Presidente da Câmara Municipal de Oleiros
Número: 4/A/97
Processo: 1995/95
Data: 13.01.1997
Área:A1

Assunto: URBANISMO E OBRAS – OBRAS PÚBLICAS – PROPRIEDADE PRIVADA – EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA – RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL – CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES (DECRETO LEI 438/91, DE 9 DE NOVEMBRO)

Sequência: Acatada

I – Dos Factos

1. O Senhor… apresentou queixa ao Provedor de Justiça alegando ser proprietário de um terreno denominado … , sito no lugar e Freguesia de … , Concelho de Oleiros, o qual foi, quase na íntegra, ocupado pela estrada camarária ali construída, sem que de tal tivesse sido indemnizado.

2. Instado V.ª Ex.ª a pronunciar-se quanto ao teor da queixa, veio esclarecer que:

2.1. Sendo certo, embora, que essa Câmara Municipal construiu uma estrada sobre o terreno do queixoso, sem o pagamento de qualquer indemnização, fê-lo na sequência de uma informação prestada pela Junta de Freguesia de … (entidade encarregue de contactar os proprietários dos terrenos a serem ocupados) na convicção de que todos os proprietários tinham anuído a que a estrada se fizesse, prescindindo voluntariamente de qualquer indemnização, mas “de tal acordo não existe qualquer documento, tudo se tendo processado verbalmente”.

2.2. Acrescenta, ainda, V.ª Ex.ª, que a edilidade “está no entanto disposta a regularizar a situação desde que conclua inexistir má fé ou aproveitamento abusivo da situação por parte do queixoso”.

II – Dos Fundamentos

3. Fazendo o necessário enquadramento legal da matéria, há que atentar, antes do mais, na existência de consagração constitucional do direito à propriedade privada que, segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (in anotação ao art. 62º da Constituição da República Portuguesa, Coimbra, 1993) abrangerá, pelo menos, quatro componentes:

– direito de adquirir bens,
– direito de usar e fruir dos bens de que se é proprietário,
– direito de os transmitir,
– direito de não ser arbitrariamente privado deles e de ser indemnizado no caso de desapropriação.

4. Note-se que defende, ainda, a generalidade da doutrina que, revestindo o direito de propriedade, em vários dos seus componentes, uma natureza negativa ou de defesa, ele constitui um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, compartilhando do respectivo regime constitucional específico, em toda a sua extensão, conforme se alcança da análise do disposto no art. 17º da Lei Fundamental.

5. Ora, como aspectos essenciais deste regime, há que salientar, entre outros, ao lado da aplicabilidade directa – independente da intervenção do legislador ordinário -, a vinculação imediata dos poderes públicos e das entidades privadas (art. 18º, n.º 1), a salvaguarda da extensão do seu conteúdo essencial, a legitimidade de autodefesa e do direito de resistência em caso de ofensa (art. 21º) e a responsabilidade solidária do Estado e demais entidades públicas nos casos de violação desses direitos por parte dos seus funcionários ou agentes (art. 22º).

6. Nessa esteira, dispõe-se no art. 1305º do Código Civil que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (desde que dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas).

7. Dispõe-se, ainda, no art. 1308º do mesmo Código que ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade se não nos casos previstos na lei, prevendo-se não só a possibilidade de o proprietário exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence, como ainda se admite a defesa por meio de acção directa (vide art. 1311º do C. Civil e seg.)

8. Nesta conformidade, e não prevendo a lei o acordo verbal como modo passível de operar a transferência da propriedade sobre imóveis, entendo que a ocupação efectuada pela Câmara Municipal de Oleiros, a que V.ª Ex.ª preside, de parte do terreno de que é proprietário o ora reclamante, é ilegal.

9. Alega, ainda, V.ª Ex.ª ter agido de boa fé, estando essa edilidade disposta a “regularizar a situação, desde que conclua inexistir má fé ou aproveitamento abusivo da parte do queixoso”.

10. Parece, assim, estar V.ª Ex.ª no pressuposto de que cabe ao prejudicado, ora reclamante, provar da inexistência de má fé ou comportamento abusivo da sua parte.

11. Não posso deixar de estar em completo desacordo com tal exigência.

12. É que, é à Administração que cabe, dada a sua natureza, propugnar pelo cumprimento da lei, na defesa do interesse público mas respeitando os interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

13. É este um dever desde logo constitucionalmente consagrado no art. 266º da Lei Fundamental e repetido e desenvolvido nos art. 3º a 7º do Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, que aprovou o Código do Procedimento Administrativo.

14. Se é certo que o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém, não poderá aproveitar, por maioria de razão, a quem tem um especial dever de cumpri-la.

15. Assim sendo, não deveria essa edilidade ter ocupado a parte do terreno em causa, enquanto não estivesse habilitada do necessário título, emergente da aquisição da propriedade por via do direito privado (v.g. por contrato de compra e venda, doação ou sucessão) ou, se tal não tivesse sido possível (v.g. dado o carácter de urgência da obra ou a impossibilidade de acordo com o proprietário), e se se houvesse concluído da utilidade pública do imóvel, por via da expropriação.

16. Note-se, no entanto, que prevê o art. 2º do regime jurídico constante do Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, que aprovou o Código das Expropriações, que – e salvo nos casos em que seja atribuído carácter de urgência à expropriação (caso em que o respectivo processo terá as singularidades que constam do art. 13º deste regime), ou quando se verifiquem as situações previstas no n.º 2 do art. 39º (calamidade pública, exigências de segurança interna e de defesa nacional) – a expropriação só pode ter lugar após se ter esgotado a possibilidade de aquisição por via do direito privado exigindo-se, até, que o requerimento de utilidade pública dirigido ao ministro competente seja acompanhado de documento onde sejam indicadas as razões do inêxito da tentativa de aquisição (art. 12º n.º 2 al. g)).

17. Mesmo no âmbito do processo de expropriação, deverá a entidade expropriante envidar todos os esforços no sentido de chegar a acordo com o expropriado quanto ao montante da indemnização a pagar, forma de cumprimento e eventuais condições acessórias (caso em que o respectivo processo de expropriação amigável seguirá os termos previstos nos arts. 32º e seg. deste Código) sendo que, só no casos em que tal acordo não foi possível, a expropriação será litigiosa, seguindo o respectivo processo os termos dos arts. 37º e segs. daquele Código.

18. De resto, e em todo o caso, sempre seria à Câmara Municipal que caberia provar o facto constitutivo da aquisição da propriedade do munícipe (art. 342º, n.º 1 do Código Civil), não competindo a este a prova de um facto negativo, qual seja o de não ter consentido na ocupação.

Em face de quanto fica exposto,

RECOMENDO

a V.ª Ex.ª que seja o proprietário do terreno ocupado, Sr…, indemnizado dos danos que sofreu em consequência do facto ilícito cometido por essa edilidade, nos termos do n.º 1 do art. 2º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL