Presidente da Câmara Municipal de Abrantes
Número:63/A/97
Processo:R-3564/96
Data:30.07.1997
Área: A1

Assunto:URBANISMO E OBRAS – OBRAS PARTICULARES – LICENÇA DE CONSTRUÇÃO – DESCONFORMIDADE – CONTRA-ORDENAÇÃO – DEMOLIÇÃO.

Sequência: Não Acatada

I-Exposição de Motivos

1. Foi apresentada uma queixa na Provedoria de Justiça relativa à construção de umas escadas de acesso à fracção correspondente ao primeiro andar do prédio sito na Rua …, em Chaínça.

2. Como é do conhecimento de V.ª Ex.ª, a queixa foi formulada pelos senhores proprietários da fracção correspondente ao rés do chão do prédio, tendo por motivos o seguinte:

a) A construção ocupa parte do logradouro dos reclamantes;
b) A mesma impede o acesso a uma das entradas de casa dos reclamantes (na fachada tardoz);
c) A tal acresce a falta de qualidade construtiva das escadas, ainda em reboco, bem como de manutenção, o que tem provocado danos materiais e pessoais;
d) Os reclamantes apenas autorizaram o dono da obra, a construir de acordo com o projecto de arquitectura apresentado na Câmara Municipal de Abrantes, o qual não se mostra respeitado no que concerne à localização das escadas; e
e) como decorre do que fica exposto, a obra não se conforma com o projecto de arquitectura aprovado pela Câmara Municipal.

3. Sobre o assunto foram pedidos esclarecimentos através do ofício n.º … . Em resposta datada de 8 de Outubro de 1996, admitiu essa Câmara Municipal que “no decurso das obras o projecto não foi cumprido, porquanto a escada que apresentava afastada da parede do r/c, foi construída encostada à mesma”.

4. Questionada sobre a adopção de medidas destinadas a repor a legalidade urbanística no local, foi dado conhecimento da posição camarária, a qual se reporta a parecer jurídico datado de 5 de Setembro de 1996. Neste pode ler-se que “apesar de a obra se ter realizado em desconformidade com o projecto apresentado, encontram-se ultrapassados todos os prazos de actuação da autoridade administrativa (Câmara Municipal) por efeitos da prescrição. Assim, quer a instauração de um procedimento por contra-ordenação ou eventual demolição não são agora possíveis, remetendo-nos para os prazos prescricionais do DL n.º 445/91, de 20 de Novembro – com as alterações que já lhe foram introduzidas – ou para os prazos de prescrição da lei geral”, pelo que se conclui:

“a) Encontram-se esgotados todos os prazos de actuação da Câmara por efeito da prescrição.
b) O particular deve ser notificado de que deve recorrer aos meios judiciais – Tribunais Comuns – para poder ser indemnizado pelos prejuízos que refere ter na sua fracção com a construção da escada – humidade, caruncho, salitre – bem como pela faixa de terreno do seu logradouro que foi ocupada – competindo-lhe depois fazer a prova de tudo isso em Tribunal”.

5. Numa análise preliminar do que fica exposto, permito-me adiantar uma conclusão: este entendimento dos factos e das normas que os regem não pode ser sufragado pelo Provedor de Justiça.

6. Com efeito, a instauração de processo contra-ordenacional – na medida em que o art. 54.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, considera que as obras de construção civil efectuadas em desacordo com o projecto aprovado constituem contra-ordenações – em nada contende com o exercício de poderes cometidos às câmaras municipais no sentido da completa reposição da legalidade urbanística e da adequada reintegração dos legítimos interesses e direitos de terceiros.

7. A aplicação de uma coima, na sequência de processo de contra-ordenação, reveste um carácter sancionatório, representando a reacção do ordenamento jurídico à prática de ilícitos urbanísticos, condutas tipificadas, culposas e antijurídicas (cfr. ALMEIDA, António Duarte de, e Outros, Legislação Fundamental do Direito do Urbanismo Anotada e Comentada, Vol. II, Lisboa, 1994, p. 930).

8. Neste domínio, à semelhança do que acontece em matéria criminal, a ordem jurídica procura acautelar os direitos que assistam ao infractor, o que se revela também na fixação de prazos prescricionais para a instauração dos processos de contra-ordenação e aplicação das coimas. O princípio da segurança jurídica afirma-se assim perante o princípio da justiça, baseando a opção do legislador.

9. Neste caso que nos ocupa, e decorridos os prazos de instauração de procedimento contra-ordenacional, precludiram os poderes sancionatórios cometidos à Câmara Municipal de Abrantes, não podendo os mesmos ser exercidos.

10. Este entendimento, que se apoia na lei (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, alterado pelos Decretos-Lei n.ºs 356/89, de 17 de Outubro e 244/95, de 14 de Setembro), não pode ser transposto para o exercício de outros poderes que visem não o sancionamento de condutas ou actuações ilícitas, mas o restabelecimento da ordem jurídica violada.

11. Refiro-me aos poderes que vêm regulados no art. 165.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto 38.382, de 7 de Agosto de 1951. Aí se estabelece que “as câmaras municipais poderão ordenar, independentemente da aplicação das penalidades referidas nos artigos anteriores, a demolição ou o embargo administrativo das obras executadas em desconformidade com o disposto nos artigos 1.º a 7.º”, o que, para além do mais, ilustra o que ficou dito sobre as diferenças de natureza e de regime dos ilícitos de mera ordenação social e das ilegalidades urbanísticas.

12. Também o art. 58.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, confere ao presidente da câmara municipal o poder de ordenar a demolição da obra e a reposição do terreno, quando for caso disso.

13. Sobre este preceito já foi dito, e a meu ver bem, que “a demolição da obra e a reposição do terreno também constituem medidas de protecção da legalidade urbanística, não revestindo o carácter de uma sanção imposta ao dono da obra (…). Sendo a ordem de demolição uma medida de protecção da legalidade urbanística, a mesma tem apenas por função tutelar a legalidade urbanística através da reintegração da realidade física ilegalmente alterada, e não sancionar a conduta de quem constrói sem prévia licença” (cfr. ALMEIDA, António Duarte de, e Outros, ob. cit., pp. 949-950).

14. Assim sendo, não será de invocar a prescrição das contra–ordenações para justificar o não exercício dos poderes em análise.

15. Aliás, e não obstante a formulação dos preceitos legais citados (165.º do RGEU e art. 58.º do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro) indicar a possibilidade de escolha entre demolir ou não demolir (“rectius”: entre ordenar a demolição ou não ordenar a demolição), certo é que, nos termos do art. 167.º do RGEU, a demolição das obras “só poderá ser evitada desde que a câmara municipal ou o seu presidente, conforme os casos, reconheça que são susceptíveis de vir a satisfazer os requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade”.

16. Esta vinculação mereceu já concretização jurisprudencial, tendo o Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção) decidido que “caso os particulares ou pessoas colectivas procedam a construções sem licença ou com inobservância das condições desta, dos regulamentos, posturas municipais ou planos directores, de urbanização ou de pormenor em vigor, devem as câmaras municipais, no exercício de um poder vinculado, ordenar a demolição dessas construções” (cfr. Acórdão de 6-11-1990, in Actualidade Jurídica, Ano 2, n.º 13-14, p. 35).

17. A demolição (só) pode ser evitada se a obra for passível de legalização. A construção das escadas em desacordo com o projecto de arquitectura é uma construção ilegal ou clandestina, não havendo que distinguir as obras realizadas sem prévia licença municipal das obras que se não conformam com a mesma licença, pois, em ambos os casos, estamos perante obras de construção não autorizadas.

18. Pode dizer-se que a obra não autorizada é formalmente ilegal. Se não for susceptível de autorização será também materialmente ilegal. Pelo que fica descrito, pode concluir-se que a demolição da obra não pode ser evitada se a obra for formal e materialmente ilegal.

19. A legalização da obra não se distingue, grosso modo, do licenciamento da mesma. Com efeito, apresentado pedido de legalização da obra não se vislumbram razões diversas para o seu indeferimento, do mesmo modo que a autorização a conceder deve pautar-se pelo respeito pelas regras urbanísticas e procedimentais em vigor.

20. Quero com isto dizer que o licenciamento-legalização da obra não poderá deixar de respeitar os parâmetros legais e regulamentares e de acautelar os direitos dos particulares que possam ser afectados pela obra.

21. Destas últimas releva o que se dispõe no art. 15.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro e no art. 2.º, n.º 1, alínea b), da Portaria n.º 1115-B/94, de 15 de Dezembro. O requerente, não sendo proprietário, deverá comprovar a sua legitimidade para construir no logradouro, a qual se deverá basear no consentimento dos proprietários.

22. O interesse público não se compadece com a manutenção de situações ilegais como a descrita. Daí que o problema exposto se resolva em alternativa: ou o presidente da câmara municipal, ao abrigo do disposto nos artigos 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro e 165.º do RGEU (e ainda do art. 53.º, n.º 2, alínea l), da Lei das Autarquias Locais) ordena a demolição da obra de construção das escadas reclamadas ou, conforme estatui o art. 167.º do RGEU, reconhece que a mesma é “susceptível de vir a satisfazer os requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade”, devendo, para tal efeito, notificar o interessado para que apresente os respectivos projectos com vista à legalização da obra, sendo evitada a demolição se esta vier a ser efectivamente legalizada.

23. Caso a obra não possa (por desrespeito dos parâmetros apontados) nem venha a ser legalizada (vg. por inércia do interessado), o presidente da câmara municipal ordena, vinculadamente, a demolição da obra.

24. É esta a posição que tem merecido o sufrágio da jurisprudência, ilustrada no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção) de 11-06-1987, que decidiu que, na sequência do indeferimento de um pedido de legalização de uma obra, a câmara municipal ficou “obrigada a ordenar vinculadamente a demolição, por força do art. 167.º do RGEU. E a ordená-la sem a faculdade de escolher o momento mais oportuno de agir, porquanto o juízo que, com base em critérios técnicos, formulou acerca da obra, não se coadunava com a abstenção, por esta afectar desde logo os interesses coletivos da estética urbana que a competência conferida às câmaras municipais visa proteger” (in Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 322, pp. 1176 e ss.).

25. Deve ainda ponderar-se a reclamação apresentada pelos vizinhos, pois no mesmo Acórdão foi decidido que “estando a Câmara Municipal obrigada, por força do art. 167.º do RGEU, a ordenar vinculadamente a demolição da obra executada sem licença prévia, por ter indeferido o pedido de licenciamento a posteriori por considerar que a mesma obra contraria as regras urbanísticas, não satisfaz os requisitos da estética urbana e prejudica o prédio de um vizinho do dono da obra, tem esse órgão obrigação de decidir a pretensão, formulada por aquele, de se ordenar a demolição”.

26. Em síntese, o licenciamento-legalização da obra que evita a sua demolição não poderá, por sua vez, deixar de respeitar os parâmetros legais e regulamentares e de acautelar os direitos dos particulares que possam ser afectados pela obra.

27. Quanto a este último aspecto, considero que os danos provocados nas edificações vizinhas, pese embora só possam ser ressarcidos com o recurso aos tribunais comuns, devem ser prevenidos pela câmara municipal. A relevância desses direitos é ilustrada no que dispõe o RGEU sobre a ocupação duradoura de logradouros com quaisquer construções, como é o caso, já que, nos termos do seu art. 74.º, a autorização municipal só pode ser concedida “quando se verifique não advir prejuízo para o bom aspecto e condições de salubridade e segurança de todas as edificações directa ou indirectamente afectadas”.

28. A partir dos elementos recolhidos no decurso da instrução deste processo permito-me concluir que a obra em causa prejudica as condições de estética, de salubridade e de segurança da casa dos reclamantes.

29. A descrição da obra – em reboco e com os materiais de sustentação à vista – não indicia qualquer preocupação de ordem estética, aspecto que parece ter sido descurado pelo dono da obra.

30. Por outro lado, a estabelecer-se um nexo de causalidade entre a construção e implantação das escadas junto a uma das fachadas do edifício e o aparecimento ou agravamento de humidades e infiltrações na casa dos reclamantes, leva a considerar a obra como um foco de insalubridade.

31. Por último, e mais importante, há que avaliar as condições de segurança das escadas e da fracção correspondente ao rés do chão do edifício. Com efeito, não pode deixar de se ponderar o aumento do risco dos ocupantes da fracção em caso de incêndio.

32. No capítulo III, do título V, do RGEU, hoje quase integralmente revogado, preceituava-se que “as saídas das edificações devem conservar-se permanentemente desimpedidas em toda a sua largura e extensão. É interdito qualquer aproveitamento ou pejamento, mesmo temporário, das saídas, susceptíveis de afectar a segurança permanente da edificação ou dificultar a evacuação em caso de incêndio” (art. 143.º). A construção de umas escadas junto a uma porta exterior seria assim interdita.

33. O Decreto-Lei n.º 64/90, de 21 de Fevereiro (Regulamento de Segurança Contra Incêndio em Edifícios de Habitação), que operou a revogação das normas contidas no citado capítulo do RGEU, pese embora a menor clareza dos seus preceitos, vem dispor de forma semelhante. Nos termos do art. 46.º, n.º 5, estabelece-se a proibição de colocação, junto às paredes exteriores do edifício, de elementos salientes que dificultem o acesso aos pontos de penetração do edifício, utilizáveis nos casos de operações de salvamento de pessoas e de combate a incêndios (vd. nesse sentido art. 5.º, n.º 1, do mesmo diploma).

34. Não posso deixar de considerar a inadmissibilidade de encerramento de uma porta exterior de acesso ao logradouro com a construção de umas escadas por terceiro.

35. A segurança da construção, já não na vertente da segurança contra incêndios, mas na perspectiva da sua solidez, igualmente parece descurada. Não deverá perder-se de vista o disposto no art. 128.º do RGEU, o qual estatui que “as edificações serão delineadas e construídas de forma a ficar sempre assegurada a sua solidez, e serão permanentemente mantidas em estado de não poderem constituir perigo para a segurança pública e dos seus ocupantes ou para a dos prédios vizinhos”.

36. Não posso deixar de notar que em boa parte se mostra justificada a reclamação apresentada, na medida em que o projecto aprovado – o qual não mereceu objecções por parte dos vizinhos – contemplava o afastamento das escadas relativamente ao prédio e ao vão de porta da fachada tardoz, o que reflecte a ponderação dos interesses e direitos agora invocados.

37. Em conclusão, não sendo exercido o poder de legalização a posteriori (art. 167.º do RGEU), a discricionariedade optativa do art. 165.º do mesmo diploma legal – entre ordenar a demolição ou legalizar – fica reduzida a um poder-dever de ordenar a demolição. Neste caso, não poderão descurar-se as regras procedimentais e garantísticas contidas no Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio, que estabelece o regime de execução das ordens de embargo, de demolição e de reposição do terreno nas condições em que se encontrava antes do início das obras.

38. Chegados aqui, uma advertência: a legalização da obra não se presume. Como escreve Cláudio Monteiro, “a Administração pode pura e simplesmente tolerar a existência da obra ilegal, limitando-se a não intervir enquanto isso não se revelar necessário ou conveniente. Em princípio, a obra não é implicitamente legalizada pelo facto de ser tolerada por um período mais ou menos longo, não prescrevendo o poder administrativo de ordenar a sua demolição. A competência administrativa é, como se sabe, imprescritível” (cfr. O Embargo e a Demolição de Obras no Direito do Urbanismo, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas, Faculdade de Direito de Lisboa, polic., 1995, p. 163).

39. E permito-me uma outra advertência: o prejuízo económico que possa vir a ser invocado pelo infractor (vg. custos da demolição e reconstrução) não colhe, tratando-se de obra não autorizada. Nesta situação, não será de reconhecer uma confiança legítima na estabilidade do investimento feito na obra (neste sentido, MONTEIRO, Cláudio, ob. cit., p. 153), pelo que não tal constituirá motivo válido e atendível de oposição à demolição.

40. Todos estes aspectos merecem a ponderação de V.ª Ex.ª, Senhor Presidente da Câmara Municipal de Abrantes, afastados os argumentos que basearam a abstenção da requerida intervenção camarária. Assim sendo, e não devendo nem podendo o Provedor de Justiça substituir-se à Administração Pública no exercício dos poderes que lhe estão legalmente cometidos para a prossecução dos fins de interesse público reflectidos, neste caso, nas atribuições municipais, terá V.ª Ex.ª de actuar no âmbito das competências subordinadas à salvaguarda da legalidade urbanística.

De acordo com o que ficou exposto,RECOMENDO:

Que V.ª Ex.ª avalie, tome posição e decida sobre a viabilidade de legalizar a obra edificada em desconformidade com o projecto de arquitectura apresentado e aprovado por essa Câmara Municipal, nos termos e para os efeitos do art. 167.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1958, e ordene a sua demolição, caso conclua pela inviabilidade, no exercício do poder que lhe é conferido pelo disposto no art. 58.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro e no art. 53.º, n.º 2, alínea l), do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março (Lei das Autarquias Locais), cumprindo, para o efeito, o procedimento disciplinado no Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel