Ministra da Saúde
Número: 11/A/97
Processo:147/96
Data: 21.02.1997
Área: A3

Assunto: SAÚDE – HOSPITAL – ACESSIBILIDADE A CONSULTA – INTERVENÇÃO CIRÚRGICA – RELATÓRIO DA VISITA EFECTUADA A CENTROS DE SAÚDE E HOSPITAIS DA REGIÃO NORTE

Sequência: Sem Resposta

1. Em meados do ano passado, foi-me dirigida uma reclamação, subscrita por cerca de 14.000 pessoas, acerca da dificuldade de acesso a consultas e intervenções cirúrgicas nos hospitais da região Norte do país.

A instrução do processo, aberto com base na aludida reclamação, traduziu-se essencialmente em duas fases: na primeira, efectuaram-se visitas de inspecção a seis centros de saúde da zona e, na segunda, visitas de teor similiar a quatro hospitais da mesma região; por último, ouviu-se pessoalmente a Coordenadora da Sub-região de Saúde do Porto sobre as questões objecto do processo.

As visitas aos centros de saúde tiveram sobretudo em vista conhecer o itinerário que tem de ser percorrido pelo doente desde a consulta ao seu médico de família até à obtenção de cuidados de saúde diferenciados, ou seja, perceber o funcionamento da primeira etapa da prestação de cuidados de saúde. Por outro lado – e porque desde cedo se percebeu que a questão incide sobre a articulação entre centros de saúde e hospitais -, pretendeu-se apurar de que forma o problema é sentido nos centros de saúde.

As visitas, que incidiram sobre seis centros de saúde, seleccionados em função da sua localização (zonas urbanas, rurais ou periferia de centros urbanos), traduziram-se na recolha dos dados necessários à sua caracterização, na realização de entrevistas aos utentes e na audição dos respectivos responsáveis. O relatório destas visitas constitui o Documento n.º 1, junto à presente recomendação.

A selecção dos serviços hospitalares visitados – que mais não constituem do que uma amostra, a partir da qual se procurou uma caracterização geral do problema – teve por base a informação recolhida junto dos centros de saúde sobre os serviços que apresentariam maiores dificuldades de acesso às consultas ou maiores atrasos na realização de intervenções cirúrgicas. Assim, foram objecto de análise:

a) no Hospital de S. João, no Porto: os serviços de Cardiologia, Cirurgia Vascular, Endocrinologia, Estomatologia, Neurologia, Oftalmologia, Ortopedia, Otorrinolaringologia, Psiquiatria, Reumatologia e Urologia;

b) no Hospital Geral de Sto. António, no Porto: os serviços de Estomatologia, Oftalmologia e Otorrinolaringologia;

c) no Hospital Padre Américo (unidade de Penafiel do Centro Hospitalar Vale do Sousa): os serviços de Cirurgia, Ortopedia e Otorrinolaringologia;

d) no Hospital Distrital de Matosinhos: os serviços de Cirurgia Geral e de Oftalmologia.

A metodologia seguida traduziu-se na audição dos directores e, em alguns casos, dos responsáveis pelas consultas dos serviços visados, bem como dos directores dos hospitais e de outros membros das direcções hospitalares, tendo em vista recolher a opinião destes quanto à organização e funcionamento dos respectivos serviços e quanto às causas e propostas de solução para os problemas detectados.

Para além disso, procedeu-se ao apuramento, por verificação directa, dos dados constantes dos registos existentes nos serviços de marcação de consultas, bem como dos próprios elementos estatísticos, sem prejuízo, sempre que necessário, da solicitação posterior de esclarecimentos sobre os dados recolhidos.

2. O relatório das aludidas visitas aos Hospitais – que constitui o Documento n.º 2, junto à presente recomendação – contém a exposição pormenorizada de toda a informação obtida quanto aos dados apurados (sobre tempos e listas de espera, movimentos de consultas e de intervenções cirúrgicas, volume de pedidos de consulta, entre outros) e às opiniões recolhidas junto dos responsáveis ouvidos.

Assim, sem prejuízo do maior detalhe que poderá ser obtido pela leitura do aludido relatório, importará, contudo, fazer uma síntese dos principais dados recolhidos.

3. O trabalho realizado permitiu confirmar a procedência das queixas dos utentes quanto às dificuldades de acesso aos cuidados de saúde hospitalares, nomeadamente quanto às consultas externas e internamento para realização de intervenções cirúrgicas.

Com efeito, os serviços hospitalares indicados pelos centros de saúde como de maior dificuldade de acesso revelaram tempos de espera longos, os quais se traduzem, em alguns casos, na recusa de uma parte significativa dos pedidos de marcação de consultas.

A comparação entre os tempos de espera relativos a cada hospital permite detectar algumas tendências. Assim, a espera para a realização das primeiras consultas é maior nos hospitais centrais do que nos hospitais distritais analisados. Tendência que se reflecte, também, na relação entre primeiras e segundas consultas, denotando os hospitais distritais visitados maior capacidade de absorção de novos doentes, relativamente ao acompanhamento de doentes em consultas subsequentes.

A espera pelas intervenções cirúrgicas, porque ligada a problemas específicos como a capacidade cirúrgica e de internamento, já não revela distinções acentuadas entre os diferentes tipos de hospitais.

Importará descrever, ainda que de modo necessariamente sucinto, os dados mais significativos relativamente a cada hospital.

Assim, no Hospital de S. João – com onze serviços identificados pelos centros de saúde como de difícil acesso – as situações mais graves dizem respeito a três serviços cujos atrasos na marcação de consulta eram de, pelo menos, dois anos. Nos restantes casos, a espera pela realização de consultas, relativa ao ano de 1996, não excedeu oito meses, o que se explica pelo facto de cinco destes serviços procederem habitualmente à recusa dos pedidos por motivo do preenchimento da agenda até ao final de Dezembro de cada ano.

Os atrasos na realização de intervenções cirúrgicas são mais evidentes em Cirurgia Vascular, no caso dos doentes varicosos e em Urologia, nas situações de hipertrofia benigna da próstata, cujas inscrições mais antigas datam, respectivamente, de há dez e sete anos e em Otorrinolaringologia, com 7396 doentes inscritos (a capacidade operatória é, neste Serviço, de cerca de mil doentes por ano).

Em Oftalmologia, a espera mais longa – superior a três anos – regista-se nas situações de óculo-plástica. De salientar que estas listas não se encontram actualizadas, podendo haver doentes inscritos simultaneamente em vários hospitais.

No Hospital Geral de Santo António, por razões paralelas às apontadas para o Hospital de S. João, o período máximo de espera nos serviços analisados verifica-se nas consultas de Oftalmologia (no caso de a uma consulta de Oftalmologia geral suceder uma de glaucoma o doente espera, em média, dez meses).

Quanto a intervenções cirúrgicas, permito-me realçar, também, os casos de Oftalmologia – com tempos médios de espera de 8 a 10 meses para a cirurgia de cataratas e de 6 a 7 meses para a de estrabismo – e de Otorrinolaringologia cujos doentes mais antigos aguardam há quatro anos nos casos de patologia otológica e há cerca de dois anos nos de patologia rinosinusal.

A dificuldade de acesso às consultas de Oftalmologia do Hospital Distrital de Matosinhos não se traduz tanto na necessidade de aguardar pela sua realização, mas antes na circunstância de não serem aceites determinadas patologias. A cirurgia de cataratas é a que regista maior período de espera nesta especialidade (16 meses). Neste Hospital, há ainda a salientar a existência de quatro mil doentes (considerados não prioritários) registados na lista de espera do Serviço de Cirurgia, cuja capacidade de atendimento é de cerca de 8 a 10 destes casos por semana.

Não se revela igualmente fácil o acesso a determinados cuidados de saúde prestados pelo Hospital Padre Américo, em Penafiel, cujos doentes se vêem na contingência de aguardar quatro e onze meses por consultas de, respectivamente, Ortopedia e Otorrinolaringologia. No caso de inscrição para intervenção cirúrgica, a espera será superior a dois anos, quer nas especialidades referidas, quer na de Cirurgia Geral.

Os tempos e listas de espera aludidos não revelam, porém, a gravidade do problema em toda a sua extensão. Sobretudo no que respeita a consultas, a abordagem da questão não pode deixar de ter em conta a circunstância de muitos doentes verem os seus pedidos rejeitados pelos hospitais, pelas mais variadas razões.

Assim, não só os tempos de espera seriam forçosamente superiores, caso fossem marcadas todas as consultas recusadas, como, por outro lado, a rejeição sistemática de certo tipo de pedidos é de molde a fazer reduzir o volume destas solicitações.

Neste domínio, cumprirá ter em conta, em primeiro lugar, as recusas por motivo de saturação de agenda, ou seja, por esta se encontrar totalmente preenchida durante determinado período previamente definido pelo serviço.

Pelo menos em cinco serviços do Hospital de São João, a metodologia adoptada para a marcação de consultas até final de 1996 consistia no preenchimento das agendas até Dezembro de cada ano e devolução dos restantes pedidos, sendo que outros serviços do mesmo Hospital chegaram, mesmo, a suspender durante anos a admissão de novos doentes.

Adiante me deterei sobre a desigualdade de tratamento dos doentes que decorre da adopção do procedimento descrito. Desde já, importa reter que nos serviços que seguem este expediente se registaram cerca de 30% de devoluções do total dos pedidos recebidos em 1996, sendo certo, porém, que este volume poderá integrar, também, pedidos recusados por motivos diversos (cuja discriminação não consta dos registos de recusa dos pedidos), como a deficiente prestação de informação clínica por parte do médico de família.

O segundo motivo mais frequente de devolução de pedidos de consulta assenta no tipo de patologia e na alegada falta de vocação do hospital para prestar assistência que envolva diminuído grau de especialização ou diferenciação.

Este expediente conduz à existência de áreas de cuidados de saúde onde, mais do que os atrasos, é a quase total falta de resposta do sistema público de saúde que constitui a principal preocupação. Saliento, sobretudo, o caso dos cuidados primários de estomatologia médica (tais como tratamentos de cáries e extracções dentárias a doentes que não apresentem factores de risco) e de oftalmologia (como, por exemplo, a simples perda de acuidade visual e a correcção de erros de refracção).

Nos hospitais visitados, os serviços de Estomatologia (Hospitais de Sto. António e de S.João) e de Oftalmologia (Hospitais de Sto. António e de Matosinhos) adoptam metodologias idênticas quanto à prestação deste tipo de cuidados, ou seja, excluem do acesso às consultas todos os doentes que não se integrem numa das categorias previamente definidas (dadores de sangue, funcionários do hospital, reclusos e outros) (1). Permito-me evidenciar que, no caso do Hospital Geral de Sto. António, tal restrição está prevista num Protocolo, celebrado entre a Administração Regional de Saúde do Norte e o Hospital, em Agosto de 1988 (2).

Não posso deixar de realçar o facto de, apesar destas limitações,os serviços em causa continuarem a receber solicitações para a realização deste tipo de cuidados, o que permite concluir pela dificuldade, ou mesmo inexistência, de resposta alternativa do sistema de saúde público.

A própria Administração Regional de Saúde do Norte, no caso do aludido Protocolo celebrado com o Hospital Geral de Santo António, acaba por admitir que doentes com determinadas patologias fiquem sem a necessária assistência médica naquele Hospital, não sendo conhecida a adopção de soluções alternativas para o problema.

Assim, estes doentes “a descoberto” cujo número não é possível apurar rigorosamente, caso não disponham de meios para recorrer ao sistema privado, vêem-se na contingência de formular sucessivos pedidos a diferentes hospitais, acabando, por vezes, por receber os cuidados de que necessitam na urgência, numa fase agravada do seu estado de saúde. Trata-se, sem dúvida, de uma grave violação do direito à saúde que a Constituição reconhece a todos os cidadãos.

4. Traçado o quadro sintético dos dados apurados quanto à acessibilidade aos cuidados de saúde hospitalares, cumpre-me salientar as principais falhas detectadas no que respeita à organização e funcionamento das consultas hospitalares.

A primeira nota que realço não pode deixar de ser a insuficiente recolha e tratamento da informação por parte dos Hospitais visitados, mais acentuada nos Hospitais de S. João e Santo António do que nos restantes.

Em todos eles, contudo, o registo dos pedidos de consulta recebidos e, de entre estes, a anotação dos que foram recusados e aceites é efectuada manualmente. Acresce que nenhum dos serviços visitados procede ao arquivo de cópia dos ofícios em que é comunicada a recusa dos pedidos, nem sequer são anotados, de forma sistemática e de fácil consulta, os motivos que fundamentam tais recusas.

Assim, por exemplo, só mediante contagem manual é possível recolher dados sobre o número total de pedidos de consulta formulados junto do Hospital e sobre o volume dos que foram recusados, sendo muito difícil a disponibilização de informações sobre os motivos da recusa, a origem geográfica ou outros elementos de identificação dos utentes a que dizem respeito os pedidos de consulta e o centro de saúde remetente.

Por outro lado, os registos manuais apresentavam falhas evidentes como a falta de anotação dos pedidos de consulta formulados no primeiro semestre de 1996, relativos às especialidades de Otorrinolaringologia e de Endocrinologia do Hospital de S.João, para o que não foi invocada razão plausível.

As aludidas deficiências do sistema de recolha e tratamento da informação têm como consequência que as informações prestadas pelos hospitais sobre tempos de espera nem sempre traduzem a realidade. Por exemplo, aquando da visita ao Hospital de S. João, o Director do Centro de Ambulatório facultou aos meus colaboradores um documento denominado “Primeiras consultas – Listas de espera”, reportado a Dezembro de 1996 (que constitui o anexo A-3 do Relatório junto como Documento n.º 1) cuja análise conduz a conclusões bem diversas das alcançadas através da recolha directa de dados a partir dos registos existentes.

A justificação para as diferenças detectadas é simples.O aludido documento traduz o preenchimento da agenda de 1997. Ora, uma vez que, na maior parte das especialidades, as agendas de 1996 ficaram totalmente preenchidas, nalguns casos a meio do ano, o serviço central de consultas procedeu à devolução de todos os pedidos formulados posteriormente à saturação da agenda.

Assim, as marcações de consultas para o corrente ano só foram realizadas no final do ano passado e tendo por base novos pedidos formulados nessa altura, pelo que é natural que, em Dezembro, as agendas de 1997 apresentassem ainda poucas marcações. Do exposto resulta, pois, que esta metodologia não é a mais adequada para conhecer as dificuldades de acessibilidade às consultas.

A adequada informatização dos hospitais permitiria não só a recolha e tratamento da informação indispensável a uma gestão eficaz (como a relativa ao absentismo médio dos doentes, ao número de consultas realizadas por médico e por período de consulta, ao volume de solicitações dirigidas ao hospital e ao de recusas e respectivos motivos), como evitar atrasos na transmissão de informação dentro do próprio hospital. Quanto a este último aspecto, atente-se, por exemplo, no facto de os resultados dos exames complementares de diagnóstico realizados no Hospital de S.João demorarem aproximadamente 21 dias a chegar ao conhecimento do médico que os requereu, o que pode perturbar o normal funcionamento das consultas.

5. No âmbito do funcionamento do sector das consultas externas, aspectos há que merecem, ainda, uma referência particular.

Causa uma certa estranheza verificar que, em alguns serviços hospitalares, a apreciação dos pedidos de consulta é realizada por funcionários administrativos. Este procedimento não seria preocupante se a realização das consultas ocorresse a curto prazo. A verdade, porém, é que, perante dificuldades de agendamento, torna-se necessária a apreciação dos pedidos de modo à sua ordenação em função da prioridade da patologia. Como resulta evidente, é tarefa do foro médico que não pode ser delegada em funcionário sem as habilitações necessárias.

Nalguns serviços do Hospital de S. João sucede mesmo que os pedidos recebem tratamento diferenciado consoante são formulados pelo correio – caso em que são objecto de análise médica – ou por telefax, caso em que o seu tratamento cabe apenas ao serviço central de consultas.

É certo que a adopção da formulação de pedidos por telefax teve inicialmente em vista a marcação de consultas relativas a patologias prioritárias, para o que foram acordadas entre a Sub-região de Saúde do Porto e aquele Hospital determinadas expressões médicas para identificar esses casos.

Contudo, esta forma de veiculação de pedidos é actualmente usada para todo o tipo de situações e não dá lugar a marcações prioritárias, ficando a resposta condicionada às disponibilidades de agenda. Deste modo, não é assegurado o rastreio médico das situações que justificam atendimento prioritário.

Por outro lado, mesmo em casos de apreciação médica dos pedidos, verificaram-se atrasos significativos na execução desta tarefa. Se é certo que de tal atraso não resultou o desaproveitamento de quaisquer tempos de consulta dada a sobrecarga de agenda, a análise prévia e atempada dos pedidos apresenta a vantagem de permitir detectar casos urgentes ou cuja gravidade justifique uma marcação prioritária. A demora nessa análise – que nalguns serviços dos Hospitais de Santo António e S. João chegou a atingir 6 meses – compromete tal objectivo.

Como já tive oportunidade de referir, uma das formas utilizadas pelos serviços hospitalares para disciplinar o recurso às consultas externas é fixar um período máximo de marcação de consultas, procedendo-se, consequentemente, à devolução dos restantes pedidos. Chegados a este ponto, importa salientar que tal procedimento é susceptível de originar situações de desigualdade entre os “candidatos” às consultas.

Tome-se o exemplo do tratamento conferido aos pedidos de consulta do Serviço de Neurologia do Hospital de S.João. Em Agosto de 1996, fizeram-se marcações de consultas até ao final do ano (as quais respeitavam a pedidos entrados no Hospital entre Fevereiro e Julho), tendo sido devolvidos os recebidos após aquela data.

Os pedidos formulados em Novembro e Dezembro deram lugar a marcações para os meses de Janeiro e Fevereiro de 1997. Ora, daqui resulta que o tempo de espera pela realização da consulta foi maior para os doentes que a solicitaram entre Fevereiro e Julho (cerca de 6 a 8 meses) do que para os que o fizeram no final do ano (2 a 3 meses). É de notar ainda que, enquanto os pedidos formulados em Outubro foram recusados, os recebidos no mês seguinte deram lugar a marcações para o início do ano de 1997.

Do exposto resulta, pois, que a ordem de chegada dos pedidos não é determinante quanto à prioridade no atendimento (sem prejuízo obviamente da diferença de tratamento que pode resultar da gravidade da patologia em causa, a qual se justifica perfeitamente).

Tudo depende, afinal, de o pedido ser feito no momento em que o Hospital decidiu proceder à marcação de consultas, sendo certo que os centros de saúde e os utentes desconhecem qual é esse momento. É que esta metodologia responde, em primeiro lugar, a necessidades internas de organização dos serviços, descurando o fim principal dos cuidados hospitalares: o interesse do doente.

Este procedimento de fixação de períodos máximos de marcação consultas levou mesmo o serviço central de consultas do Hospital de S.João a recusar a recepção dos pedidos entregues pessoalmente, nos casos das especialidades em que a marcação registava grandes atrasos. Com este procedimento de recusa liminar, os pedidos não chegaram sequer a ser analisados, pelo que os doentes ficaram assim impedidos de aceder à consulta hospitalar, mesmo aqueles com patologias consideradas prioritárias.

6. Não basta, porém, identificar os problemas com que se debatem os utentes no acesso aos cuidados hospitalares e as deficiências de organização e de funcionamento dos respectivos serviços. Com efeito, há que ir mais longe e buscar as causas do problema, com vista a apontar vias de solução.

Não se ignora a complexidade da questão – a que não são alheios factores socio-económicos e culturais – nem as ligações necessárias com outras áreas do sistema de saúde, como, por exemplo, os serviços de urgência.

Nesta perspectiva, foram ouvidos os responsáveis hospitalares sobre as razões que conduzem à dificuldade de acesso às consultas e intervenções cirúrgicas, sendo possível identificar como mais insistentemente invocadas:

a) falta de consultas de especialidade nos centros de saúde e consequente sobrecarga dos serviços hospitalares no tratamento de patologias consideradas menos diferenciadas;

b) deficiente distribuição e gestão dos recursos materiais e humanos dos hospitais distritais e centrais;

c) desadequada articulação entre centros de saúde e hospitais, quer quanto à sua interligação geográfica, quer relativamente aos procedimentos de encaminhamento de doentes;

d) inexistência de incentivos à “produtividade” dos médicos;

e) peso excessivo dos serviços de urgência relativamente à restante actividade hospitalar.

7. Tomando em consideração as causas apontadas, permito-me evidenciar os factores que considero constituírem as principais disfunções do sistema.

O primeiro aspecto a realçar, neste domínio, é o de que não se encontram instituídos mecanismos aptos a verificar a “rentabilidade” dos serviços hospitalares, ou seja,a medida do aproveitamento dos recursos materiais e humanos existentes.
Com efeito, cada serviço hospitalar define, com relativa autonomia (que varia em função da liberdade permitida pela administração hospitalar) a sua capacidade de resposta, a qual se traduz em factores como o número de consultas que realiza – e, entre estas, o volume de novos doentes admitidos -, os horários a praticar, a rentabilidade da ocupação das camas e o tipo de assistência que é assegurado (e, consequentemente, os doentes excluídos).

Para alcançar tal conclusão, bastará atentar nalguns factos, aparentemente inexplicáveis, de que passo a dar exemplos.

O Serviço de Cirurgia do Hospital Distrital de Matosinhos tem actualmente 4000 doentes a aguardar intervenção cirúrgica, tendo revelado em 1995 uma taxa de ocupação média de internamento de 87,9%. Por seu turno, o Hospital de S.João dispõe de quatro serviços de Cirurgia Geral, que não apresentam tempos de espera relevantes e com taxas de ocupação do internamento entre 58,7% e 74,6%, em igual período.

Por outro lado, é curioso verificar que, no Hospital de Matosinhos, os períodos de consulta prolongam-se até às 18h30m (prevendo-se, mesmo, que no novo Hospital, tais períodos terminem às 20h), o que já não sucede nos hospitais centrais visitados, cujo período da tarde termina, geralmente, cerca das 16h30m.

No Hospital de S.João constatou-se existir diverso equipamento de Otorrinolaringologia a que não está a ser dada qualquer utilização.

Já depois da visita ao Hospital Geral de Santo António, o respectivo Director comunicou-me que, mercê da “redistribuição de tempos de consulta e de instalações”, prevê a realização em 1997 de 7000 primeiras consultas de Oftalmologia, o que representará um aumento significativo relativamente aos 4000 novos doentes admitidos, em média, nos anos anteriores.

Torna-se, pois, imperioso não descurar a avaliação sistemática da utilização dos recursos disponíveis. Tal apreciação implica forçosamente o conhecimento aprofundado das particularidades de cada especialidade médica, nomeadamente de factores como a demora média das consultas, das intervenções cirúrgicas e do internamento, as necessidades específicas de acompanhamento dos doentes em consulta externa hospitalar (ou, ao invés, a possibilidade de encaminhamento para posterior vigilância pelo médico assistente), os meios complementares de diagnóstico indispensáveis, a natureza predominantemente cirúrgica ou não da actividade, entre outros factores.

8. Acresce que a verificação da rentabilidade dos recursos também não é feita no plano, mais geral, da articulação entre os diferentes níveis de cuidados de saúde de cada região. Na verdade, centros de saúde, hospitais distritais e hospitais centrais funcionam isoladamente, sem a preocupação de ser assegurada uma resposta concertada entre si.

Tal concertação revela-se necessária a três níveis geográficos diferentes: no plano das regiões de saúde, das sub-regiões e das unidades de saúde (estas últimas a criar). Ela tornaria possível maximizar a oferta dos cuidados de saúde, evitando um recurso excessivo aos hospitais centrais para efeitos da prestação de assistência que pode ser assegurada nos hospitais distritais ou nos próprios centros de saúde e permitindo, desse modo, uma resposta oportuna por parte de todos os intervenientes do sistema de saúde público.

A articulação passaria pela definição, tanto quanto possível rigorosa, do tipo de cuidados de saúde que os centros de saúde, hospitais distritais e hospitais centrais deveriam prestar, obstando-se, deste modo, a que tal definição fique livremente a cargo de cada serviço hospitalar, como atrás descrito.

A conjugação das duas medidas preconizadas – rentabilização dos recursos existentes e articulação entre os intervenientes no sistema de saúde público – permitiria encontrar resposta para os problemas de protelamento da assistência no domínio do próprio sistema público e, só depois de esgotada esta via, é que se procuraria encontrar soluções alternativas no sistema de saúde privado.

Ao invés, o Projecto PERLE – Programa Específico de Recuperação de Listas de Espera – seguiu a via inversa, acabando por abranger um número reduzido de casos (quando comparado com o volume total de doentes em espera) e envolvendo, para o efeito, elevados encargos financeiros (Esc. 99.307.877$00 para 349 intervenções cirúrgicas).

Nos termos do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 335/93, de 29.9, as Administrações Regionais de Saúde têm como uma das suas atribuições avaliar os recursos do sector da saúde e propor a sua afectação, em conformidade com os objectivos definidos [alínea e)], bem como propor critérios de articulação entre as instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde [alínea d)].

A articulação geográfica entre os cuidados de saúde, já prevista na Base XIII, n.º 2 da Lei de Bases da Saúde (Lei 48/90, de 24.8) é, pois, matéria que cabe, inteiramente, no âmbito das atribuições da Administração Regional de Saúde do Norte, a qual conta com a colaboração, a nível sub-regional, das coordenações das sub-regiões de saúde.

Este assunto já foi abordado em 1986, através dos despachos ministeriais n.ºs 10/86, 23/86, 32/86 e 36/86(3), os quais definem e caracterizam os hospitais de níveis 1 a 4, identificando as designadas “valências” básicas, não básicas, intermédias, complementares e altamente diferenciadas. Para cada tipo de hospital ficou, pois, estabelecido quais as especialidades que os mesmos devem integrar, bem como o número de médicos, camas e tipo de equipamento de que devem estar dotados, de acordo com “ratios” em função da população que viesse a ser abrangida.

De qualquer modo, os referidos despachos, para além da necessária actualização das suas regras, emitidas há mais de dez anos, não respondem à questão de saber quais, de entre os diferentes tipos de cuidados de saúde relativos a cada especialidade (sobretudo nos casos das “valências” comuns a todos ou a alguns hospitais), devem ser assegurados por cada um dos tipos de hospitais e para que população.

Mais recentemente, o despacho ministerial n.º 24/94, de 16.5 (D.R.,II,de 9.6.94) fixou as normas de articulação provisória entre hospitais e centros de saúde, com vista à criação das futuras unidades de saúde. Tais normas prevêem a criação de agrupamentos de hospitais e centros de saúde, aos quais preside uma comissão de coordenação, a quem compete: “programar as medidas de articulação conjunta e avaliar periodicamente o grau de integração dos cuidados prestados; caracterizar a procura de cuidados de saúde na área de influência do agrupamento; avaliar a capacidade de oferta dos serviços que a integram” (art. 2, n.º 3).

Se é certo que a questão da articulação entre os diferentes níveis de cuidados de saúde tem merecido adequada regulamentação, a verdade é que tal já não sucede quanto à sua execução.

Com efeito, na Sub-região de Saúde do Porto, pouco mais há a referir, neste domínio, do que a criação e desenvolvimento, a título experimental, da unidade de saúde de Santo Tirso, projecto sobre o qual ainda não se conhece a posição da Administração Regional de Saúde do Norte.
Importaria, por isso, estabelecer e concretizar um plano de articulação global dos cuidados de saúde, o qual consistiria no seguinte:

– distinção dos diferentes tipos de assistência praticados no âmbito de cada uma das especialidades;

– definição, em cada região, sub-região e unidade de saúde, dos estabelecimentos que asseguram a prestação dos aludidos tipos de assistência, podendo implicar, eventualmente, a criação de consultas de especialidade nos centros de saúde por parte dos médicos hospitalares.

9. Esta articulação global dos diferentes níveis de cuidados de saúde não pode, ainda, prescindir de uma concertação quanto aos procedimentos a adoptar no relacionamento entre centros de saúde e hospitais.

Na verdade, hospitais e centros de saúde, na medida em que procedem ao encaminhamento de doentes entre si, encontram-se numa relação de necessária complementaridade. Contudo, é curioso verificar que são escassos os contactos entre ambos. Se é certo que são comuns as queixas dos médicos hospitalares sobre a deficiente referenciação clínica dos doentes prestada pelos médicos de família e destes quanto à dificuldade de acesso às consultas hospitalares, não menos certo é que são muito reduzidas as tentativas de qualquer das partes para alterar este estado de coisas.

A articulação a este nível revela-se imprescindível em vários domínios. Por um lado, na destrinça, tão exaustiva quanto possível, dos actos médicos que, relativamente a cada especialidade e patologia, constituem cuidados de saúde primários e diferenciados (por exemplo, quanto ao tratamento dos doentes diabéticos, definir diferentes graus da patologia e, para cada um deles, a periodicidade e o tipo de cuidados a prestar pelo médico hospitalar e pelo médico assistente).

De igual modo, é importante o acordo quanto às informações clínicas a prestar reciprocamente, quer aquando do encaminhamento do doente para a consulta hospitalar, quer aquando do reenvio deste para vigilância pelo médico de família, mediante nota de alta de consulta ou de internamento.

Seria conveniente, também, a concertação quanto à possibilidade de os médicos de família resolverem dúvidas sobre casos clínicos junto dos médicos hospitalares.

Para além disso e em cumprimento de eventuais medidas adoptadas no âmbito da referida articulação global entre os diferentes níveis de cuidados de saúde, importaria ainda concertar procedimentos quanto à realização de consultas por parte dos médicos hospitalares nos centros de saúde.

O estreitar de relações entre os diversos intervenientes na prestação de cuidados de saúde, para além das vantagens apontadas, permitiria a melhor compreensão recíproca dos problemas com que cada um se debate, facilitando, assim, a obtenção de soluções consensuais.

Em face do exposto,

RECOMENDO

I. Como medidas de carácter geral:

a) a realização de auditorias técnicas aos serviços hospitalares e aos centros de saúde, destinadas a avaliar a efectiva capacidade de resposta destes, com vista à melhor e mais eficaz rentabilização dos recursos existentes;

b) a definição de um plano de articulação global entre os diferentes níveis de cuidados de saúde – tendo por base as informações resultantes das aludidas auditorias -, a promover pela Administração Regional de Saúde do Norte, com a participação dos estabelecimentos hospitalares;

c) a execução do referido plano mediante a celebração de protocolos específicos entre os hospitais e os centros de saúde;

d) que a fixação de regras de admissão às consultas em função do tipo de patologia, ao invés de resultar da decisão unilateral de cada serviço hospitalar, se enquadre nas medidas de articulação preconizadas.

II. Como medidas destinadas à melhoria da organização das consultas externas nos hospitais visitados:

e) a adopção das medidas necessárias a garantir a adequada informatização dos hospitais, com vista, por um lado, a obviar ao atraso na realização das consultas por dificuldades de arquivo e de transmissão de informação clínica dentro do hospital e, por outro lado, a permitir o devido tratamento da informação, indispensável a uma gestão eficaz deste sector;

f) que, no âmbito da recomendação anterior, sejam nomeadamente tomadas providências destinadas ao apuramento das faltas dos doentes às consultas, com vista a detectar valores médios e, desta forma, evitar o desaproveitamento dos períodos destinados a consulta;

g) que, ainda no âmbito da recomendação formulada em e), sejam tomadas as medidas necessárias à recolha de informação relativa, nomeadamente, ao número de consultas realizadas por médico e por período de consulta, ao volume de pedidos de consultas apresentados, ao número dos que foram recusados e respectivos motivos, a origem geográfica e outros elementos de identificação dos doentes a que dizem respeito os pedidos de consulta e o centro de saúde remetente;

h) que o procedimento de devolução de pedidos de consulta por saturação de agenda seja substituído por outro que garanta o tratamento dos utentes, em condições de igualdade, não fazendo depender a inscrição de circunstâncias aleatórias, para o que se deverá ter em consideração as seguintes regras:

h1) registo de todos os pedidos de consulta;

h2) comunicação atempada ao médico de família da data da consulta ou da impossibilidade de resposta oportuna (bem como,neste último caso,de que o pedido ficará registado);

h3) marcação das consultas por ordem de chegada dos pedidos,sem prejuízo de excepções resultantes da prioridade da patologia;

h4) revisões das listas de espera, quer no momento anterior à marcação,quer quando a sua extensão o justifique;

i) que, sempre que não haja uma resposta imediata do serviço, seja assegurada a análise atempada de todos os pedidos de consulta por parte de um médico, com vista à sua ordenação em função da prioridade, no atendimento, da patologia.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL

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(1) O Serviço de Oftalmologia di Hospital de S. João aceita este tipo de pedidos (com excepção dos relativos a doentes de distritos mais distantes), aos quais não é assegurada, contudo, uma resposta rápida.

(2) Tal protocolo foi revisto, sem alterações quanto a esta matéria, em Fevereiro de 1991. Mais recentemente, em 5.05.94, a Sub-região de Saúde do Porto da ARS do Norte dirigiu aos centros de saúde da área a circular informativa nº 52/94, onde é reiterada a informação relativa à exclusão da prestação dos aludidos cuidados de medicina dentária por parte daquele Hospital.

(3) D.R., II Série, respectivamente, de 5.5.86, 16.7.86, 5.9.86 e 3.11.86.