Sua Excelência
O Ministro de Estado e das Finanças
Av. Infante D. Henrique, n.º 1
1149-009 LISBOA


 


Vossa Ref.ª Vossa Comunicação  Nossa Ref.ª Proc. R-0617/10 (A6)


Assunto: Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas. Estatuto e Código Deontológico.



Recomendação n.º 2/B/2011
(art.ºs 8.º e 20.º, n.º 1, b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril)


 



O Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas (TOC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 310/2009, de 26 de Outubro, estabelece, no seu art.º 17.º, como dever de conduta para todos os TOC, que as suas relações recíprocas se devem pautar pela lealdade e pela integridade.


No n.º 2 deste art.º 17.º, concretiza-se este desiderato numa situação específica, determinando-se que
“Sempre que um técnico oficial de contas seja solicitado a substituir outro técnico oficial de contas deve, previamente à aceitação do serviço, solicitar-lhe esclarecimentos sobre a existência de quantias em dívida, não devendo aceitar as funções enquanto não estiverem pagos os créditos a que aquele tenha direito, desde que líquidos e exigíveis”.


Há aqui evidente tradução de normas igualmente introduzidas pelo mesmo decreto-lei no Estatuto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, designadamente dos n.ºs 2 a 4 do art.º 56.º


Assim, dita-se neste lugar que
“2 – Os técnicos oficiais de contas, quando sejam contactados para assumir a responsabilidade por contabilidades que estivessem, anteriormente, a cargo de outro técnico oficial de contas, devem, previamente à assunção da responsabilidade, contactar, por escrito, o técnico oficial de contas cessante e certificar-se de que os honorários, despesas e salários inerentes à sua execução se encontram pagos.
3 – A inobservância dos deveres referidos no número anterior constitui o técnico oficial de contas, a sociedade profissional de técnicos oficiais de contas ou a sociedade de contabilidade na obrigação de pagamento dos valores em falta, desde que líquidos e exigíveis.
4 – Sempre que um técnico oficial de contas tenha conhecimento da existência de dívidas ao técnico oficial de contas anterior, ou de situação de reiterado incumprimento, pela entidade que o contratou, das normas legais aplicáveis, não deve assumir a responsabilidade pela contabilidade.”



Foi exercitado contra esta solução legislativa o direito de queixa ao Provedor de Justiça, nos termos do art.º 23.º da Constituição, estando em causa a competência estatutária deste órgão para recomendar o suprimento das “deficiências de legislação que verificar”.


Num primeiro nível, estava em causa determinar o modo como era aplicada esta norma, designadamente sobre o alcance dado pela Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas (OTOC) ao conceito de obrigação líquida e exigível. Em resposta, o Senhor Bastonário da OTOC esclareceu que, para aplicação desta norma, exige-se o reconhecimento pelo devedor da exigibilidade do montante em causa, não se suprindo assim a necessária intervenção, no caso oposto, dos tribunais.


Esclarecido este aspecto, resta apreciar a bondade desta solução legislativa, tendo especialmente em conta a protecção dos direitos e interesses legítimos das partes em presença, bem como, reflexamente, de terceiros, como será o caso do Estado, isto na medida em que se enquadra esta actividade no bom funcionamento do sistema fiscal.


Assim, preciso primeiramente que está aqui essencialmente em causa o conjunto de situações em que, sendo líquida e exigível a dívida, a mesma no entanto não é paga. Ora, reconhecendo o cliente a dívida mas não a pagando, será de supor, não a má-fé do mesmo (pois assim nem sequer reconheceria a dívida ou contraporia créditos que motivassem eventual compensação), mas porventura a existência de reais dificuldades no cumprimento dessa obrigação.


Ao estabelecer uma obrigação de resultado (pagamento da dívida) para o novo TOC e não uma obrigação de conduta, a norma em causa impede efectivamente a normalidade da actividade económica do cliente devedor, propiciando, afinal, um agravamento da sua situação financeira e, no limite, uma diminuição das possibilidades de o TOC credor ser afinal pago das quantias que indubitavelmente tem a haver.


Dada a imprescindibilidade, em certas situações, de intervenção de um TOC no cumprimento de obrigações para com o Estado, a solução normativa em causa determina como que uma “morte fiscal”, com a agravante de se aplicar preferencialmente, de entre o conjunto dos devedores, àqueles que à partida se presumem mais colaborantes na busca de uma solução, por não negarem a dívida e assim evitando a necessidade de recurso aos tribunais.


Foi verificada, no plano nacional como internacional, qual a solução normativa para situações idênticas ou análogas. Ora, não só não se encontrou solução similar à que aqui se critica, como se teve notícia de orientação deontológica estritamente oposta.
 
De tais normativos consultados, realço os que referem, expressamente, que a existência de dívidas ao antecessor não constitui razão profissional para a não aceitação de um cliente pelo sucessor , ou motivo para qualquer retenção de documentos pelo credor, não obstante incumbir-se o novo Técnico de envidar todos os esforços para que o seu antecessor seja efectivamente pago , devendo dar conta desses esforços à respectiva Ordem antes de iniciar as suas funções .


A nível nacional, inexiste, também, norma idêntica à que ora coloco em causa, quer para os Revisores Oficiais de Contas , quer para os Advogados , estando os novos profissionais designados incumbidos apenas de actuar no sentido de o seu cliente proceder ao pagamento de eventuais honorários em dívida ao seu antecessor, informando este das diligências que efectuou nesse sentido.


Noto, ainda, relativamente aos Advogados, que no Código de Deontologia dos Advogados Europeus também não existe tal regra nem consta de entre os motivos de renúncia de patrocínio, antes determinando-se a obrigação de agir sempre em defesa dos interesses legítimos do cliente em primazia sobre os seus próprios interesses ou dos colegas de profissão, sem prejuízo da estrita observância das normas legais e deontológicas, não podendo a solidariedade profissional ser invocada para colocar em causa os interesses do cliente .


Nessa medida, não parece que no caso dos TOC portugueses a sucessão e substituição de profissional deva ser mais exigente ou ir além do que está legalmente consagrado para outras profissões, como os Advogados ou os Revisores Oficiais de Contas, ou da prática vigente noutros países e por organizações profissionais internacionais, no âmbito de profissão similar.


O estabelecimento de uma obrigação de meios para o novo TOC, devendo este desenvolver todas as diligências junto do seu cliente para que este cumpra as suas obrigações para com o seu antecessor, deve bastar para o reforço dos laços de solidariedade entre todos os profissionais em causa, sem que essa solidariedade prejudique o interesse público basilar em que assenta o estatuto que legalmente é estabelecido para a mesma.


Mais do que a verificação de pagamentos, devia e podia a OTOC ser legalmente incumbida de uma função medianeira, ajudando na busca de soluções, por exemplo envolvendo pagamentos diferidos, que a todos, devedor e credor, em concreto fosse mais benéfico.


Nestes termos, recomendo a Vossa Excelência, ao abrigo do art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, a iniciativa de medidas conducentes à modificação da solução actualmente constante do art.º 56.º do Estatuto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas e do artigo 17.º, n.º 2, do Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas, expressamente estabelecendo que a existência de dívida para com TOC antecessor não implica a impossibilidade de prestação de serviços por outro TOC, sem prejuízo, para este, da obrigação de envidamento de esforços para que as dívidas líquidas e exigíveis sejam efectivamente saldadas, na medida das possibilidades de cada devedor em concreto.


Apresento a Vossa Excelência os meus melhores cumprimentos,



O Provedor de Justiça



Alfredo José de Sousa