autorizada pelo princípio constitucional da igualdade de tratamento (cfr. art.º 13.º, n.º 2), essa prioridade está dependente, de forma inexplicável, do facto de os requerentes serem residentes no município, como se a deficiência destes fosse socialmente mais relevante e, por isso, devesse ser mais atendível do que a dos não residentes no concelho. 


51. Conclui-se, assim, dizendo que a prossecução do objectivo de conseguir conter o número de vendedores ambulantes dentro dos valores que seriam desejáveis para cumprir os necessários parâmetros de higiene, estética e comodidade para o público não pode contender com direitos com assento na legislação ordinária (nacional e comunitária) e constitucional, como o serão o do livre acesso e exercício das actividades de serviços  e o da liberdade de iniciativa económica privada, respectivamente.


52. Por fim, uma nota final para referir que a protecção dos consumidores – ensejo expressamente assumido pelo legislador do Decreto-Lei n.º 122/79, de 8.05 – em nada exige, ou sequer beneficia, do facto de os vendedores ambulantes que exercem a respectiva actividade num determinado concelho aí serem residentes, uma vez que não se vê em que medida estarão em melhores condições de oferecer aos seus clientes produtos com maior variedade ou qualidade e melhor preço do que os demais. 


53. Pelo contrário, julga-se evidente que só um mercado aberto à livre iniciativa económica, sem restrições determinadas de forma arbitrária ou sob uma justificação juridicamente inaceitável, apresenta condições concorrenciais capazes de estimular a diminuição de preços e a qualidade de bens e serviços.   


                                                          
III
– Conclusões –


54. Face a todo o exposto, é possível sistematizar as seguintes conclusões:



a) Em matéria de restrições ao exercício da venda ambulante, a lei habilitante [art.º 16.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 122/79, de 8.05], apenas autorizou que o poder regulamentar das autarquias fosse exercido em nome de exigências relacionadas com a higiene, a estética e o conforto dos espaços, sem que tenha sido feita qualquer menção à residência dos potenciais vendedores;
b) O art.º 10.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26.07 – que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12, que veio estabelecer os princípios e as regras para simplificar o livre acesso e exercício das actividades de serviços realizadas em território nacional – estipulou, em sede de igualdade e não discriminação de prestadores de serviços, que “o acesso ou o exercício de uma actividade de serviços por parte de um prestador de serviços não pode ser condicionado à verificação de pressupostos, de requisitos ou de condições discriminatórias baseadas na nacionalidade, no local de residência ou no local da sede”.  
c) Limitar o acesso à actividade da venda ambulante, sob o pretexto de ter que se controlar o número de pessoas que exercem esta actividade, implica uma completa desproporção entre o sacrifício que se impõe aos particulares que vêem negada a respectiva pretensão, isto é, a privação de uma determinada actividade profissional, e o resultado que se obtém, isto é, reduzir o número de vendedores ambulantes, pelo que constitui uma afronta ao princípio da liberdade de iniciativa económica privada plasmado no art.º 61.º da Constituição da República Portuguesa; 
d) A protecção dos consumidores – objectivo expressamente assumido pelo legislador do Decreto-Lei n.º 122/79, de 8.05 – em nada exige ou sequer beneficia do facto de os vendedores ambulantes que exercem a respectiva actividade num determinado concelho aí serem residentes, uma vez que não se vê em que medida estarão em melhores condições de oferecer aos seus clientes produtos com maior variedade ou qualidade e melhor preço do que os demais. 


55. Assim, de acordo com as motivações acima expostas e nos termos do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea a) do Estatuto do Provedor de Justiça,



Recomendo


A) Que a norma constante do art.º 4.º, n.º 2 do Regulamento da Actividade de Venda Ambulante do Município de Portimão seja expurgada desse documento;
B) Que essa expurgação se estenda a todos e quaisquer preceitos e expressões constantes desse Regulamento – de que é exemplo o art.º 6.º, n.º 5 do mesmo documento – que impliquem a outorga ou restrição de direitos aos vendedores ambulantes conforme residam ou não nesse concelho.     


Nos termos do disposto no art.º 38.º, n.º 2 do Estatuto do Provedor de Justiça, deverá V. Ex.ª comunicar-me o acatamento desta Recomendação ou, porventura, o fundamento detalhado do seu não acatamento, no prazo máximo de sessenta dias, informando sobre a sequência que o assunto venha a merecer.



Com os meus melhores cumprimentos.  



O PROVEDOR DE JUSTIÇA,



(Alfredo José de Sousa)