OUTRAS DECISÕES
Ofício


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Lisboa
Proc.º: R-165/01
Área: A1


Assunto: Despejo administrativo na Rua do Poço do Borratém, 39 (projecto do elevador do Castelo)


1. A situação do despejo administrativo dos ocupantes do edifício sito na Rua do Poço do Borratém, 39, em Lisboa, constituiu objecto de reclamação que nos foi apresentada, com fundamento na ilegalidade da operação, dando lugar à organização e instrução de processo, cujo arquivamento determinamos, mas não sem transmitir a Vossa Excelência a presente chamada de atenção relativamente às circunstâncias que rodearam o acto reclamado.


2. A Provedoria de Justiça solicitou ao Gabinete de Vossa Excelência, em 18.01.2001, os elementos julgados necessários à apreciação da citada reclamação, a par dos demais esclarecimentos com que houvessem por bem contribuir para a mais aturada análise do assunto. Assim se deu cumprimento ao dever de prévia audição do órgão visado em queixa apresentada ao Provedor de Justiça, tal como resulta do disposto no art. 34º, da Lei nº9/91, de 9 de Abril.


3. Apesar de o pedido de informações ser acompanhado por nota de urgência, para os devidos efeitos, e de ter sido fixado um prazo de dez dias para resposta (art. 29º, nº4, do citado diploma), apenas em 8.02.2001 seria dada satisfação ao solicitado. Sobre a demora imputada a dificuldades internas dos serviços camarários, não deixámos prontamente de exprimir a nossa preocupação junto de Vossa Excelência, em despacho que oportunamente foi transmitido pela Provedoria de Justiça ao Senhor Chefe do Gabinete de Vossa Excelência.


4. Analisados os elementos solicitados, e tomando conhecimento, pela imprensa, da recente evolução no projecto de instalação de um elevador de acesso ao Castelo de S. Jorge, somos levados a concluir terem os serviços da Câmara Municipal de Lisboa executado com extemporâneo zelo e diligência o reclamado despejo administrativo, o que é revelador de uma conduta imprudente, que não devo deixar de reprovar.


5. Fazemos notar que a análise da Provedoria de Justiça não incidiu no aludido projecto, nem este Órgão do Estado viria a pronunciar-se alguma vez – ainda que nos fosse requerida intervenção em tal sentido – quanto ao mérito, conveniência ou adequação estética do mesmo, o que a nosso ver extrapolaria da missão constitucionalmente outorgada ao Provedor de Justiça.


6. Nesta perspectiva, contudo, o facto de o projecto ter sido postergado não retira relevância à apreciação do despejo dos ocupantes do imóvel sito à Rua do Poço do Borratém, 39, executado coercivamente em 11.01.2001, como se explicará.


7. Com efeito, resulta da documentação compulsada ter o Senhor Director do Departamento Municipal de Finanças e Património, sob instrução de Vossa Excelência, determinado, em 23.10.2001, que se procedesse à notificação dos ocupantes, a fim de ser obtido o imóvel devoluto com a maior brevidade.


8. O despacho apresenta-se sintética e abstractamente fundamentado no objectivo de “promover obra integrada nas acessibilidades da zona em que o imóvel se insere, realçando a sua vertente turística“, a par da justificação da urgência, radicada na consideração, segundo a qual, “o início das obras apenas está dependente da libertação do espaço, pelo que reveste – o despejo – de carácter excepcional“.


9. O imóvel em questão encontra-se compreendido no domínio privado do município de Lisboa e a detenção de algumas das suas fracções por particulares resulta de disposições municipais de mera tolerância, ainda que acordadas e sob contrapartida do pagamento de rendas com valor manifestamente inferior aos preços de mercado, o que resulta das declarações emitidas pelos ocupantes precários do mesmo imóvel.


10. Comprova-se, pois, terem os ocupantes tomado conhecimento do título e da eventualidade de o município poder vir a dar por finda a permanência no local sem subordinação ao regime próprio do arrendamento urbano.


11. A situação jurídica parece, assim, inscrever-se com meridiana clareza nos pressupostos da norma contida no art. 8º, do Decreto-lei nº23.465, de 18 de Janeiro de 1934, aplicável às autarquias locais, por força do disposto no art. 2º, do Decreto-lei nº45.133, de 13 de Julho de 1963.


12. Ali se admite que a cedência de bens municipais ao uso de particulares, a título precário, ou mesmo sem título, cesse no termo de 60 dias contados da notificação que transmita o teor da ordem de despejo, “sob pena de serem despejados imediatamente pela autoridade administrativa ou policial, sem direito a qualquer indemnização“.


13. A par do modo de contagem do prazo, cremos avultar na situação descrita, a título principal, o erro sobre os pressupostos de facto com que surge praticada a ordem de despejo – a necessidade de libertação do imóvel com vista ao pronto início dos trabalhos, cuja execução, mais do que simplesmente condicionada, se encontraria, ao fim e ao cabo, por decidir, ainda.


14. Com efeito, nesse despacho de 23.10.2000, refere-se que “o início das obras apenas está dependente da libertação do espaço, pelo que reveste – o despejo – carácter excepcional“.


15. Ora, como veio a verificar-se, se obras havia – a da construção do elevador de acesso ao Castelo de S. Jorge – não passaram de mera hipótese.


16. Obviamente, não posso deixar de registar a precipitação da actuação da Câmara Municipal de Lisboa, pois que, tendo-se ‘desistido’ daquele projecto – se é que havia projecto sustentado – fica-se sem se saber qual é a “obra integrada nas acessibilidades da zona em que o imóvel se insere, realçando a sua vertente turística” que justificou, afinal, a demolição ordenada.


17. Mais: o “início das obras apenas está dependente da libertação do espaço, pelo que reveste – o despejo – carácter excepcional.” Pergunto, pois: o espaço foi libertado, mas quais as obras imediatamente iniciadas ?


18. Quanto ao primeiro aspecto, reconhecerá Vossa Excelência que o prazo de 60 dias contados da notificação, haveria de contar-se segundo o disposto no Código do Procedimento Administrativo (art. 72º), tal como resulta do disposto no art. 2º, nº7, do mesmo Código (1).


19. Não é de estranhar, portanto, que os ocupantes se vissem surpreendidos pela execução coerciva do acto, em 11.01.2001, ainda que o município a todos tenha proposto instalações alternativas, com excepção dos ocupantes do 5º andar, a quem terá proposto uma compensação pecuniária.


20. Aconselharia a prudência que, assim como se ponderou e dotou a operação policial de um vasto conjunto de efectivos e meios (2), se tivesse contado o prazo no modo menos lesivo das expectativas, a fim de os ocupantes poderem preparar, sem sobressalto, o abandono das instalações cedidas.


21. Relativamente ao segundo aspecto, nada encontramos nos elementos prestados que justifique cabalmente o andamento urgente dispensado ao despejo administrativo e à sua execução. De resto, tendo os ocupantes do 1º e do 2º andar requerido a suspensão judicial da eficácia do acto, veio a ser oposto, por despacho de Vossa Excelência, de 9.01.2001, e de modo a afastar a presunção juris tantum de suspensão provisória (3) que “a desocupação do espaço em causa é urgente para que se possa proceder às obras de demolição do prédio em apreço, cujo início se encontra marcado para o dia 16 de Janeiro de 2001“, pois a não ser assim estaria irremediavelmente comprometida a conclusão prevista para o início de Junho de 2001. Admitir-se-ia, pois, grave urgência para o interesse público na imediata execução.


22. É certo que o poder de determinar o despejo sumário dos ocupantes de bens das autarquias locais constitui um poder discricionário, como reconheceu o Supremo Tribunal Administrativo (STA), por acórdão de 14.02.1974 (4), mas esta qualificação não afasta a estrita necessidade de congruência entre os pressupostos de facto e o acto. Pelo contrário, como em outro acórdão do STA (Pleno) se escreveu (5), “sucede que a Administração, ao despejar (…) exerceu um poder discricionário, pelo menos no que respeita à conveniência e oportunidade desse despejo, o que tanto basta para atribuir decisivo relevo à fundamentação legal invocada no acto“.


23. Ora, não se encontrando ainda aprovado o projecto de promoção das acessibilidades da zona, inexistia, senão como mera prognose, um verdadeiro interesse público apto a justificar as medidas adoptadas com carácter de urgência.


24. Neste sentido, os actos reclamados mostram-se atingidos por erro nos pressupostos de facto. Jamais objectaríamos a que, como referiu Vossa Excelência no citado despacho de 9.01.2001, seja de interesse para o município “a promoção da acessibilidade nesta zona da cidade – ligação da Baixa ao Castelo de São Jorge – (…) quer pelo melhoramento das condições de acessibilidade para os cidadãos em geral e em particular para os cidadãos deficientes, quer pela vertente turística“.


25. Todavia, o interesse público que move a actividade administrativa tem de encontrar-se suficientemente concretizado em actos e não em expectativas, já que do interesse público primário só o legislador pode curar. É que não se trata do interesse público, como interesse geral e abstracto do concelho (6), mas da melhor forma de prosseguir um certo e determinado interesse radicado nas atribuições municipais. A melhor forma de prover à acessibilidade ainda não estava definida, pelo que a urgência se mostraria muito relativa, para não dizer infundada.


26. Temos presente que, apesar de tudo, a Câmara Municipal superiormente presidida por Vossa Excelência providenciou pela reinstalação dos ocupantes despejados, como temos presente ainda o facto de alguns deles terem recorrido contenciosamente do acto lesivo dos seus interesses legalmente protegidos, com o que verão assegurada adequada protecção.


27. Devemos, porém, em nome do dever que legalmente é consignado ao Provedor de Justiça de procurar o aperfeiçoamento da actividade administrativa (7), assinalar junto de Vossa Excelência o modo como, a meu ver, prematura e precipitadamente o município agiu, especialmente, ao fazer executar coercivamente o despejo administrativo do imóvel identificado, em 10.01.2001.


28. É, pois, neste sentido que formulo a presente chamada de atenção, dando o assunto por encerrado, nos termos do disposto no art. 33º, da Lei nº9/91, de 9 de Abril.


Com os melhores cumprimentos,


O Provedor de Justiça
H. Nascimento Rodrigues


 







Notas de rodapé:


(1) Ali se prevê, com efeito, a aplicação supletiva das disposições do Código do Procedimento Administrativo aos procedimentos especiais, sempre que daí não resulte diminuição para as garantias dos particulares, o que parece corresponder ao caso.
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(2) 17 agentes, 4 subchefes, 1 subcomissário, 1 comissário, utilizando 5 viaturas ligeiras de passageiros, segundo Relatório, de 12.01.2001, do Comandante de Ploiciamento.
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(3) Cfr. art. 80º, nº1, da Lei do Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA).
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(4) Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo (AD), nº151, p. 982.
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(5) Acórdão de 6 de Julho de 1973, in AD, nº145, p. 149.
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(6) “A ‘razão de Estado’ que o interesse público actualiza apresenta-se, pois, para a Administração como uma ‘razão jurídica’, normativamente definida ou condicionada” (Vieira de Andrade, loc. Interesse público, Dicionário Jurídico de Administração Pública, vol. V, Lisboa, 1993, p. 280).
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(7) Art. 21º, nº1, alínea c), da Lei nº9/91, de 9 de Abril.
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