Ministro das Finanças
Número:24/B/97
Processo:P-23/95
Data:22.12.1997
Área: A1

Assunto:RESPONSABILIDADE CIVIL – SAÚDE – TRANSPLANTE DE ORGÃOS E TECIDOS – DADOR VIVO – ACTIVIDADE SEGURADORA – MEDIDA LEGISLATIVA.

Sequência: Não Acatada

I-Exposição de Motivos

1. A Lei n.º 12/93, de 22 de Abril, regula a colheita de órgãos e tecidos de origem humana.

2. No seu art. 9º, a referida lei dispõe que o dador tem direito a assistência médica até ao completo restabelecimento e a ser indemnizado pelos danos sofridos, independentemente de culpa (n.º 1), para o que deve ser criado um seguro obrigatório do dador, suportado pelos estabelecimentos hospitalares, públicos ou privados onde se efectue a colheita dos órgãos ou tecidos (n.º 2).

3. A formulação utilizada pela lei no que toca ao seguro obrigatório do dador deixa claro que a efectivação da solução encontrada para a protecção do dador depende de regulamentação ulterior, que crie o referido seguro e garanta a disponibilização pelas seguradoras.

4. Com efeito, sendo o seguro em causa obrigatório, não poderá o Estado confiar ao livre funcionamento do mercado segurador e à iniciativa económica (privada ou pública) a disponibilização do produto, sob pena de, verificando-se desinteresse de todos os operadores da actividade seguradora em comercializá-lo, se frustrar a intenção do legislador, com as consequências de, por um lado, os estabelecimentos hospitalares que praticam os actos médicos de colheita de órgãos e tecidos humanos em dadores vivos se verem impossibilitados de cumprir a lei, e por outro – e mais importante -, resultar ineficaz a protecção concedida pela lei à situação do dador vivo.

5. Assim, determinei a abertura de processo com vista a reunir os elementos necessários a uma tomada de posição que contribuísse para desbloquear esta situação, conferindo plena eficácia à norma contida no art. 9º, n.º 2, da Lei n.º 12/93, por forma a serem atingidos os objectivos por esta prosseguidos: a cobertura dos riscos que o dador vivo enfrenta aquando da colheita dos seus órgãos ou dos seus tecidos.

6. Para a instrução do referido processo, e dando cumprimento ao dever de audição prévia contido no art. 34º do Estatuto do Provedor de Justiça, solicitei a pronúncia de Vossa Excelência, através do ofício n.º …, tendo solicitado na mesma data ao Instituto de Seguros de Portugal, através do ofício n.º …, informações sobre a disponibilização do seguro obrigatório do dador em Portugal.

7. Respondeu o Instituto de Seguros de Portugal, em 14.03.96, informando ter, para o efeito, contactado a Associação Portuguesa de Seguradoras, por quem foi transmitido que “o risco em causa faz parte do rol de exclusões absolutas constantes dos tratados de resseguro, pelo que não vislumbramos grandes possibilidades das seguradoras garantirem a sua cobertura”. Foi ainda referido ter sido solicitada a colaboração da Direcção-Geral de Saúde para analisar a problemática em causa, tendo especialmente em vista a obtenção de uma avaliação estatística do risco e uma melhor definição do âmbito das garantias.

8. Voltou ao assunto o Senhor Chefe de Gabinete de Vossa Excelência, por ofício de 17.02.97, através do qual dava a conhecer a posição actualizada do Instituto de Seguros de Portugal. Do seu teor se conclui que, “sendo praticamente inviável o recurso ao seguro privado, resta em nossa opinião, como forma de ultrapassar o problema, a criação de um fundo público com receitas actuarialmente calculadas e garantido pelo Estado”.

9. A protecção do dador vivo impõe-se como um dos objectivos basilares da maioria dos regimes jurídicos da colheita de órgãos e tecidos adoptados pelos diversos ordenamentos.

10. Com efeito, o Estado não pode ser indiferente à situação daqueles que disponibilizam os seus órgãos e tecidos para garantir a vida ou a saúde de terceiros, consentindo numa lesão do seu direito à integridade física e pondo em risco a sua saúde. Para mais, quando esse consentimento se encontra necessariamente imbuído de um espírito de liberalidade, dado que o princípio da gratuitidade encontra consagração na maioria dos ordenamentos jurídicos – cfr., no caso português, o art. 5º da Lei n.º 12/93.

11. O direito comparado faculta-nos exemplos de garantias empenhadas na protecção de dadores. Assim, no art. 17º da Lei argentina de 24.03.93 estabelece-se que “as faltas em que incorra o dador, por motivo da ablação, ao seu trabalho e estudos, assim como a situação superveniente à mesma, reger-se-ão pelas disposições que sobre protecção de doenças e acidentes involuntários estabeleçam os ordenamentos legais, convenções colectivas ou estatutos que regulam a actividade do dador, tomando-se sempre em caso de dúvida a disposição que lhe seja mais favorável”.

12. Quanto ao ordenamento jurídico espanhol, o art. 62º da Lei n.º 25/1990, de 20 de Dezembro, que não se refere à situação dos dadores vivos de órgãos e tecidos, mas às consequências que possam advir para aqueles que se sujeitam a ensaios clínicos de produtos em fase de investigação clínica ou para novas indicações de medicamentos já autorizados, obriga à celebração de um seguro destinado a proteger os sujeitos do ensaio.

13. A previsão de um seguro obrigatório de dador não é, pois, a única forma de salvaguardar os direitos dos dadores vivos. Mas é certo que ao Estado caberá o papel determinante na criação das condições para a realização dos transplantes que permita optimizar os benefícios daí advenientes para a comunidade, e minimizar os prejuízos que dessas operações possam resultar, não só por imperativo ético, mas também para incentivar a dádiva de órgãos. Como escreve Víctor Gorostiaga, a cobertura dos riscos “habrá de ser asumida necesariamente por el Estado, bien através de la Seguridad Social bien mediante la suscripción de un seguro específico” (Extracción y transplante de órganos y tejidos humanos, Madrid, 1996, p. 256).

14. Desta forma, pode considerar-se que a instituição de um seguro obrigatório de dador, a suportar pelos estabelecimentos hospitalares que realizem a colheita dos órgãos ou tecidos, se afigura como uma solução adequada a assegurar a protecção dos dadores vivos. E, tendo sido a solução adoptada pela Lei n.º 12/93, no seu art. 9º, n.º 2, importa conferir-lhe exequibilidade.

15. Não é, aliás, o único caso de seguro obrigatório admitido na ordem jurídica portuguesa. Também no âmbito da utilização de veículos automóveis encontramos consagrado um seguro obrigatório (cfr. art. 1º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro), que impende sobre o proprietário da viatura, prevendo a lei mecanismos para impor a celebração dos contratos de seguro quando as seguradoras se recusem a fazê-lo: o Instituto de Seguros de Portugal obrigará uma seguradora a aceitar o seguro, sob pena de lhe ser suspensa a exploração do ramo “Automóvel” durante um determinado período (art. 11º do Decreto-Lei n.º 522/85).

16. A omissão de medida que concretize a disposição legal redunda em deixar desprotegidos os dadores e pode dificultar a intervenção dos estabelecimentos hospitalares, públicos e privados, que procedam às intervenções médicas de colheita de órgãos e tecidos.

Em face do exposto,RECOMENDO:

A Vossa Excelência que se digne ponderar iniciativa legislativa com vista à regulamentação do art. 9º, n.º 2, da Lei n.º 12/93, de 22 de Abril, por forma a conferir exequibilidade ao seguro obrigatório de dador com cobertura de todos os riscos ocasionados pela colheita de órgãos e tecidos em dadores vivos e garantia da sua disponibilização aos estabelecimentos hospitalares que efectuem a colheita dos órgãos ou tecidos, admitindo-se como modelo de referência o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel