Ex.ma Senhora


Presidente do Conselho Directivo do IFAP, I.P.


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Vossa Ref.ª Vossa Comunicação Nossa Ref.ª


Proc. R – 1234/10 (A2)Of. n.º 14971, de 13.10.2010



 


Assunto: Reclamação apresentada pela empresa “A., Ld.ª”. Programa AGRO. Medida 1. N.º do processo IRV …… Projecto n.º ………..



 


 


Reporto-me ao assunto acima identificado, em primeiro lugar, para agradecer o envio do ofício também em referência e os detalhados esclarecimentos prestados a respeito da apreciação que o projecto promovido pela sociedade reclamante tem vindo a merecer por parte do IFAP.



Foi com agrado que constatei, desde logo, que o IFAP procurou reformar a posição que havia assumido inicialmente em relação ao projecto, em conformidade com a sentença que recaiu sobre a providência cautelar interposta pela sociedade reclamante, já que terá revogado a decisão de recuperação do apoio concedido que havia sido indevidamente sustentada no alegado incumprimento da beneficiária, convolando-a num projecto de decisão destinada a recuperar a ajuda, apenas em singelo, em função da inelegibilidade da despesa discutida nesta queixa.



Contudo, da análise a que a Provedoria de Justiça procedeu desta reclamação e dos exactos factos que lhe subjazem, concluiu-se, salvo o devido respeito, que o IFAP reincidiu em erro quando notificou o reclamante desse último projecto de decisão.



Recorde-se, para facilidade de exposição, que a despesa cuja inelegibilidade sustenta o pedido de devolução da ajuda, resultou do facto de a sinalização do contrato-promessa destinado à aquisição dos prédios rústicos onde seria executado o projecto ter ocorrido antes da apresentação da candidatura, o que inviabilizaria a elegibilidade dessa despesa, nos termos do art.º 14.º, n.º 3 da Portaria n.º 533-B/2000, de 1.08.



Os factos



Permita-se-nos seguir a cronologia relativa aos factos objecto de queixa, para que seja mais fácil compreender os termos em que se processaram a aprovação da candidatura e o pagamento do apoio financeiro:



A) Em 6.09.2001 foi submetida para apreciação do IFAP a candidatura da reclamante ao programa AGRO, a qual foi instruída com um contrato-promessa de compra e venda de prédios rústicos , em cujas cláusulas terceira e quarta acordaram as partes o seguinte:


– “Cláusula terceira:


Do referido preço, os promitentes-compradores já pagaram à promitente-?vendedora, a título de sinal, o montante de quatro milhões, novecentos e cinquenta mil escudos (4.950.000$00), de que a requerente dá a competente quitação”.


– Cláusula quarta :


A restante parte do preço será paga através de um reforço do sinal de seis milhões de escudos (6.000.000$00) que se vence no prazo de seis meses a contar da data da presente transacção, de um outro reforço de sinal de treze milhões de escudos (13.000.000$00) que se vence no prazo de um ano a contar de hoje e de uma última entrega de seis milhões (6.000.000$00) a efectuar aquando da celebração da respectiva escritura.”


B) Ou seja, desse documento, que instruiu a candidatura apresentada junto do IFAP, constava de forma expressa e sem quaisquer dúvidas, por um lado, que a sociedade reclamante já havia pago o sinal relativo ao preço de aquisição e, por outro, que seriam liquidadas outras importâncias dentro de determinados prazos, mas sempre em datas manifestamente prévias à apresentação da candidatura;


C) Na verdade, esse contrato-promessa, em que foram estabelecidas as datas e condições de pagamento do preço dos imóveis, estava datado de 18 de Agosto de 1999;


D) Após cerca de nove meses de apreciação, mais concretamente, em 21.06.2002, o IFAP notificou a sociedade reclamante das condições prévias à aprovação do projecto, sem que tenha sido feita qualquer referência à (in) elegibilidade do custo de aquisição dos prédios, presumindo-se assim a respectiva aceitação;


E) Em 29.07.2002 celebrou-se o contrato de atribuição de ajuda, sem que, uma vez mais, tivesse sido feita qualquer ressalva quanto à elegibilidade dessa despesa;


F) Da mesma forma, ao longo dos anos que entretanto decorreram, foram sendo libertadas as ajudas – 11.710,77€ em 28.08.2003, 27.352,72€ em 7.05.2004 e 20.883,97€ em 16.07.2004 – mediante a apresentação da documentação comprovativa dos investimentos, sem que o IFAP tivesse demonstrado quaisquer reservas quanto à aceitação da mesma despesa;


G) Só em 4.09.2009, através do ofício com a referência 3544/DAI/UPRF/2009, o Departamento de Apoios ao Investimento desse Instituto comunicou ao reclamante que “(…) de acordo com as conclusões do controlo administrativo (…), constatou-se uma situação de incumprimento da legislação aplicável (…)”, já que três dos cheques entregues para pagamento do preço dos imóveis foram emitidos em datas anteriores à da entrega da candidatura.



Apreciação



 


A) Boa fé da sociedade reclamante



Quando se trata de analisar a conduta da reclamante neste processo, deve ater-se, desde logo, ao facto de a qualificação do pagamento do sinal como despesa elegível no âmbito de programas de apoio financeiro ser de alguma forma controversa e não isenta de dúvidas, uma vez que cada programa tem regras próprias, com regimes transitórios específicos e normas de excepção adaptadas em função das circunstâncias em que os programas são aprovados e dos fins que visam prosseguir.



Daí que, muito embora não se esqueça que, nos termos do art.º 6.º do Código Civil, a ignorância ou o desconhecimento da lei não possam ser invocadas para tutelar a posição da reclamante, o que é certo é que a instrução da candidatura inicial com o contrato-?promessa que já havia sido assinado, constitui prova inequívoca da boa fé os representantes dessa sociedade, já que nada esconderam o IFAP, adoptando, pelo contrário, uma conduta de transparência, de confiança no bom funcionamento das instituições e de conformação com o que viesse a ser decidido aquando da apreciação da candidatura.



Também foi esse princípio da confiança que incentivou a sociedade reclamante a prosseguir com a execução do seu projecto, pois certamente não teria avançado para um investimento com montantes financeiros tão elevados se o IFAP tivesse considerado o custo de aquisição dos prédios como inelegível ou se tivesse condicionado à aprovação do projecto à exclusão desse investimento.



B) Qualificação do acto de concessão de ajudas como um acto constitutivo de direitos



A questão de saber se o acto de concessão de apoio financeiro consubstancia um acto constitutivo de direitos, ou se configura apenas um mero acto precário ou provisório, foi, durante algum tempo, tema de discussão na doutrina e na jurisprudência.



Entretanto, através de vários Acórdãos do STA (vd., a título de exemplo, o Acórdão de 24.10.2001 e, mais recentemente, o Acórdão de 26.05.2010), foi dada resposta clara a essa questão, pelo que a qualificação do acto de concessão de ajudas comunitárias como um acto administrativo constitutivo de direitos reúne actualmente o consenso, quer da doutrina, quer da jurisprudência portuguesas, porque se entendeu que confere direitos que são depois integrados na esfera jurídica das pessoas juridico-administrativamente relacionadas com o Estado.



Como resulta de forma clara do Sumário do Acórdão do STA, de 20.10.2004 “O acto de concessão de ajudas comunitárias é um acto administrativo constitutivo de direitos, pois é a resolução final do pedido de ajuda, não estando previsto qualquer outro momento decisório no respectivo procedimento. E, além disso, é definitivo e não precário ou condicional, pois que só pode ser qualificado de acto sujeito a condição aquele em cujo texto haja referência, expressa e clara, a essa circunstância (…)”.



Do mesmo modo, na esteira do que se concluiu no Acórdão do STA de 26.05.2010, constituirá acto revogatório do acto de concessão da ajuda, a decisão do IFAP que ordenou a reposição das quantias pagas, após se ter verificado, em sede de controlo, uma situação de irregularidade e/ou de inelegibilidade das despesas.



C) Prazo para revogação do acto de concessão de ajudas



Constituindo o acto de concessão da ajuda um acto constitutivo de direitos inválido – uma vez que a despesa deveria ter sido considerada inelegível e a candidatura não deveria ter sido aprovada nos moldes em que o foi – seria de equacionar a sua sujeição ao regime da revogação de actos administrativos inválidos constante do art.º 141.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA).



Nos termos desse preceito, os actos inválidos – categoria em que se integrará a concessão indevida de uma ajuda comunitária – só podem ser revogados com fundamento na sua invalidade e no prazo do respectivo recurso contencioso.



Contudo, não olvida a Provedoria de Justiça que, através do Acórdão do Pleno do STA de 6.10.2005 (processo 2037/02), fixou-se o entendimento, sucessivamente reiterado por outros Acórdãos (vd. Acórdãos de 6.12.2005, de 29.03.2007 e de 9.09.2009) da prevalência das normas comunitárias que dispõem sobre limites temporais para a revogação de ajudas relativamente ao art.º 141.º do CPA.



De facto, desde então foi uniformizada a jurisprudência desse Tribunal superior no sentido, de que, atento o primado do direito comunitário sobre o direito nacional e o facto de os regulamentos comunitários serem de aplicação obrigatória e imediata na ordem jurídica nacional, estaria afastada a aplicação do prazo previsto no art.º 141.º CPA.



Assim, haveria que determinar qual o prazo a partir do qual a revogação do acto de concessão de ajuda – ou, se se preferir, a exigência da devolução da ajuda – seria inadmissível.



Através do Regulamento n.º 2988/95, do Conselho, de 18.12, foi adoptada uma regulamentação geral em matéria de controlo de irregularidades, prevendo-se, no art.º 3.º, n.º 1 que “O prazo de prescrição do procedimento é de quatro anos a contar da data em que foi praticada a irregularidade referida no n.º 1 do art.º 1.º. Todavia, as regulamentações sectoriais podem prever um prazo mais reduzido, que não pode ser inferior a três anos”.



Ora, como decorre de forma expressa do preâmbulo da Portaria n.º 533-B/2000, de 1.08, a Medida 1 do Programa “AGRO”, designada por “Modernização, Reconversão e Diversificação das Explorações Agrícolas”, enquadra-se nos art.ºs 4.º a 8.º do Regulamento (CE) n.º 1257/1999, do Conselho, de 17.05.



O Regulamento (CE) n.º 1763/2001, da Comissão, de 6.09 introduziu um parágrafo ao n.º 1 do art.º 48.º do Regulamento (CE) n.º 1750/1999, segundo o qual “No caso de pagamento indevido, o beneficiário individual de uma medida de desenvolvimento rural referido tem a obrigação de reembolsar esses montantes, nos termos do disposto no art.º 14.º do Regulamento (CEE) n.º 3887/92”.



Por sua vez, compulsada essa última norma [o art.º 14.º do Regulamento (CEE) n.º 3887/92] não foi localizada qualquer disposição a respeito do prazo para se proceder à revogação do acto de atribuição de ajudas comunitárias, o que equivale a dizer, do acto que determina a respectiva devolução.



Assim sendo, ter-se-á que recorrer ao prazo geral de quatro anos previsto no Regulamento n.º 2988/95, do Conselho, de 18.12. Contado esse prazo desde a data de atribuição da ajuda (a última das tranches foi paga em 16/07/2004) até 4.09.2009, data em que a sociedade reclamante foi notificada da irregularidade detectada em sede de controlo administrativo, ter-se-á que concluir que a exigência de restituição da ajuda por inelegibilidade da despesa configura, materialmente, uma revogação extemporânea de um acto constitutivo de direitos.



Na verdade, muito embora se admita que essa acção de controlo se possa ter iniciado em momento anterior à data em que os respectivos resultados foram comunicados à reclamante, nos termos do terceiro parágrafo do n.º 1 do art.º 3.º daquele último Regulamento, a prescrição do procedimento só é interrompida por acto destinado a instruir ou instaurar procedimento por irregularidade, desde que do mesmo seja dado conhecimento à pessoa visada, o que, face aos dados carreados para os autos só terá acontecido em 4.09.2009 .



D) Conclusões



– A concessão da ajuda decorreu do cometimento de um erro de apreciação imputável ao IFAP em sede de análise da candidatura e que foi sendo sucessivamente reiterado aquando da assinatura do contrato de atribuição de ajuda e do respectivo pagamento;


– Não houve qualquer intuito defraudatório por parte dos representantes da sociedade reclamante, que, de boa fé, submeteram, sem quaisquer subterfúgios, o seu projecto ao IFAP e que confiaram nos termos em que foram notificados da sua aprovação;


– Não houve locupletamento injusto da sociedade reclamante, porque a ajuda que lhe foi concedida foi efectivamente aplicada no projecto de investimento;


– O acto de concessão da ajuda é um acto constitutivo de direitos;


– Os actos constitutivos de direitos inválidos, decorrentes da concessão de ajudas com financiamento comunitário, só são revogáveis, nos termos das regras gerais do Regulamento n.º 2988/95, no prazo máximo de quatro anos;


– Ultrapassado esse prazo, sanou-se a invalidade do acto de atribuição da ajuda, mediante a respectiva consolidação na ordem jurídica, impossibilitando a exigência da respectiva devolução.



Resta referir, por fim, que, como se teve oportunidade de chamar a atenção no âmbito de um outro processo [R-282/06 (A2)] , em que também se discutiu a revogação de actos de concessão de ajuda com base no cometimento de um erro na aprovação da candidatura por parte do então-designado IFADAP, estes processos assumem uma gravidade preocupante, uma vez que, em última análise, podem ser geradores de responsabilidade civil do Estado perante os particulares.



Fico então a aguardar que V. Ex.ª comunique a decisão final que o IFAP perfilha quanto a este assunto, certo de que lhe dispensará toda a atenção que merece e na expectativa, também, de que o IFAP saberá corrigir a sua decisão quanto a este projecto de candidatura, em conformidade com as responsabilidades que lhe são assacáveis por o ter aprovado de forma indevida.



Com os meus melhores cumprimentos.



O Provedor-Adjunto de Justiça



 


 


Jorge Noronha e Silveira



 


Em resposta ao ofício supra, o IFAP, I.P. informou que “após reanálise do processo, decidiu (…) no sentido do arquivamento do mesmo”, decisão que consubstancia o acatamento da sugestão formulada, de não ser exigida à sociedade reclamante a restituição da ajuda em causa.