PROCESSO: R-1913/05 (A3)


ASSESSOR: Helena Lancastre


ASSUNTO: Estatuto da Aposentação (Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro):
a) Descontos para a Caixa Geral de Aposentações dos docentes universitários em regime de acumulação;
b) Remuneração dos docentes universitários aposentados.



 

SÍNTESE:

a) O reclamante solicitou a intervenção do Provedor de Justiça por entender que um docente universitário em regime de acumulação deveria poder descontar para a CGA pelos montantes que recebe pela respectiva acumulação, pois só deste modo todo o seu tempo de trabalho remunerado poderia contribuir para o cálculo da pensão de aposentação. Defende o reclamante que, a ser de outro modo, o que se verifica é que, terminada a idade activa, os docentes sofrem uma redução abrupta nos seus rendimentos, uma vez que a pensão de aposentação não incorpora os rendimentos da acumulação, concluindo, a final, que a aplicação do actual artigo 48º do Estatuto da Aposentação é inconstitucional.


b) Adicionalmente, colocou à consideração do Provedor de Justiça a adopção de medidas adequadas a nível legislativo e administrativo com vista a permitir que os docentes universitários aposentados, autorizados a exercer funções públicas, pudessem ser remunerados nos mesmos termos que os previstos para o regime de acumulação de funções docentes e não de acordo com o regime constante no artigo 79º do Estatuto da Aposentação.



PARECER:


1. No que concerne à primeira das questões suscitadas, concluiu-se o seguinte:



1.1. Embora se compreenda e se reconheça a pertinência da questão, a verdade, porém, é que a invocada norma do Estatuto da Aposentação (artigo 48º) não pode ser analisada isoladamente, mas sim em conjugação com todas as demais disposições do Estatuto e dentro do espírito que este encerra. Ou seja, não se pode descurar na análise que nos ocupa a importância do elemento sistemático que compreende a consideração de outras disposições que formam o conjunto normativo do instituto em que se integra a norma em causa.



1.2. Antes, porém, importa ainda ter presente que aquilo “que unifica e dá sentido ao regime próprio da função pública é a necessária prossecução do interesse público a título exclusivo”(1). Daí que se estabeleça, no nº 4, do artigo 269º da Constituição da República Portuguesa, a proibição de acumulação de empregos ou cargos públicos, o que significa que cada funcionário ou agente do Estado só pode exercer um cargo público, salvo nos casos expressamente admitidos por lei.



1.3. Note-se que, através deste preceito, veio consagrar-se constitucionalmente um princípio basilar da reforma da Administração Pública levada a cabo pelo Decreto-Lei nº 26115, de 23 de Novembro de 1935, através do qual se pôs termo à possibilidade, até então em vigor, de todo o funcionário público “poder acumular dois lugares do Estado, corpos e corporações administrativas, contanto que os mesmos não sejam incompatíveis por natureza ou disposição expressa.”



1.4. É certo, conforme referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (2), que “o regime de acumulação não dispõe ainda hoje de uma base legal sistemática que concretize o princípio constitucional, verificando-se a multiplicação avulsa de situações de acumulação estabelecidas por leis especiais que consagram regimes privilegiados de acumulações, frustrando objectivos da Constituição”.



1.5. O que importa, acima de tudo, é não perder de vista que estamos perante uma restrição constitucional ditada, como se viu, por razões de interesse público. Com efeito, como assinala João Alfaia “a ratio legis é a de evitar a pluralidade de empregos na Administração Pública – ou, mais rigorosamente, nas pessoas colectivas de direito público – não só pela dispersão de esforços que daí resulta como, ainda, pelo prejuízo que causa a terceiros, pois haverá, assim, menos empregos disponíveis” (3).



1.6. É, pois, neste contexto, que tem de ser entendido o espírito subjacente ao sistema previdencial público, consagrado no Estatuto da Aposentação (aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro), cujo objectivo principal foi o de salvaguardar e proteger os direitos decorrentes do exercício de um determinado cargo público, o qual pressupõe, à partida, uma relação de exclusividade. Daí que todas as normas deste Estatuto tenham sido definidas com base no princípio da unidade do cargo a que se reporta a aposentação, encontrando-se em plena harmonia com o entendimento constitucionalmente consagrado nesta matéria.



1.7. Só assim se compreende que o legislador tenha estabelecido que a quota incide sobre todas as remunerações correspondentes ao cargo exercido pelo subscritor, sejam fixas ou variáveis, permanentes ou acidentais, susceptíveis de influir no cálculo da pensão. E estatui, ainda, o legislador que, se o subscritor acumular cargos, a quota é devida, por regra, pelo cargo com remuneração mais elevada ou, se as remunerações forem de igual valor, pelo cargo que tiver determinado primeiramente o direito de inscrição na Caixa, sendo também a remuneração desse cargo a única considerada para efeito de cálculo da pensão de aposentação (cfr. artigos 5º, nº2, 6º, 45º, nº1 e 48º do Estatuto da Aposentação).



1.8. Apenas no caso de a lei permitir expressamente a aposentação com base nos cargos acumulados – situações estas excepcionais como já se referiu – é que a quota incide sobre a remuneração devida a todos eles (cfr. artigos 5º e 45º, nº 1 do E.A).



1.9. Ora, a análise do artigo 12º do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, que estabelece os princípios gerais em matéria de emprego público, bem assim como do artigo 31º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, que desenvolve e regulamenta os princípios a que obedece a relação jurídica de emprego na Administração Pública, permite-nos concluir que a actividade docente pode efectivamente ser exercida em acumulação, desde que previamente autorizada por despacho do membro do governo competente e caso se achem preenchidos os demais requisitos estabelecidos na lei, nomeadamente em matéria de compatibilidade de horários entre os cargos a exercer.



1.10. No mesmo sentido dispõe o próprio Estatuto da Carreira Docente Universitária (cfr. artigo 79º), sem que, contudo, em parte alguma do mesmo se consagre a possibilidade de os docentes poderem ser aposentados com base nos cargos acumulados. Bem ao invés, aliás, o artigo 83º do Estatuto da Carreira Docente Universitária, estabelece que o pessoal docente tem direito a aposentação nos termos da lei geral, ou seja, remete, por esta via, a regulação desta matéria para as regras constantes do Estatuto da Aposentação, aplicável a todos os funcionários e agentes da Administração Pública.



1.11. Nestes termos, na ausência de norma especial, confirma-se que não é de facto possível aos docentes universitários, que exerçam cargos em regime de acumulação, descontarem para a Caixa Geral de Aposentações por ambos os cargos. Por outro lado, também não se vislumbram razões relevantes que possam justificar a adopção de uma medida legislativa pontual, o que feriria a unidade do sistema de normas que enforma o Estatuto da Aposentação.





2. No que respeita à segunda questão colocada pelo reclamante, relativa à possibilidade de os docentes universitários aposentados, autorizados a exercer funções públicas, poderem ser remunerados nos mesmos termos que os previstos para o regime de acumulação de funções docentes e não de acordo com o regime constante no artigo 79º do Estatuto da Aposentação, importa ter em atenção o seguinte:




2.1. Como ensina Simões Correia (4), “da situação de aposentação deriva, em princípio, a incapacidade para exercer funções públicas ou em certos organismos, quer se trate de funções que o subscritor já exercia antes da aposentação, quer de investidura em novas funções”. Daí que a situação de cumulação de uma relação jurídica de aposentação com uma nova relação jurídica de emprego seja sempre uma situação excepcional.



2.2. Só assim, aliás, se compreende que a lei tenha feito depender de autorização ministerial o exercício de funções públicas por parte de aposentados.



2.3. Esta é, efectivamente, a lógica do sistema que levou à consagração não só do princípio da não acumulação de pensões de natureza ou fins semelhantes, constante do art. 67º do Estatuto da Aposentação, como também ao estabelecimento de limites quanto ao montante da remuneração a auferir por parte de aposentados que tenham, excepcionalmente, sido autorizados a exercer funções públicas, nos termos dos disposto nos artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação.



2.4. Com efeito, tem sido entendido que o espírito da lei é o de “evitar a duplicação de rendimentos a cargo do Estado relativamente ao mesmo beneficiário” não sendo, por isso, permitido ao aposentado, receber do Estado e demais entes públicos “remuneração segundo regime igual ou semelhante àquele por que se aposentou(5).



2.5. A este propósito, sublinhe-se, ainda, que a conformidade constitucional do disposto na alínea a) do seu artigo 59º com a limitação estabelecida no artigo 79º do Estatuto da Aposentação (na redacção anterior à alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 179/2005, de 2 de Novembro) já foi analisada no Acordão nº 386/91, de 22.10.1991 (6), tendo-se decidido, a final, julgar inconstitucional aquele preceito, mas somente na medida em que permite que o montante da pensão de reforma percebida por um aposentado, somado ao abono da terça parte da remuneração que competir ao permitido desempenho de outras funções públicas por parte do mesmo aposentado, seja inferior ao quantitativo de tal remuneração”.



2.6. Ou seja, o Tribunal Constitucional não pôs em causa, em termos genéricos, a norma que estabelece um limite à cumulação de remunerações advindas da pensão de um aposentado da função pública e da retribuição pelo exercício de funções ou cargos públicos que ele se encontre autorizado a desempenhar. Sustentou este seu entendimento no facto de considerar, por um lado, que a pensão auferida por um aposentado deve ser entendida como “a atribuição de um quantitativo ajustado à prossecução da existência condigna de vida do servidor, atentas as condições sociais e familiares que deterá aquando da sua aposentação” e, por outro, que “a remuneração auferida pelo trabalhador da função pública aposentado e em consequência de trabalho cumulado, constitui, pois, um plus retributivo que não tem origem, directamente, no seu direito ao trabalho, conquanto, obviamente, derive do trabalho desempenhado”.



2.7. Também o recentemente publicado Decreto-Lei nº 179/2005, de 2 de Novembro, que introduziu alterações aos artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação, veio reafirmar, no respectivo preâmbulo e na mesma linha da orientação que já vinha sendo seguida nesta matéria, que o exercício de funções públicas por aposentados ao abrigo daquele Estatuto justifica-se exclusivamente por razões de interesse público. No que respeita, em concreto, à definição das incompatibilidades consagradas no artigo 78º, verifica-se que a nova redacção deste preceito contempla um leque mais vasto de situações abrangidas (7), para além de exigir também um maior rigor na fundamentação do interesse público excepcional. Pretendeu-se com este preceito evitar situações de acumulação de pensões e de remunerações susceptíveis de pôr em causa elementares princípios de equidade.



2.8. Note-se, por outro lado, que a nova redacção dada ao artigo 79º, sob a epígrafe “cumulação de remunerações”, encontra-se já formulada de harmonia e em plena consonância com a decisão do Tribunal Constitucional a que já nos referimos supra. Na verdade, prevê-se naquele preceito a possibilidade de aos aposentados ou reservistas, autorizados a exercer funções públicas ou prestar trabalho remunerado, ser-lhes “mantida a respectiva pensão ou remuneração na reserva, sendo-lhes, nesse caso, abonada uma terça parte da remuneração base que competir àquelas funções ou trabalho, ou, quando lhes seja mais favorável, mantida esta remuneração, acrescida de uma terça parte da pensão ou remuneração na reserva que lhes seja devida”.



2.9. Desta forma, assegurou-se que o total auferido pelos aposentados ou reservistas autorizados a exercer funções públicas nunca será de montante inferior ao salário atribuído ao trabalhador no activo que exerce função ou cargo igual ao que o aposentado está autorizado a exercer.



2.10. Ora, a situação dos docentes universitários aposentados, no que a esta matéria diz respeito, tem sido tratada de forma idêntica à dos demais funcionários e agentes da Administração Pública, não se vislumbrando razões atendíveis que possam conduzir à introdução de um regime excepcional ou diferenciado para estes.




 


DECISÃO:



O processo foi objecto de despacho de arquivamento, nos termos do disposto no artigo 31.º, n.º 1, alínea b) do Estatuto do Provedor de Justiça, tendo o reclamante sido elucidado em conformidade com o parecer supra.



 


 


 


 


Notas de rodapé: 


(1) Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa anotada, nota V ao artigo 269º, pág. 946.
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(2) Obra cit. pág. 948.
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(3) In Conceitos Fundamentais do Regime Jurídico do Funcionalismo Público, Volume I, nota 1, página 169.
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(4) In anotação ao artigo 78º do Estatuto da Aposentação, anotado e comentado, Coimbra, 1973, pág. 181.
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(5) Neste sentido, vide José Cândido de Pinho, in anotação ao artigo 78º do Estatuto da Aposentação, Almedina, 2003, pág. 283.
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(6) In Acordãos do Tribunal Constitucional, 20º volume, 1991 (Setembro a Dezembro), pág. 355.
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(7) Nomeadamente por inclusão dos casos em que o trabalho remunerado era prestado pelos aposentados em regime de contrato de tarefa ou de avença.
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