PARECER


Proc.º: R-532/07
Área: A6



Assunto: Cemitério. Valor das taxas cobradas pelo averbamento da transmissão do direito de concessão sobre espaço cemiterial.




Solicitou-se a intervenção do Provedor de Justiça a propósito das taxas cobradas por determinada câmara municipal, tendo em vista o averbamento da transmissão da titularidade do direito de concessão sobre determinado espaço cemiterial.


Contestava-se o pagamento do montante de 150 euros, exigido pelos serviços do órgão autárquico, tendo em vista a prática daquele acto.


De facto, considerava-se excessivo o valor cobrado para o efeito, designadamente quando comparado com os procedimentos adoptados, neste domínio, por outras autarquias locais.


No tocante a esta matéria, importa desde já ter presente que, nos termos legalmente previstos, assiste às autarquias locais a competência para administrar os cemitérios localizados nas respectivas circunscrições administrativas.


Por esta razão, e no exercício dos poderes nos quais se encontram investidos os órgãos do município em causa, veio a ser aprovado o Regulamento dos Cemitérios Municipais, postulando o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), da Tabela de Taxas e Licenças àquele anexa que, pelo “averbamento em alvará de concessão em nome de novo proprietário: classes sucessivas, nos termos das alíneas a) e c) do artigo 2133.º do Código Civil para sepulturas perpétuas” será devido o pagamento de 150 euros.


Deste modo, analisada a disposição acima citada, considerou-se não haver motivo que permitisse infirmar a conformidade legal da mesma, porquanto enquadrada no âmbito das competências legalmente cometidas às autarquias locais.


Na verdade, sem prejuízo da ponderação de mérito que legitimamente era feita pela interessada, em torno do valor da taxa, não podia, em circunstância alguma, vir a ser olvidada a possibilidade, que assiste aos órgãos do poder local, de proceder à livre fixação dos montantes a cobrar.


Esta fixação obedecerá certamente à análise de diversos factores, no que concerne à adequada prossecução do interesse público, norteador da administração dos espaços cemiteriais, com particular destaque no que se reporta à adequação da afectação das parcelas existentes em determinado cemitério ao espaço naquele disponível, a equacionar sempre à luz das necessidades das populações que aquele pretenda servir.


Por esta razão, verificava-se e verifica-se a aplicação de taxas de valores distintos por parte de diversas autarquias locais, num quadro normativo que encontra paralelo em outras matérias, designadamente, no que se reporta aos valores cobrados pelos municípios ao nível do fornecimento de bens essenciais, como acontece com os recursos hídricos.


De facto, o estabelecimento, no caso concreto, dos valores das taxas acima enunciadas, poderia servir como forma de incentivo, ou não, para a transmissão mortis causa dos direitos de concessão sobre espaços cemiteriais geridos pela Câmara Municipal da Azambuja, em termos que não se afiguravam merecedores, pelas razões acima aduzidas, de especial censura.


Na verdade, em casos similares apenas se tem feito notar a bondade de a taxa devida pela transmissão ser menor do que a taxa da concessão inicial, isto porque, não estando em causa um direito de propriedade mas sim a concessão de determinado bem, a extinção da mesma com o decesso do primeiro concessionário, a menos que fosse paga taxa de igual montante, pareceria violenta, nas condições mais usuais, em que o primeiro concessionário adquire a concessão no intuito de os seus restos mortais serem os primeiros a utilizar esse espaço.


Referia-se todavia que, com a prática descrita, estaria em causa a observância dos princípios da gratuitidade e da proporcionalidade, consagrados no Código do Procedimento Administrativo.


Relativamente ao primeiro dos princípios invocados, positivado no artigo 11.º do diploma legal citado, importa frisar que, nos termos do n.º 1 daquela disposição, se postula que “o procedimento administrativo é gratuito, salvo na parte em que leis especiais impuserem o pagamento de taxas ou de despesas efectuadas pela Administração”.


Importando notar que a transmissão da concessão atribui a outro sujeito o uso exclusivo de determinada parcela do domínio público, é manifestamente possível a cobrança de taxas por tal facto, sob pena de, a entender-se de modo diverso, chegar-se à conclusão (errada) de que também a primeira concessão deveria ser gratuita.


De igual modo, e no que respeita à proporcionalidade da conduta adoptada pela câmara municipal visada, entendeu-se nada haver a censurar, porquanto não se considerou estar em causa decisão que fixasse quantitativo desproporcionado com o direito que era objecto de concessão ao particular. Sendo de notar que, perfeitamente, poderia ser estabelecido um regime de intransmissibilidade da concessão (ou, de todo, recusar-se a autarquia a conceder terrenos para sepultura, entendendo livremente que o interesse público ficaria mais bem servido com inumações sempre temporárias, com posterior remoção dos restos mortais para ossários), o valor em causa não era sequer dos mais altos, no plano nacional, como também não era dos mais baixos.


Em bom rigor, não se pode considerar €150 como desproporcionado pelo gozo, é certo que por tempo indeterminado mas que poderá atingir várias décadas, de uma parcela de um bem público que é sempre escasso, e mais escasso ainda nas áreas urbanas.


A fixação da quantia em causa é certamente feita à luz das considerações de oportunidade acima aduzidas, e que nada têm que ver, mesmo em termos estritamente económicos, com a mera feitura do averbamento no título da concessão, como se pretendia fazer crer.


Em parêntesis, sempre se deve dizer que, como é doutrina bem assente, para a legitimidade da taxa não há que buscar uma estrita correspectividade económica, bastando que haja uma ligação entre a mesma e um serviço prestado.


Como decorre de opinião doutrinária expressa nesta matéria, “as taxas individualizam-se no terreno mais vasto dos tributos, por revestirem carácter sinalagmático, não unilateral, o qual, por seu turno, deriva funcionalmente da natureza do acto constitutivo das obrigações em que se traduzem e que consiste ou na prestação de uma actividade pública ou na utilização de bens do domínio público, ou na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares” (cfr. Xavier, Alberto, Manual de Direito Fiscal, pp. 42/43).


Sinalagmaticidade essa que “implica apenas uma equivalência jurídica das prestações, que não económica” (neste sentido, Acórdão com o n.º 7175, do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 22 de Novembro de 2006).


Na verdade, e nos termos sustentados pela jurisprudência que tem vindo a pronunciar-se sobre a matéria em presença, importa ter presente que os cemitérios públicos são “bens integrados no domínio público possuídos e administrados pelos municípios e freguesias encontrando-se afectos ao uso directo, imediato e privativo das pessoas” (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo com o n.º 57424, datado de 6 de Março de 2002).


Ora, ainda de acordo com a decisão citada, a “afectação desse uso faz-se através de actos ou contratos de concessão daí resultando direitos reais administrativos os quais, porque se encontram subordinados ao direito administrativo, não são susceptíveis do uso, fruição e disposição próprias dos direitos reais privados”. Quer isto dizer, nas palavras empregues por aquele órgão jurisdicional, que “as concessões de terrenos cemiteriais sob administração das Juntas de Freguesia assumem a natureza de contratos administrativos, mediante os quais se confere ao respectivo beneficiário um direito real administrativo distinto dos direitos reais de natureza civil, na medida em que os terrenos cemiteriais não deixam de pertencer ao domínio público, apenas se atribuindo ao concessionário um direito privativo ao uso do terreno, sendo que o exercício de tal direito se encontra subordinado a regras de natureza administrativa ditadas pelo fim público subjacente aos cemitérios, o que implica, além do mais, a inaplicabilidade às sepulturas do regime de alienação de bens estabelecido no direito privado”.


Neste caso, da transmissão da concessão, não é o trabalho burocrático que justifica a taxa, nem sequer a decisão de deferimento tomada por determinado órgão autárquico. O que está em causa é a atribuição ao novo concessionário, beneficiário da transmissão, de um direito de uso exclusivo, durante a sua vida, do espaço cemiterial em causa, por um período que, como se disse, poderá prolongar-se por várias décadas.


A correspectividade (e a proporcionalidade) tem que se analisar no confronto entre este benefício para o particular e o montante em causa.


Alegava-se ainda a inexistência, no preâmbulo do Regulamento dos Cemitérios Municipais em causa, de qualquer referência a legislação que especificamente habilite o órgão autárquico visado a cobrar a taxa por este serviço. É verdade que a Constituição, no seu art.º 112.º, n.º 7, consagra que “os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão”.


A respeito das autarquias locais, a Constituição, no seu artigo 241.º, postula que as mesmas “dispõem de poder regulamentar próprio nos limites da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com poder tutelar”.


Assiste, deste modo, às autarquias locais, o exercício autónomo do poder regulamentar em apreço, não pressupondo o mesmo a existência de “uma lei prévia individualizada para cada caso” (neste sentido, Canotilho, J.J. Gomes, Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada, pg. 895).


Tal assim acontece, ainda de acordo com a opinião doutrinária acima expressa, uma vez que “a lei determina, de forma global, a autonomia e poder regulamentar das autarquias”, razão pela qual “os regulamentos locais são (…) normalmente, regulamentos independentes, em que a lei habilitante é a que define as atribuições de cada categoria de autarquias locais” (idem).


De facto, subscrevendo ainda aquela opinião doutrinária, importa não esquecer que “o poder regulamentar é uma expressão da autonomia local”, porquanto o seu núcleo assenta “no direito e na capacidade efectiva de as autarquias locais regularem e gerirem, nos termos da lei, sob a sua responsabilidade, e no interesse das populações, os assuntos que lhe estão confiados”.


Exige-se, assim, a existência de “lei prévia para o exercício do poder regulamentar, dizendo-se por isso que se a lei não cria o poder regulamentar, cumpre a função de habilitação legal necessária para se dar cumprimento ao princípio da primariedade ou da precedência da lei” (neste sentido, Canotilho, J.J. Gomes e Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada, pg. 514).


Decompõe-se por isso, entre outros aspectos, o princípio atrás enunciado no dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos, mesmo nas situações em que esteja em causa, como acontece no presente caso, a análise dos denominados regulamentos independentes.


Regulamentos esses que, à luz da caracterização que a doutrina tem vindo a fazer dos mesmos, se distinguem dos de mais, pelo facto de a lei limitar-se a determinar a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão (neste sentido, Canotilho, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pg. 734), naquilo que habitualmente se usa apelidar de “lei habilitante de competência” (cf. Miranda, Jorge e Medeiros, Rui. Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, pg. 278).


Ora, atendendo à caracterização acima feita do poder regulamentar a exercer pelas autarquias locais, concluir-se-á que os regulamentos emanados dos seus órgãos serão independentes, e como tal, exigir-se-á que os mesmos façam apenas menção à lei habilitante, na acepção acolhida nos moldes que antecedem.


Assim sendo, e no que se reporta à situação em apreço, verifica-se que do regulamento em causa, sem prejuízo das referências feitas a textos legais que pretendem disciplinar a problemática em apreço, consta menção ao diploma legal que estabelece o quadro de competências, assim como o regime de funcionamento, dos órgãos dos municípios (Lei n.º 169/99, com a alteração da Lei n.º 5-A/2002), assim respeitando o princípio da precedência da lei, constitucionalmente consagrado.


Referia-se ainda a inexistência de qualquer referência ao facto de o diploma regulamentar em causa ter estado sujeito a apreciação pública, assinalando, por isso, a violação dos artigos 117.º e 118.º do Código do Procedimento Administrativo.


Analisada a problemática suscitada a este respeito, entendeu-se que os preceitos citados, consagrando a possibilidade de virem a ser ouvidos os interessados, não impõem, em todos os casos, a sua efectivação.


Atente-se, para o efeito, na redacção dada ao n.º 1 do artigo 117.º, nos termos do qual se determina que “o órgão com competência regulamentar deve ouvir, em regra, sobre o respectivo projecto, (…) as entidades representativas dos interesses afectados, caso existam”. Ora, o recurso ao substantivo regra leva a supor que a audição dos interessados admite excepções.


Excepções essas, que apenas serão equacionadas nas situações em que se verifique a existência de “entidades representativas dos interesses afectados”, uma vez que, atenta a parte final do artigo em análise, serão apenas aquelas as intervenientes neste domínio.


Aliás, só assim se compreenderá a disciplina vertida no artigo 118.º do Código do Procedimento Administrativo, ao determinar no seu n.º 1 que, “sem prejuízo do disposto no artigo anterior e quando a natureza da matéria o permita, o órgão competente deve, em regra, (…) submeter a apreciação pública, para recolha de sugestões, o projecto de regulamento”.


Ora, no que respeita a este preceito, haverá que tomar por base as considerações atrás tecidas a respeito da interpretação do artigo 117.º, n.º 1 daquele diploma legal (no que se reporta ao recurso ao substantivo regra), neste caso associadas à referência feita pelo legislador ao facto de caber ao órgão competente a ponderação da submissão a apreciação pública, de determinado regulamento, “em função da natureza da matéria em presença”.


Assim sendo, caberá à autarquia local visada a decisão de vir a submeter, ou não, a apreciação pública determinado projecto de regulamento, em moldes que, à partida, não são merecedores de reparo, principalmente se apenas estiver em causa, como no caso em apreço parecia estar, a fixação de uma taxa ou a sua actualização.


Importa, de igual modo, reconhecer que inexistirá uma entidade representativa dos interesses potencialmente afectados pelo regulamento em causa, servindo o cemitério à generalidade da população. Independentemente de outra leitura mais aprofundada da normação estabelecida no artigo 117.º, verifica-se que, pela inexistência de sujeitos activos de uma obrigação de audição, esta nunca existirá.


Dir-se-á que, não existindo essa entidade representativa, seria à globalidade dos interessados que competiria participar na discussão pública do projecto normativo.


Assim é, de forma vinculada, se estiverem previstos os requisitos enunciados no artigo 118.º (nos moldes acima mais bem enunciados), e de forma voluntária, no caso oposto.


Ora, admitindo a possibilidade de determinado projecto de regulamento vir a ser objecto da disciplina do art.º 118.º do diploma em análise, não decorre, no entanto, daquele preceito a obrigação de a sua publicação vir a ocorrer em Diário da República, uma vez que, de acordo com a parte final do seu n.º 1, tal pode vir a ocorrer “no jornal oficial da entidade em causa”.


No entanto, e no que ao caso concreto respeita, verificou-se que veio a ser promovida, pela autarquia local em causa, a publicação de Aviso no Diário da República, a qual, conjugada com a afixação dos editais nos lugares de estilo existentes naquele município, designadamente nas juntas de freguesia, terá assegurado a observância daquele preceito legal.


Por último, no que se reporta à possibilidade de declaração de prescrição, a favor da Câmara Municipal em causa, dos espaços cemiteriais não reclamados, considerou-se que assiste às autarquias locais, nos termos legalmente previstos, a competência para administrar os cemitérios localizados nas respectivas circunscrições administrativas.


Na situação concretamente em presença, determina a alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, na redacção a esta dada pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de Janeiro, competir àquele órgão autárquico “declarar prescritos a favor do município, nos termos e prazos fixados na lei geral e após publicação de avisos, os jazigos, mausoléus ou outras obras, assim como sepulturas perpétuas instaladas nos cemitérios propriedade municipal, quando não sejam conhecidos os seus proprietários ou relativamente aos quais se mostre que, após notificação judicial, se mantém desinteresse na sua conservação e manutenção, de forma inequívoca e duradoura”.


Por esta razão, e em concretização do disposto nos moldes que antecedem, determinavam os artigos 48.º a 51.º do Regulamento do Cemitério Municipal em análise, a disciplina jurídica a observar, em concreto, nesta matéria, em absoluta conformidade com o quadro legal vigente.


Repare-se que, sem em devido tempo, aquelas pessoas que, beneficiando da transmissão por morte do direito de concessão, não venham a efectivá-la, mediante o averbamento do título e a prévia prova do seu direito, preenchem os requisitos daquela norma legal, já que a concessão não reclamada torna incertos os seus titulares, em termos que possibilitam a sua extinção por prescrição.


Conclusão


Não se julgou justificada qualquer intervenção a este propósito.