Processo: R- 3863/08 (A2)

Entidade visada: Assembleia da República

Assunto: Fiscalidade. Benefícios fiscais. Planos Poupança Reforma. Valores aplicados pelos sujeitos passivos após a data da passagem à reforma.

Assessor: Mariana Vargas

I – A queixa:

Através da queixa dirigida a Sua Excelência o Provedor de Justiça, vem o reclamante questionar a constitucionalidade da norma constante do n.º 10 do artigo 21.º, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26/06, em conjugação com o disposto no n.º 2 do mesmo artigo, na medida em que exclui a dedução à colecta de IRS de 20% dos valores aplicados no ano do imposto, em PPR, após a data da passagem à reforma do sujeito passivo.

Em abono da sua tese, vem o reclamante invocar o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa), bem como o direito à protecção na terceira idade (artigo 72.º do texto fundamental), que considera violados, em especial se o conceito de “reformado” abranger apenas os cidadãos que se retiraram da vida activa, mantendo-se o referido benefício fiscal para os que auferem, cumulativamente, rendimentos de pensões e rendimentos de trabalho.

II – Apreciação:

1.    – Do conceito de benefício fiscal:

O artigo 2.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 01/07, define os benefícios fiscais como sendo “as medidas de carácter excepcional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem”.

Nesta medida, são benefícios fiscais as isenções, as reduções de taxa, as deduções à matéria colectável e à colecta, as amortizações e reintegrações aceleradas e outras medidas fiscais, que, do ponto de vista orçamental, se traduzem em despesa fiscal.

No entanto, a doutrina distingue entre benefícios fiscais tout court e incentivos fiscais, prosseguindo uns e outros funções distintas, embora em ambos os casos se verifique o efeito impeditivo da produção do facto tributário e da consequente tributação.

Segundo Nuno de Sá Gomes, os benefícios fiscais têm um carácter estático e destinam-se a proteger situações já consumadas, por razões políticas, sociais, religiosas, etc., enquanto que os incentivos fiscais ou medidas de fomento fiscal, de carácter dinâmico, que podem consubstanciar incentivos financeiros ou auxílios técnicos, se traduzem em incentivos ou estímulos à actividade dos sujeitos passivos a quem essas medidas se dirigem.

Ainda segundo o mesmo Autor, os benefícios fiscais, seja qual for a sua natureza, traduzem-se sempre numa derrogação aos princípios da generalidade e da igualdade na tributação, consagrados nos artigos 12.º e 13.º da Constituição, respectivamente, pelo que um benefício fiscal não fundado num interesse público superior ao que fundamenta a tributação, consistiria numa violação grosseiras dos referidos princípios.

Haverá, portanto, que averiguar se compete ao Estado promover o desenvolvimento económico, estabelecendo incentivos de natureza fiscal à actividade dos particulares e se o poderá fazer dentro do quadro constitucional.

De entre as tarefas fundamentais do Estado, estabelecidas pelo artigo 9.º da  Constituição, contam-se, nomeadamente, as de promover a igualdade real entre os portugueses, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais e o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, que poderão ser prosseguidas através do sistema fiscal dado o duplo fim que este, nos termos do artigo 103.º n.º 1, da Constituição, visa atingir – o fim estritamente fiscal de arrecadação da receita tributária necessária à cobertura das despesas públicas, mas, também, os fins extrafiscais da justa repartição dos rendimentos e da riqueza.

Os referidos fins extrafiscais podem ser alcançados através da assunção de medidas  de carácter económico, de carácter social ou de ambas as naturezas, em simultâneo, como poderá acontecer no caso em apreço, em que, do mesmo passo, poderá estar em causa a  realização do objectivo macro-económico de captação de poupanças e se poderá, como o pretende o reclamante, contribuir para a concretização do direito de protecção aos cidadãos na terceira idade.

2.    – A captação de poupanças:

Poupar significa, em linguagem económica, adiar o consumo, trocar o consumo presente pelo consumo futuro. Para que essa troca ocorra, o agente económico deve sentir que o sacrifício do consumo presente (taxa de desconto), é mais do que compensado pelo benefício retirado através do consumo futuro (taxa de juro) que a poupança possibilita.

Se ao nível micro-económico da escolha do consumidor este poupa para ter a possibilidade de rendimento permanente ao logo da vida, sendo o nível de aforro, em regra, directamente proporcional ao nível de insegurança (motivo-precaução), e, configurando-se os PPR, desse ponto de vista, como esquemas complementares de segurança social, de iniciativa individual, tal instrumento de poupança também serve propósitos de política macro-económica, por se integrar na política orçamental, enquanto conjunto de decisões relativas ao nível global das despesas e das receitas do Estado (os benefícios fiscais, do ponto de vista orçamental, são classificados como despesa – como tal vêm considerados pelo artigo 2.º, n.º 3, do EBF ou como receita cessante, pelos artigos 6.º, n.º 2 e 8.º, n.º 4, da Lei de Enquadramento Orçamental, aprovada pela Lei n.º 91/2001, de 20/08)-.

Uma das componentes da taxa de juro, que induz uma maior propensão à poupança, é, precisamente o benefício fiscal que, sendo um desagravamento da carga fiscal, representa maior rendimento disponível para os particulares.

3.    – O benefício fiscal aos PPR:

Os planos de poupança-reforma (PPR) foram criados pelo Decreto-Lei n.º 205/89, de 27/06, posteriormente desenvolvido pelo Decreto-Lei n.º 145/90, de 07/05, constando a sua regulamentação actual do Decreto-Lei n.º 158/2002, de 02/07, em cujo preâmbulo se reconhece que a criação deste instrumento de captação de poupança “permitiu orientar um volume significativo de capitais para a poupança de médio e longo prazos destinada a satisfazer as necessidades financeiras inerentes à situação de reforma e, bem assim, para o desenvolvimento do mercado de capitais”.

Destinando-se a criação dos PPR à satisfação das necessidades financeiras dos seus titulares, em situação de reforma, vêm impostas restrições ao seu reembolso, enquanto o seu titular se integrar na população activa, especialmente se lhe estiver associado um benefício fiscal (o benefício fiscal aos PPR, enquanto dedução à colecta de IRS, foi excluído, no ano de 2005, com a revogação dos n.ºs 2, 4, 6 e 10 do artigo 21.º, do EBF, pela Lei n.º 54-B/2004, de 30/12 – OE/2005, vindo a ser reposto no ano seguinte, pela Lei n.º 60-A/2005, de 30/12 – OE/2006).

Assim, nos termos do artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 158/2002, de 02/07, só é permitido o reembolso do PPR, em qualquer das modalidades previstas no seu artigo 5.º (recebimento da totalidade ou de parte do valor do plano de poupança, de forma periódica ou não; pensão mensal vitalícia ou por conjugação das duas modalidades anteriores), sem perda do benefício fiscal associado, nos casos de: reforma ou velhice do participante; desemprego de longa duração do participante ou de qualquer dos membros do seu agregado familiar; incapacidade permanente para o trabalho do participante ou de qualquer dos membros do seu agregado familiar, qualquer que seja a sua causa; doença grave do participante ou de qualquer dos membros do seu agregado familiar ou a partir dos 60 anos de idade, nesta última situação, apenas quanto às entregas sobre as quais já tenham decorrido 5 anos.

Fora dos casos mencionados supra, o reembolso do PPR determina a cessação retroactiva do benefícios fiscal, devendo as importâncias deduzidas, majoradas em 10% por cada ano ou fracção, decorridos desde aquele em que foi exercido o direito à dedução, ser acrescidas à colecta do IRS do ano da verificação dos factos, como vem determinado pelo n.º 4 do artigo 21.º, do EBF, quanto ao benefício estabelecido pelo seu n.º 2.

O benefício fiscal estabelecido pelo n.º 3 do artigo 21.º do EBF (reembolso em caso de morte do participante), pode cessar nas situações previstas no seu n.º 5.

Os objectivos visados pelo benefício fiscal atribuído aos PPR, enquanto dedução à colecta de IRS, afiguram-se, pelos motivos acima enunciados, compatíveis com a sua exclusão quanto aos valores aplicados pelos sujeitos passivos após a data da passagem à reforma, como vem estabelecido pelo n.º 10, do artigo 21.º, do EBF, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29/12 (Orçamento do Estado para 2007), mantida pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26/06.

4.    – O benefício fiscal aos PPR e o direito à protecção na terceira idade:

O artigo 72.º da Constituição da República Portuguesa (terceira idade) insere-se na PARTE I – Direitos e deveres fundamentais – Capítulo II – Direitos e deveres sociais, e consagra um direito das pessoas idosas a prestações estaduais, concretizável pela adopção de uma política para  a terceira idade que, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira,  “não deve basear-se apenas na prestação de apoios materiais (embora isso seja importante para a segurança económica e social das pessoas idosas), mas também na adopção de medidas sociais e culturais tendentes a superar o isolamento e a marginalização social (participação activa na vida da comunidade, continuação da ligação ao local e colegas de trabalho depois da reforma, criação de clubes culturais nos centros de terceira idade, organização de trabalho colectivo nos lares de idosos, etc.).”.

Tendo em conta a opinião dos Autores citados, estamos assim em crer que o direito à protecção na terceira idade é um direito a prestações do Estado, a que se não pode subsumir o benefício fiscal atribuído aos PPR, muito embora o mesmo se possa traduzir num desagravamento da carga fiscal e, consequentemente, num acréscimo do rendimentos disponível do seu subscritor, que o dotará de maior capacidade económica para afrontar a velhice.

Contudo, acredita-se que a atribuição do benefício fiscal aos PPR, dados os objectivos a que se destina, se possa integrar numa política para a terceira idade, muito embora tenha por destinatários os cidadãos que ainda não tenham atingido aquela faixa etária.

Trata-se, com efeito, de uma medida de carácter económico e social, que não exclui o direito a prestações estaduais na terceira idade por parte dos cidadãos que, enquanto na vida activa e por iniciativa própria, já beneficiaram de condições tendentes a prevenir os efeitos de uma situação futura.
 
5.    – A cessação do benefício fiscal sobre os valores aplicados em PPR, após a data da passagem à reforma:

Uma das questões colocadas na queixa reporta-se à situação que o reclamante designa por “jovens reformados no activo” e que se julga referir-se àquelas situações em que é legalmente possível a acumulação de rendimentos de pensões com rendimentos de trabalho. Pretende o reclamante saber se, apesar de aqueles já beneficiarem de uma pensão e continuando a exercer actividades remuneradas, mantêm o direito ao benefício fiscal estabelecido pelo artigo 21.º, do Estatuto dos Benefícios Fiscais.

O conceito técnico-jurídico de reforma, que se julga estar subjacente ao espírito do n.º 10 do artigo 21.º, do EBF, é, segundo a definição de Apelles J. B. Conceição, a “situação de inactividade profissional resultante de invalidez ou de velhice a que correspondem as respectivas pensões” e que, quando referida aos trabalhadores da administração pública é designada pelo termo de aposentação.

A reforma poderá revestir diversas modalidades como sejam: a reforma antecipada – de origem legal ou convencional, decorrente de situações relativas a profissões de desgaste rápido, de medidas de reestruturação das actividades e de desemprego involuntário de longa duração; a reforma flexível, por liberdade de escolha do trabalhador, entre uma idade mínima e uma idade máxima e ainda a reforma progressiva, por diminuição do tempo de trabalho e da respectiva remuneração, gradualmente compensada por uma pensão.

A pensão é, segundo o mesmo Autor, “a atribuição patrimonial periódica substitutiva do salário, derivada de pensão anterior ou como garantia de rendimento mínimo, na situação de invalidez ou no termo legal da vida activa, suportada pelo sistema de segurança social”.

Contudo, em certos casos, a pensão é convencional ou decorre de determinação legal que regulamenta o exercício de determinados cargos ou funções, não sendo a sua atribuição impeditiva de que o respectivo titular possa continuar a desenvolver uma actividade laboral, por conta própria ou por conta de outrem, no termo da qual e em função da sua carreira contributiva, lhe será determinada uma pensão global, correspondente aos estatutos de protecção social sucessivos em que esteve enquadrado.

Julga-se, no entanto, que a possibilidade legal de sucessão de regimes de protecção social ou até de acumulação de pensões com rendimentos do trabalho (v.g. por reforma/aposentação antecipada ou flexível), não retire conteúdo ao conceito mais genérico de reforma, como acima ficou descrito.

Ora, tendo em conta os objectivos em que se fundamenta a constituição dos PPR, assim como a atribuição do benefício fiscal a que se refere o artigo 21.º, do EBF, bem como os motivos que podem levar os agentes económicos à poupança, crê-se que a exclusão do benefício fiscal sobre os valores aplicados pelos sujeitos passivos em PPR, após a data da passagem à reforma, se encontra plenamente justificada, sem incorrer na violação das normas contidas nos artigos 13.º e 72.º da Constituição da República Portuguesa.

III – CONCLUSÕES:

1.    Os benefícios fiscais são “medidas de carácter excepcional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem”;
2.    Alguns benefícios fiscais traduzem-se em incentivos ou estímulos à actividade dos sujeitos passivos a quem essas medidas se dirigem, que, por sua iniciativa individual, participam dos objectivos prosseguidos pelas políticas públicas;
3.    A criação dos PPR, assim como o benefício fiscal que lhes está associado, tiveram em vista a satisfação das necessidades financeiras dos seus titulares, em situação de reforma, podendo considerar-se integrados na política de protecção à terceira idade, embora dirigidos a destinatários que ainda não atingiram aquela faixa etária;
4.    A exclusão do benefício fiscal para as quantias aplicadas em PPR, após a data em que o seu titular passa à situação de reforma (enquanto situação de inactividade profissional resultante de invalidez ou de velhice a que correspondem as respectivas pensões), não se afigura violadora dos artigos 13.º e 72.º da Constituição da República – trata-se de situações diferentes (a integração do cidadão na população activa e a da sua passagem à situação de reforma), que merecem tratamento diferenciado, após terem sido atingidos os objectivos que presidiram à criação dos PPR e do respectivo benefício fiscal;
5.    Existindo a possibilidade legal de acumulação de rendimentos de pensões com rendimentos de trabalho, em função dos quais o respectivo titular continua a efectuar descontos para sistemas de segurança social, deve este ser integrado no conceito de população activa enquanto não puder ser considerado “reformado”, continuando a beneficiar da dedução à colecta de parte do valor aplicado em PPR.