S.Exa.


O Secretário de Estado da Administração Pública


Av. Infante D. Henrique


1149-009 LISBOA


 


 


Sua referência Sua comunicação Nossa referência


Proc. R-5446/08, R-1530/09,R-2215/09 e R-4234/09 (A4)


 


Assunto: Reclamações apresentadas na Provedoria de Justiça. Entidades públicas empresarias. Situação de mobilidade especial.


 


 


Tem o Provedor de Justiça recebido diversas reclamações de ex-funcionários públicos que, encontrando-se em situação de licença sem vencimento de longa duração quando as entidades hospitalares a cujos quadros pertenciam foram transformadas em entidades públicas empresariais pelo Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, viram ser-lhes vedada a possibilidade de regresso ao serviço de origem, bem como a colocação em situação de mobilidade especial.


1. A primeira constatação que a apreciação de tais casos permite alcançar é a de que a situação em que estes trabalhadores se encontra resulta de, ao contrário do que impunha o regime então vigente, não terem os mesmos sido atempadamente afectos ao quadro de supranumerários da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde.


Na verdade, o art. 15, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 233/2005 dispunha que “o pessoal com relação jurídica de emprego público que, à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, esteja provido em lugares dos quadros das unidades de saúde abrangidas pelo artigo 1.º, bem como o respectivo pessoal com contrato administrativo de provimento, transita para os hospitais E. P. E. que lhes sucedem, sendo garantida a manutenção integral do seu estatuto jurídico, sem prejuízo do disposto no Decreto-Lei n.º 193/2002, de 25 de Setembro” .


Por seu turno, os ns. 4 e 5 do art. 8.º do Decreto-Lei n.º 193/2002, de 25 de Setembro, determinavam o seguinte:


4 – Será afecto ao quadro de supranumerários o pessoal dos serviços abrangidos por qualquer das medidas enunciadas nos números anteriores que se encontre em situação de licença que determine a abertura de vaga.


5 – O pessoal referido no número anterior mantém-se na situação de licença até à colocação em actividade, tendo direito a receber vencimento a partir da data do respectivo início de funções.


Resulta com evidência das normas citadas que, para efeitos de afectação ao quadro de supranumerários, era indiferente a circunstância de tais funcionários terem ou não requerido o regresso à actividade. Na verdade, não só a afectação não estava dependente de requerimento do funcionário visado, como não era incompatível com a manutenção da situação de licença.


Aliás, em concordância com este entendimento, desde a criação dos primeiros hospitais com natureza de entidade pública empresarial até à revogação do referido Decreto-Lei n.º 193/2002, foram proferidos diversos despachos conjuntos pelo Ministro de Estado e das Finanças e pela Secretária de Estado Adjunta e da Saúde, determinando a afectação ao referido quadro de supranumerários de funcionários na situação descrita e distinguindo, na lista nominativa (a título de “observações”), os funcionários em situação de “disponibilidade para colocação” e os que se mantinham em “licença sem vencimento” .


Note-se que, se a afectação ao quadro de supranumerários tivesse sido determinada, como era devido, os funcionários em questão teriam beneficiado, querendo, dos instrumentos previstos no art. 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 193/2002 para o regresso à actividade, entre os quais se incluía a possibilidade de integração em lugares do quadro de outros serviços, a criar automaticamente e a extinguir quando vagarem.


Por outro lado, caso se mantivessem no aludido quadro de supranumerários até à entrada em vigor da Lei n.º 53/2006, de 7 de Dezembro, ter-lhes-ia sido aplicado o disposto no art. 47.º, ns. 2, 5 e 6 desta Lei e, assim, teriam sido afectos à Secretaria-Geral do Ministério da Saúde, e colocados em situação de mobilidade especial, no início da fase transição, quando cessassem as situações de licença sem vencimento.


2. Este não é, porém, o entendimento que resulta do despacho do antecessor de V.Exa., n.º 30/2008, de 18.1.2008, exarado em Nota de 11.1.2008 , do respectivo Gabinete. Escreve-se nesta Nota, a este propósito:


“2.2. Pessoal dos hospitais EPE (ver ponto V do n.º 8 da Nota ). Ao pessoal dos hospitais EPE, que se encontrava em licença sem vencimento, não é aplicável o art. 15.º, n.º 1, do DL233/2005 (vd. V.1. da nota), pois:


a) Tal pessoal não estava provido em lugares do quadro;


b) Por isso, não transitou para os Hospitais EPE;


c) A remissão para o Decreto-Lei n.º 193/2002 destina-se a viabilizar a sua aplicabilidade futura (porque, no momento dessa aplicabilidade, já se estará perante uma EPE);


d) Tal pessoal não foi afecto a quadros de supranumerários.


Por tudo isto, a tal pessoal é aplicável o previsto em II. da nota.”


Este entendimento não pode merecer concordância, desde logo porque não é líquido que a ressalva da parte final do art. 15.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 233/2005 só se refira aos funcionários que se encontrassem providos no quadro naquele momento, ou seja, aos referidos na primeira parte do preceito.


De todo o modo, mesmo que assim se entendesse, o Decreto-Lei n.º 193/2002 era directamente aplicável nas restantes situações, na medida em que estabelecia o regime a aplicar aos funcionários e agentes integrados em serviços e organismos objecto de extinção, fusão ou reestruturação (art. 1.º). Ora, através do Decreto-Lei n.º 233/2005 procedeu-se à criação de novas entidades públicas empresariais com a consequente extinção dos hospitais que lhes deram origem – nesse sentido aponta claramente o teor do art. 1.º, n.º 4, deste último diploma, ao dispor que “as unidades de saúde que dão origem às entidades públicas empresariais previstas nos números anteriores consideram-se extintas para todos os efeitos legais, com dispensa de todas as formalidades legais”.


Assim, nos termos do art. 8.º do Decreto-Lei n.º 193/2002, nos casos de extinção de serviços em que haja transferência de atribuições no todo ou em parte para outro serviço, os funcionários que se encontrassem em situação de licença que tivesse determinado a abertura de vaga deveriam ser afectos ao quadro de supranumerários criado junto da secretaria-geral de cada ministério (cfr. arts. 7.º e 8.º supra citado).


Por outro lado, não é verdade que tal pessoal não tenha sido afecto ao quadro de supranumerários, como refere a Nota. Pelo contrário, e como se referiu, foram publicados vários despachos nesse sentido, dos quais resulta com clareza estarem em causa funcionários que, antes da transformação dos hospitais em entidades públicas empresariais, haviam transitado para a situação de licença sem vencimento de longa duração. Atente-se, a título de exemplo, no teor do despacho n.º 24.407/2006 :


Despacho n.º 24 407/2006


Considerando que o n.º 4 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 193/2002, de 25 de Setembro, estabelece que o pessoal dos serviços objecto de extinção, fusão ou reestruturação que se encontre em situação de licença que determine a abertura de vaga será afecto ao quadro de supranumerários;


Considerando que os serviços de saúde, a cujos quadros de pessoal pertenciam os funcionários identificados no mapa anexo ao presente despacho, foram objecto das situações anteriormente referidas;


Considerando que aos referidos funcionários foi concedida licença sem vencimento de longa duração antes da entrada em vigor dos diplomas de transformação dos respectivos serviços:


Assim:


Ao abrigo do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 193/2002, de 25 de Setembro, determina-se o seguinte:


1 – São afectos ao quadro de supranumerários, criado junto da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde, os funcionários constantes da lista nominativa que se publica em anexo ao presente despacho, que dele faz parte integrante.


2 – Os funcionários constantes da lista a que se refere o número anterior têm direito a receber vencimento a partir da data do respectivo início de funções.


3 – A afectação dos mencionados funcionários ao quadro de supranumerários da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde produz efeitos à data do presente despacho.


7 de Novembro de 2006. – O Ministro de Estado e das Finanças, Fernando Teixeira dos Santos. – Pelo Ministro da Saúde, Carmen Madalena da Costa Gomes e Cunha Pignatelli, Secretária de Estado Adjunta e da Saúde.”


 


3. Não tendo a Administração procedido como devia, vêem-se tais trabalhadores em situação funcional essencialmente marcada pela dificuldade de reinicio de funções, na medida em que:


a) o regresso ao serviço de origem só poderá verificar-se mediante concurso e celebração de um contrato individual de trabalho, com a consequente cessação da relação jurídica de emprego público;


b) o reinício de funções em serviço diferente do de origem está dependente da aprovação em procedimento de selecção, no qual não beneficiarão da prioridade prevista no art. 54.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, para os candidatos em situação de mobilidade especial.


4. É de notar, por outro lado, que a situação exposta não tem paralelo, quando consideradas as soluções que o ordenamento jurídico tem vindo a prever e prevê actualmente para as situações de impossibilidade de regresso de licença para o quadro de origem. Assim:


4.1. Antes da entrada em vigor da Lei n.º 53/2006, previa-se, como se viu, a afectação ao quadro de supranumerários do pessoal em situação de licença que não pudesse regressar ao serviço de origem em função da sua extinção ou reestruturação (nos termos do Decreto-Lei n.º 193/2002), bem como, nos demais casos, a afectação à Direcção Geral da Administração Pública do pessoal que se encontrasse a aguardar vaga há mais de seis meses após a data do despacho que deferiu o pedido de regresso de licença ilimitada ou de licença sem vencimento de longa duração (art. 11.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 493/99, de 18 de Novembro).


4.2. Por seu turno, a Lei n.º 53/2006, nos arts. 12.º, n.º 7 e 13.º, n.º 10, prevê a colocação em mobilidade especial do pessoal em situação de licença cujo serviço de origem seja extinto (com ou sem fusão).


4.3. Por último, justifica-se frisar que, em todos os casos de transformação de hospitais em entidades públicas empresariais ocorridos após a entrada em vigor da Lei n.º 53/2006 foi salvaguardada a aplicação do regime previsto nesta Lei. Na verdade, em todos os diplomas que concretizaram tal transformação foi introduzida norma com o seguinte teor: “a aplicação do capítulo IV do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, ao pessoal de todos os hospitais, E. P. E., com relação jurídica de emprego público, não prejudica a aplicação das regras gerais de mobilidade e racionalização de efectivos em vigor para os trabalhadores que exercem funções públicas, designadamente as constantes da Lei n.º 53/2006, de 7 de Dezembro, e do Decreto-Lei n.º 200/2006, de 25 de Outubro, com as necessárias adaptações…”. Assim, o pessoal que, à data da transformação destes hospitais em EPE, se encontrasse em situação de licença sem vencimento de longa duração será colocado em situação de mobilidade especial quando a licença cessar (art. 13.º, n.º 10, da Lei n.º 53/2006).


5. Justifica-se, ainda, convocar as situações paralelas de funcionários de serviços de outros ministérios que, não obstante não terem sido atempadamente objecto da aplicação das medidas previstas no Decreto-Lei n.º 193/2002, mereceram uma posterior reparação administrativa da omissão verificada, já na vigência do novo regime de mobilidade especial.


Assim sucedeu com o despacho dos Ministros de Estado e das Finanças e da Economia e da Inovação, de 21.3.2007 (ou seja, já na vigência da Lei n.º 53/2006), que criou, ao abrigo do art. 70.º do Decreto-Lei n.º 193/2002 (no momento, já revogado), o quadro de supranumerários da Secretaria-Geral do Ministério da Economia e da Inovação e afectou ao mesmo quadro um conjunto de funcionários que se encontravam em situação de licença ilimitada e sem vencimento de longa duração no momento de extinção do respectivo serviço de origem (a Inspecção-Geral das Actividades Económicas), determinando, ainda, que tal pessoal seria afecto àquela Secretaria-Geral em situação de mobilidade especial, nos termos do art. 47.º, n.º 2 e 5, da Lei n.º 53/2006 .


Invoca-se, em tal despacho, que face “ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil, tal início de vigência [da Lei n.º 53/2006] não contenderá com factos ocorridos antes de tal data, como foi o da criação da ASAE, que continuarão a ser regidos, bem como os respectivos efeitos, pela lei em vigor à data da sua produção”.


Paralelamente, no final de 2008 e no início de 2009, foram afectos ao quadro de supranumerários criado junto da Secretaria-Geral do Ministério do Trabalho e da Solidariedade vários ex-funcionários de serviços deste Ministério, com o fundamento de que tal pessoal se encontrava em situação de licença à data da extinção ou reorganização dos serviços de origem, não tendo, porém, ao contrário do que sucedeu na generalidade das situações sido oportunamente afecto àquele quadro. Assim, os despachos agora proferidos procedem a tal afectação “em aditamento” ao despacho conjunto n.º 452/2006, de 12 de Maio, que criou o aludido quadro de supranumerários, e reportam os seus efeitos à data da publicação do mesmo despacho .


Embora estes despachos não contenham outra fundamentação para além da referida, pode afirmar-se que o que estava em causa foi a supressão de uma omissão administrativa, mediante a reconstituição da situação jurídico-funcional a que os funcionários tinham legalmente direito se a Administração tivesse actuado como estava adstrita e no tempo devido.


Tratou-se, pois, da reposição da legalidade por referência ao quadro normativo aplicável àquelas situações no momento em que a actuação administrativa deveria ter tido lugar. Note-se que, em qualquer daqueles casos, assim como no que nos ocupa, a actuação administrativa omitida não estava dependente de qualquer impulso por parte dos interessados e era totalmente vinculada quanto ao seu conteúdo – a afectação aos quadros de supranumerários. Por outro lado, embora não sujeita a prazo expressamente determinado, a decisão administrativa de afectação, porque necessária à definição jurídica da situação funcional daqueles funcionários cujo serviço de origem tinha sido extinto, deveria ter sido tomada na sequência dos processo de extinção.


Como expressivamente defende MÁRIO AROSO DE ALMEIDA , acerca do problema da relevância das superveniências normativas na definição do direito substantivo aplicável à actuação administrativa, “a correcta aplicação, no momento próprio, do direito vigente à data da recusa ilegal teria conduzido a que a situação do particular tivesse sido definida nos termos que as normas aplicáveis nesse momento estabeleciam. Era isto que o ordenamento exigia que se tivesse feito, era a isto que deveria ter conduzido a sua observância por parte da Administração. Ora, se isto tivesse acontecido e, portanto, a Administração tivesse agido como devia, definindo validamente a situação no momento próprio, por aplicação das normas então vigentes, nem sequer teria sido nunca de equacionar a hipótese da aplicação das novas normas à situação em causa, que já se encontraria resolvida à data em que essas normas entraram em vigor”.


 


Nestes termos, está em causa para este autor uma “exigência de interesse público, uma vez que se trata de dar corpo à reintegração da legalidade (anterior). De outro modo, estar-se-ia, na verdade, a branquear a ilegalidade cometida e, desse modo, a dar às situações que foram objecto de uma conduta ilegal da Administração um tratamento injustificadamente discriminatório em relação àquele que porventura tenha sido dado a outras do mesmo tipo que não tenham sido objecto de uma tal conduta – o que, a nosso ver, seria atentatório do princípio da igualdade, no sentido clássico de igualdade na aplicação da lei …”


Por essa razão, o mesmo autor defende a que “a regra deve ser a de que, de uma maneira geral, a Administração deve aplicar o direito em vigor no momento em que lhe cumpre adoptar uma decisão tempestiva – pelo que, no caso de ter sido proferida uma recusa ilegal, o que configura, para todos os efeitos, uma situação de ilegítimo atraso na adopção da decisão devida, a Administração deve aplicar o direito que lhe cumpriria aplicar se não tivesse incorrido em atraso, actuando, assim, na medida em que isso seja possível, por referência ao passado sem atender a eventuais superveniências normativas cuja aplicação ao caso não se afigure, pela sua natureza, incontornável”.


 


6. No que respeita às expectativas deste pessoal, também não será difícil concluir que se registou uma alteração substancial das condições que se verificavam no momento em que as licenças sem vencimento de longa duração foram requeridas. Na verdade, em tal momento, não só o regresso ao quadro de origem estava dependente, tão só, da existência de uma vaga, como vigorava regime legal que acautelava condições mais favoráveis para o reinicio de actividade noutro serviço, em caso de impossibilidade ou dificuldade de regresso ao quadro de origem.


Chegados a este ponto, parece que poderemos considerar suficientemente demonstrada a necessidade de as situações expostas serem objecto de uma actuação reparadora, de modo a ser suprida a posição de injustiça que as caracteriza. V.Exa. encontrará – estou certa –, de entre o elenco de actuações possíveis, a forma adequada de promover tal reparação.


Por último, solicito a V.Exa. que, em cumprimento do dever consagrado no art. 23º, n.º 4, da Constituição e no art. 29.º do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, se digne comunicar a sequência que o assunto venha a merecer.


Com os melhores cumprimentos,


 


A Provedora-Adjunta


 


 


Helena Vera-Cruz Pinto