Súmula


R-3842/10



Assunto: Autarquias locais. Transferências para o Serviço Nacional de Saúde.



Um Município apresentou uma exposição ao Provedor de Justiça na qual contestava a solução estabelecida pelo legislador no art.º 154.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, diploma que aprovou o Orçamento do Estado para 2010 (OE2010), e posteriormente concretizada no art.º 78.º e Anexo II do Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de Junho, que estabeleceu as disposições necessárias à execução daquele Orçamento.



Tal solução previa que as autarquias locais transferissem directamente para o orçamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) o valor correspondente aos encargos suportados pelos respectivos orçamentos próprios com despesas pagas à ADSE em 2009 respeitantes a serviços prestados por estabelecimentos do SNS. O mencionado montante foi retido nas transferências do Orçamento do Estado para as autarquias locais.



De acordo com o Município reclamante, a solução legal contestada violaria a Lei Fundamental, designadamente o princípio, na mesma consubstanciado, da autonomia financeira das autarquias locais. Não lhe foi, no entanto, dada razão pelo Provedor de Justiça.



2. De facto, a solução orçamental em causa foi produto da modificação que veio a ser introduzida no enquadramento geral das relações financeiras entre o SNS e os subsistemas de saúde públicos. Assim, primeiramente ao abrigo de um acordo estabelecido entre os Ministérios das Finanças e da Administração Pública, da Defesa Nacional e da Administração Interna, a ADSE ficou isenta de quaisquer pagamentos por conta de serviços de saúde ou outros benefícios prestados pelo SNS aos seus beneficiários, passando estes encargos a ser suportados directamente pelo Orçamento do Estado, através do Ministério da Saúde.



As medidas necessárias ao cumprimento do acordo firmado viriam a ser plasmadas no OE2010 e a sua aplicação aos estabelecimentos e serviços do SNS resulta da Circular Normativa da Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. n.º 8/2010/UOFC, de 28 de Julho.



O novo modelo de relação financeira entre o SNS e os subsistemas de saúde tem como objectivo a racionalização e simplificação dos procedimentos associados ao financiamento da prestação de cuidados de saúde a beneficiários destes subsistemas, antevendo-se maior facilidade no pagamento atempado dos encargos, com manifesto benefício para as instituições prestadoras de cuidados de saúde.



É de referir que a aprovação deste novo modelo de relação financeira entre o SNS e os subsistemas de saúde mereceu em tempo a concordância do Provedor de Justiça, pelo facto de o anterior modelo ter estado na origem de diversas práticas discriminatórias reportadas a este Órgão, consubstanciadas na recusa de acesso dos beneficiários da ADSE às convenções celebradas pelo SNS, em termos que se consideraram não consentâneos com a universalidade e igualdade que caracterizam o nosso sistema de saúde. O fim da dualidade de regimes afastou a razão de ser, ainda que censurável, das mencionadas práticas discriminatórias, propiciando a sua extinção.



3. As normas do art.º 154.º do OE2010 e, hoje, do art.º 161.º do OE2011 mais não representam do que uma decorrência necessária da introdução do novo modelo de relação financeira entre o SNS e os subsistemas de saúde, isto é, a aplicação, desta feita às autarquias locais, das novas regras resultantes daquele novo modelo de enquadramento geral. Isto é, se antes cabia ao orçamento municipal suportar determinada despesa e se, por via da adopção do modelo indicado, essa despesa passou a recair sobre o Estado, através do SNS, faz todo o sentido que, não tendo a receita municipal diminuído por essa causa, igualmente não diminuísse a respectiva despesa.



Quanto ao mecanismo encontrado pelo legislador – na versão originária o montante correspondente a 2009, hoje a retenção do montante resultante da média de encargos referentes aos anos de 2008 e 2009 nas transferências do Orçamento do Estado para as autarquias locais –, ele constituirá, perante a inexistência de uma alteração à Lei das Finanças Locais, um dos meios possíveis de adaptação, à situação das autarquias locais, do novo modelo de relação financeira entre o SNS e os subsistemas de saúde.



Na verdade, apoiado na Lei das Finanças Locais (actualmente aprovada pela Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro), o Estado, através do Orçamento do Estado, transfere todos os anos para as autarquias locais um montante calculado com base nos critérios aí definidos, e que visa compensar as autarquias pelos encargos resultantes do exercício das competências que lhes estão legalmente atribuídas.



Esse montante global transferido anualmente para cada autarquia local continua a abranger os encargos das autarquias locais referentes a pagamentos respeitantes a serviços prestados por estabelecimentos do SNS aos respectivos trabalhadores, no quadro da ADSE, como anteriormente sucedia. Ora, não constituindo actualmente tais despesas um encargo das autarquias mas sim um encargo directo do SNS, não fará sentido que as autarquias continuem a receber do Estado um montante que visa pagar uma despesa que efectivamente já não suportam.



Não se tendo verificado uma alteração à Lei das Finanças Locais no sentido de os cálculos dos montantes a transferir anualmente através do Orçamento do Estado serem redefinidos, tendo em conta a supressão dos referidos encargos das autarquias com a ADSE, outra solução não restará, para já, ao legislador senão possibilitar a recuperação pelo Estado central do valor transferido através de um mecanismo do tipo do que é estabelecido nas normas orçamentais em causa.



A previsão, no OE2011, de que o montante retido na transferência é o correspondente à média dos encargos com a ADSE referentes aos anos de 2008 e 2009, constitui tendencialmente um melhoramento desse mecanismo legal, na medida em que uma média suaviza sempre casos extremos que tivessem ocorrido em determinado ano.