Director Clínico do Hospital CUF (ISU)
Número:78/A/97
Processo:R-1110/97
Data:10.12.1997
Área: A1

Assunto:DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS – SEGREDO MÉDICO – DADOS CLÍNICOS – RESERVA DA INTIMIDADE – ACESSO À INFORMAÇÃO – RELAÇÕES ESPECIAIS DE PODER – LEI 9/91, DE 9 DE ABRIL.

Sequência:Acatada

I-Exposição de Motivos

Dos Factos

1. Foi apresentada ao Provedor de Justiça uma queixa na qual se questionava o facto de nos quadros relativos à ocupação dos quartos afixados nas salas do pessoal de enfermagem se encontrarem assinalados os doentes seropositivos ou com SIDA internados no Hospital da CUF.

2. Questionado o Hospital da CUF sobre os factos em causa, tendo em vista o direito à reserva da intimidade da vida privada consagrado no art. 26.º da Constituição, foi recebido em resposta um ofício datado de …, e assinado pelo Senhor Director Clínico do Hospital da CUF, no qual se afirmava ser política institucionalizada do Hospital a reserva da vida privada dos doentes, e que as regras existentes salvaguardam, normalmente, essa reserva.

3. Mais acrescentou que a queixa apresentada à Provedoria de Justiça se teria ficado a dever ao facto da acompanhante de um doente internado no Hospital ter penetrado, sem autorização, na sala de trabalho do pessoal de enfermagem, tendo verificado a existência de um quadro onde, entre outras informações igualmente essenciais ao bom acompanhamento dos doentes por parte do pessoal de enfermagem, se encontram indicados os doentes do piso e o motivo do internamento.

4. Afirmou ainda o Senhor Director Clínico do Hospital que não se lhe afigurava fácil, em termos de eficácia, a substituição do actual sistema de informação permanente e actualizada do pessoal de enfermagem por qualquer outro sistema, sendo certo que será sempre possível violar as regras de segurança e de privacidade, como fez a pessoa em causa.

Da Salvaguarda da Reserva da Intimidade da Vida Privada

5. O direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar encontra-se consagrado no art. 26.º, n.º 1, da Constituição, e compreende o direito de impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrém (cfr. J.J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 181).

6. O conteúdo do direito à reserva da intimidade da vida privada compreende seguramente o nome e o estado de saúde de uma pessoa (cfr., por todos, PAULO MOTA PINTO, O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, BFDC, LXIX, 1993, pp. 479 e ss. (527)), porquanto se trata de informações que se relacionam estreitamente com o indivíduo, e que ele pode encarar como íntimas ou confidenciais, o que lhe confere o direito de evitar o acesso dos outros a essas informações e de impedir a sua revelação.

7. E se há domínio, no âmbito da reserva da intimidade da vida privada dos doentes, que o segredo médico tem de proteger, esse reduto é, seguramente, o das doenças sexualmente transmissíveis (ainda que haja outros meios de transmissão), já que podem criar condições
sociais e culturais para juízos de valor discriminatórios com consequências penosas a acrescer à doença.

8. Em tais casos, os deveres de prudência e de cuidado na preservação do segredo médico devem ter em atenção que não se trata apenas de tornar público o foro clínico, como também de criar oportunidades para se presumirem comportamentos que se reconduzem ao núcleo mais reservado da vida privada.

9. Naturalmente, as informações referentes ao estado de saúde das pessoas internadas em unidades hospitalares não podem deixar de ser conhecidas pelo pessoal médico e paramédico que lhe presta cuidados de saúde. O doente, ao solicitar a prestação desses cuidados de saúde, autoriza aqueles que terão de os prestar a tomar conhecimento das informações sobre o seu estado de saúde, na medida em que essas informações sejam pressuposto da prática dos actos médicos e de enfermagem necessários.

10. Deve garantir-se, no entanto, que os destinatários das informações referentes ao estado de saúde dos doentes internados sejam apenas aqueles que necessitam, para o exercício das suas funções, de tomar conhecimento das referidas informações e, dentro deste grupo, que
cada um tome conhecimento apenas dos elementos necessários à prática dos actos médicos e de enfermagem que lhe estão confiados, não lhe devendo ser facultada informação clínica que não seja relevante para o desempenho, naquele caso concreto, das suas funções.

11. Poderá, assim, distinguir-se a informação referente às prescrições terapêuticas – à qual será possível conceder um estatuto menos reservado – , da informação relativa ao diagnóstico e resultados obtidos em meios complementares – cujo universo de destinatários deverá ser mais restrito.

12. Ora, deve reconhecer-se que a metodologia utilizada no Hospital da CUF para comunicação ao pessoal médico e paramédico das informações sobre o estado de saúde dos doentes aí internados, não salvaguardará de forma suficiente, pelo menos no primeiro aspecto acima referido, o seu direito à reserva da intimidade da vida privada.

13. Com efeito, a afixação, nas salas de trabalho do pessoal de enfermagem, de um quadro onde, além de outras informações essenciais para o bom acompanhamento dos doentes, se encontram indicada a identidade dos doentes do piso e os motivos do respectivo internamento, permite que qualquer pessoa que penetre na referida sala, autorizada ou não, tome conhecimento desses elementos.

14. Permite-se, dessa forma, que pessoal médico ou paramédico (ou pessoal auxiliar: por exemplo, os responsáveis pela limpeza das instalações) que não preste cuidados de saúde aos doentes internados no piso tome conhecimento da sua identidade e de informações relativas ao seu estado de saúde, sem que tal se mostre necessário para o exercício das suas funções.

15. Mais grave do que isso será, contudo, a inexistência de medidas que impeçam de, forma efectiva, o acesso de outras pessoas (doentes internados, seus acompanhantes, ou visitantes), à sala de trabalho do pessoal de enfermagem. Essas pessoas, se aí penetrarem, ainda que sem autorização, terão acesso à identidade dos doentes internados no piso e a informações sobre o seu estado de saúde, invadindo de forma efectiva a sua reserva da intimidade da vida privada.

16. Se é certo que, como refere o Senhor Director Clínico no ofício remetido à Provedoria de Justiça, será sempre possível a violação das regras de segurança e privacidade, qualquer que seja o sistema adoptado, não deixa de ser verdade que a probabilidade de violação de tais regras variará consoante o sistema de comunicação das informações adoptado, parecendo evidente que o sistema utilizado no Hospital da CUF – a afixação de quadro na sala de trabalho do pessoal de enfermagem contendo a identidade dos doentes e o motivo do seu internamento – não se contará entre aqueles que mais garantias de privacidade oferecerão.

17. Caberá ao Hospital da CUF tomar as medidas necessárias para proteger a reserva da intimidade da vida privada dos doentes que aí se encontrem internados. Embora não seja possível excluir, de todo, a possibilidade do acesso não autorizado de estranhos a essas informações, e seja necessário manter o pessoal médico e paramédico habilitado com os elementos necessários à prestação dos cuidados de saúde que lhes incumbem, pensa-se que a introdução de algumas alterações ao sistema vigente serão suficientes para resguardar o direito à privacidade dos doentes.

18. Para atingir o objectivo pretendido, bastará que os dados relativos à identidade e motivo de internamento dos doentes deixem de estar afixados na sala de trabalho do pessoal de enfermagem, imediatamente acessíveis a qualquer pessoa que ali entre, para passarem a constar de folha ou folhas de papel guardadas numa gaveta, ou encerradas em pasta de material não transparente.

19. Trata-se apenas de algumas das soluções possíveis. Outras haverá que o Hospital da CUF poderá ponderar, que permitam de igual modo a salvaguarda do direito à reserva da intimidade da vida privada dos doentes internados, sem comprometerem a eficiência e o grau qualitativo dos cuidados de saúde que lhes são prestados pelo pessoal médico e paramédico. De acordo com o exposto,

RECOMENDO
a) Que o Hospital da CUF substitua os quadros afixados nas salas de trabalho do pessoal de enfermagem, dos quais consta a identidade e o motivo do internamento dos doentes que se encontram em cada piso, por um sistema que assegure de modo mais eficaz a protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada dos doentes internados, sem comprometer a habilitação do pessoal médico e de enfermagem directa e funcionalmente interessado com as informações necessárias à prestação dos cuidados de saúde aos doentes internados.
b) Tal modificação poderá passar pela inclusão dos referidos dados em documento guardado em gaveta, ou encerrado em pasta de material não transparente, por forma a limitar a sua acessibilidade àqueles que deles necessitam de tomar conhecimento para o desempenho das suas funções, sem excluir a possibilidade de indicações por código.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel