Exm.º Senhor
Presidente da Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra
Número:45/A/96
Processo:R-2866/93
Data:11.04.1996
Área: A1

Assunto:URBANISMO E OBRAS – ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO – RESERVA ECOLÓGICA NACIONAL – DEMOLIÇÃO – PODER VINCULADO – PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Sequência:Sem resposta.

I-Exposição de Motivos

1. Foi apresentada reclamação na Provedoria de Justiça relativa à construção de uma oficina de carpintaria na aldeia do Machialinho, concelho de Pampilhosa da Serra.

2. A reclamação incidia sobre a localização da unidade industrial em causa – junto a casa de habitação e situada em zona residencial – e sobre a legalidade da sua construção – alegadamente não licenciada e sujeita a uma ordem de embargo, não respeitada -, apontando os prejuízos para a saúde e ambiente decorrentes da futura entrada em funcionamento da oficina de carpintaria reclamada, caso viesse a merecer aprovação.

3. No decurso da instrução do processo referenciado em epígrafe, foram solicitados esclarecimentos à Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra através dos ofícios n.º …, de … e n.º …, de … (de que se junta cópia, em anexo), os quais mereceram respectivamente as respostas constantes dos ofícios n.º …, de … e n.º …, de … (vd. cópias em anexo). Por seu turno, a Comissão de Coordenação da Região Centro veio prestar informações sobre o assunto nos termos do ofício n.º …, de … (vd. cópia em anexo).

Em síntese, foi apurado o seguinte:

A. O Senhor… solicitou à Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra a realização de trabalhos de desaterro no local de construção da futura carpintaria, tendo a Câmara decidido favoravelmente em reunião de 19 de Janeiro de 1993 e, na sequência dessa deliberação, procedido aos referidos trabalhos.

B. Em 13 de Julho de 1993, o mesmo requereu “a construção de um barracão com a área de 300 m2”.

C. Os elementos relativos à unidade industrial remetidos à Comissão de Coordenação da Região do Centro, pela sua insuficiência, não chegaram a merecer uma apreciação, tendo sido desfavorável o parecer quanto à localização da indústria (cfr. cópia do ofício n.º…, e seus anexos).

D. O interessado desistiu do pedido (relativo a uma carpintaria com uma potência a instalar de 26,6 kVA) e formulou um novo pedido de aprovação da localização de uma carpintaria em unidade com potência a instalar igual ou inferior a 9,9 kVA.

E. Entendeu a Comissão de Coordenação Regional que tratando-se de uma unidade industrial da classe “D” (nos termos da classificação constante da tabela anexa à Portaria n.º 744-B/93, de 18 de Agosto) não era necessária a certidão de localização, devolvendo os elementos recebidos.

F. O requerente nunca formulou o pedido de licenciamento junto da competente Direcção Regional do Ministério da Indústria e Energia (entidade coordenadora).

G. As obras de construção do edifício foram entretanto iniciadas, sem o prévio licenciamento municipal.

H. A oposição de moradores da aldeia do Machialinho e a falta de licença de construção motivaram a ordem de embargo (“suspensão”) das obras, de que foi dado conhecimento ao dono dessas obras através do ofício n.º …, de 7 de Setembro de 1993.

I. Ainda nesse mês de Setembro de 1993 os serviços camarários de fiscalização e elementos da Guarda Nacional Republicana, a solicitação da Câmara, confirmaram que as obras haviam parado.

J. Contudo as mesmas foram retomadas e encontram-se concluídas, o que igualmente merece confirmação dessa Câmara, estando “toda a área correspondente à sua implantação impermeabilizada” (cfr. informação junta ao ofício n.º …, ponto 1 da Conclusão), pese embora não tenha havido até à data pedido para aprovação da sua localização ou do projecto de construção (cfr. ponto 6, do ofício n.º …).

L. A carpintaria não se encontra presentemente em laboração.

6. O procedimento descrito não encontra acolhimento na lei. Com efeito, a construção e laboração de uma unidade industrial carecem de prévio licenciamento, o qual só pode ser concedido se requerido por iniciativa do particular, devidamente tramitado e na sequência de uma ponderação que permita aferir do cumprimento das normas aplicáveis.

7. Ora, não foi isto que aconteceu.

8. Em termos procedimentais, a licença de obras para a instalação da oficina de carpintaria só pode ser concedida “desde que o industrial demonstre ter apresentado o pedido devidamente instruído à entidade coordenadora” (art.º 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 109/91, de 15 de Março, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 282/93, de 17 de Agosto), ou seja, à Delegação Regional da Indústria e Energia do Centro (vd. Tabela de classificação anexa à Portaria n.º 744-B/93, de 18 de Agosto, referência 203022).

9. O interessado nunca chegou a formular o pedido de licenciamento de instalação à entidade coordenadora, o que não se pode justificar por falta de conhecimento da legislação, pois, como se sabe, “a ignorância da lei não aproveita a ninguém” (vd. art.º 6.º, do Código Civil).

10. Assim, não poderia ter sido emitida a licença de construção. Aliás, não o foi.

11. No entanto, as obras de edificação em causa não se encontram excluídas do regime de licenciamento de obras particulares previsto no Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, que àquelas consagra em especial os seus artigos 49.º e 50.º

12. Como tal, o seu início estava condicionado à prévia aprovação do projecto de arquitectura pela Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra (art.º 1.º, n.º 2, do mesmo diploma), pelo que o mesmo consubstanciou uma ilegalidade, podendo ser instaurado processo de contra-ordenação (art.º 54.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro). Em bom rigor, os próprios trabalhos de desaterro não deveriam ter sido efectuados sem a aprovação daquele projecto.

13. Daí a ordem camarária de embargo das obras.

14. Contudo, o facto de presentemente as obras de construção se mostrarem concluídas revela o desrespeito pela citada ordem camarária, o que também é ilegal e passível de procedimento contra-ordenacional (art.º 54.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro).

15. Chegados a este ponto, sempre se poderia questionar a possibilidade de licenciamento ou de legalização das obras reclamadas.

16. A resposta é clara: o quadro jurídico aplicável não o permite.

17. Com efeito, a zona onde se situa a construção reclamada foi incluída na Reserva Ecológica Nacional, nos termos da Portaria n.º 1291/93, de 22 de Dezembro.

18. O Plano Director Municipal de Pampilhosa da Serra, ratificado nos termos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/94 (e publicado no Diário da República – I Série-B, n.º 43, de 21-2-1994), veio incluir toda a área da povoação do Machialinho na Reserva Ecológica Nacional.

19. Sendo que “nas áreas incluídas na REN são proibidas as acções de iniciativa pública ou privada que se traduzam em operações de loteamento, obras de urbanização, construção de edifícios, obras hidráulicas, vias de comunicação, aterros, escavações e destruição do coberto vegetal”, a menos que à data da entrada em vigor da portaria que delimita as áreas a incluir ou a excluir da REN aquelas acções já se encontrem previstas (as de iniciativa pública) ou autorizadas (as de iniciativa privada), como resulta da leitura do art.º 4.º, n.º 1 e 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março.

20. No caso vertente, a construção do edifício para instalação de uma indústria é manifestamente proibida pela disposição legal agora citada.

21. Só o não seria se à data da entrada em vigor da Portaria n.º 1291/93, de 22 de Dezembro (ou seja, em 27 de Dezembro de 1993) a sua construção estivesse licenciada.

22. Verifica-se naquele momento que não só não estava licenciada, como as obras entretanto iniciadas tinham sido embargadas.

23. Aliás, o licenciamento daquelas obras de construção dependia da prova feita pelo interessado de ter apresentado o pedido devidamente instruído à entidade coordenadora (a Delegação Regional da Indústria e Energia do Centro), constituindo a aprovação de localização (pela Comissão de Coordenação da Região do Centro) o preenchimento do requisito previsto no art.º 48.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, como prescreve o art.º 10.º, n.ºs 1 e 3, do Decreto-Lei n.º 109/91, de 15 de Março (com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 282/93, de 17 de Agosto).

24. Como se sabe, o pedido de aprovação de localização para uma unidade industrial de carpintaria com uma potência a instalar de 26,6 kWA foi indeferido pela Comissão de Coordenação Regional, não tendo sido requerido o licenciamento da unidade industrial à entidade coordenadora. Pelo exposto, a Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra não poderia ter licenciado as obras de construção em causa à data da entrada em vigor da citada Portaria n.º 1291/93, sob pena de nulidade do acto de licenciamento (art.º 52.º, n.º 1, alínea a), conjugado com o art.º 48.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro).

25. De qualquer forma, o interessado veio a desistir do pedido formulado, tendo dado entrada na Comissão de Coordenação da Região do Centro novo pedido de autorização de localização para uma unidade de carpintaria com potência a instalar de 9,9 kWA registado sob o n.º 100844 em 11.03.94, iniciando-se o procedimento de licenciamento da unidade industrial.

26. Independentemente de se averiguar qual a entidade competente para a requerida aprovação ou mesmo se esta seria exigível, dado tratar-se de um estabelecimento industrial da classe “D”, sempre em sede de licenciamento de obras a localização e implantação do edifício teriam de ser ponderadas.

27. Note-se que neste momento já se encontrava em vigor a Portaria n.º 1291/93, de 22 de Dezembro, a qual sujeitou a zona de implantação do edifício ao regime da Reserva Ecológica Nacional.

28. Por força deste regime “são nulos e de nenhum efeito os actos administrativos” que autorizem, licenciem ou aprovem as acções proibidas nas áreas reservadas, entre as quais se contam a construção de edifícios (vd. art.º 15.º, do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março).

29. Assim, não poderia a Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra licenciar as obras de construção reclamadas.

30. Chegados aqui, ainda podemos distinguir dois momentos: até à entrada em vigor do Plano Director Municipal e após essa entrada em vigor.

31. Até à vigência do plano municipal, e se se considerasse que a projectada construção, pela sua natureza e dimensão, era insusceptível de prejudicar o equilíbrio ecológico daquela área (o que, a meu ver, tratando-se de uma unidade industrial, não se mostrava respeitado), poderia a Câmara Municipal solicitar à delegação regional competente do Ministério do Ambiente parecer quanto a essa excepção legal (cfr. art.º 4.º, n.ºs 3 a 7, do citado Decreto-Lei n.º 93/90). Não o fazendo ou decidindo o pedido de licenciamento em desacordo com o mencionado parecer, o acto de licenciamento das obras de construção era igualmente nulo, por força do disposto no art.º 15.º, do mesmo diploma.

32. Ora não foi esse o procedimento seguido.

33. A entrada em vigor do Plano Director Municipal de Pampilhosa da Serra, que veio especificamente demarcar as áreas do concelho integradas na Reserva Ecológica Nacional (art.º 10.º, do Decreto-Lei n.º 93/90), releva então para efeito de não prevalecer aquela excepção às proibições fixadas no art.º 4.º, n.º 1, do citado diploma legal.

34. Conclui-se assim, que as obras de construção reclamadas não podiam ser licenciadas.

35. Nem se diga que “dado que a análise do processo se reporta ao seu início (13 de Julho de 1993) não têm os serviços técnicos desta Câmara Municipal conhecimento de quaisquer restrições a nível de legislação quanto à ocupação deste solo pelo que, poderá esta Câmara Municipal emitir o Documento de Autorização de Localização, para o referido Edifício Industrial” (cfr. ponto 1 da Conclusão da informação anexa ao ofício n.º 3104, de 24.11.95)

36. Em primeiro lugar, porque a data de entrada do requerimento de licenciamento de uma construção releva apenas para averiguar das normas procedimentais aplicáveis, não podendo ser ignorado o regime material vigente no momento da apreciação do projecto a aprovar.
Isto só não é assim nos casos expressamente previstos na lei, de que temos exemplo o deferimento de um pedido de informação prévia relativa a um licenciamento, porquanto no prazo de um ano aquela decisão favorável é constitutiva de direitos para o particular e vinculativa para a Câmara Municipal, o que significa que mesmo ocorrendo uma alteração do regime aplicável, não pode merecer diferente decisão o futuro pedido de licenciamento (art.º 12.º, n.º 3 e 13.º, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro).

37. Em segundo lugar, porque não resulta dos elementos disponíveis que o “requerimento para construção de um barracão com 300 m2” tenha constituído um verdadeiro pedido de aprovação de um projecto de arquitectura, instruído nos termos do art.º 15.º, do Decreto-Lei n.º 445/91, a que acresce o facto de o interessado ter vindo a desistir do pedido originário com repercussão ao nível da classificação do estabelecimento industrial.

38. Em terceiro lugar, porque não poderia ter sido licenciada a construção sem se mostrarem cumpridos os requisitos de aprovação da localização e de licenciamento da própria unidade industrial, junto da entidade coordenadora, o que se ficou a dever à inércia do interessado.

39. Assim, resta considerar a possibilidade de legalização da construção efectuada à revelia do prévio e devido licenciamento municipal.

40. Não nos detemos no regime de legalização previsto no art.º 24.º, do Decreto-Lei n.º 109/91, de 15 de Março (com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 282/93), regulado nos termos do art.º 24.º, do Decreto Regulamentar n.º 25/93 e com o prazo alargado pelo artigo único do Decreto Regulamentar n.º 17/95, de 30 de Maio, porquanto o mesmo já não vigora actualmente.

41. Por seu turno, o art.º 40.º, do regulamento do Plano Director Municipal de Pampilhosa da Serra admite o licenciamento de novas unidades industriais das classes “C” e “D” em áreas residenciais, sem prejuízo das servidões a que se refere o seu Capítulo I, entre as quais se contam as relativas à Reserva Ecológica Nacional (art.º 4.º, alínea b)).

42. Como já se viu, o regime de inclusão na reserva ecológica nacional não permite o licenciamento de construções nas áreas abrangidas, como é o caso, sob pena de nulidade do acto de licenciamento (art.º 15.º, do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março).

43. O que é corroborado pelo disposto no art.º 8.º, do regulamento do Plano Director Municipal.

44. Pelo que o licenciamento/legalização da oficina de carpintaria reclamada, a concretizar-se, estaria inquinado por vício de violação de lei, gerador de nulidade do acto, não apenas nos termos do citado art.º 15.º, do Decreto-Lei n.º 93/90, como por aplicação do disposto no art.º 52.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro (com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro), relativo à desconformidade com as disposições do plano municipal vigente.

45. Aliás, o licenciamento municipal que viole o disposto em plano vigente pode constituir uma ilegalidade grave, determinante da perda de mandato ou da dissolução do órgão autárquico, nos termos do art.º 52.º, n.º 4, do mesmo diploma.

46. A esta situação reage o ordenamento jurídico com o poder conferido aos municípios de demolição da construção clandestina, quer por isso mesmo (art.º 58.º, do citado Decreto-Lei), quer por violar o regime da Reserva Ecológica Nacional (art.º 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março).

47. Poder esse que se revela, no presente caso, vinculado, por demonstrada a impossibilidade de legalização (art.º 167.º, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951).

48. O que me permite concluir que o exercício do poder de demolição é a única forma de reposição da legalidade urbanística no local, de salvaguarda dos valores ambientais ameaçados e de garantia da qualidade de vida dos moradores na aldeia do Machialinho.

II-Conclusões

1. A edificação reclamada é ilegal.

2. O acto administrativo que admitisse a sua validação seria sempre nulo e de nenhum efeito, para além da aplicação das sanções a que a sua prática daria lugar.

3. Impõe o princípio da legalidade que os competentes órgãos da Administração Pública exerçam todos os poderes que lhes são conferidos para repor a legalidade quando infringida.
De acordo com o que ficou exposto, e em nome da atribuição constitucional que me é conferida no sentido da prevenção e reparação de injustiças (art.º 23.º, n.º 1, CRP), entendo fazer uso dos poderes que me são conferidos pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), no seu art.º 20.º, n.º 1, alínea a), e, como tal,RECOMENDO:

O exercício por V.ª Ex.ª do poder que lhe é conferido pelo que vem disposto no art.º 53.º, n.º 2, alínea l), do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março, no art.º 58.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro e no art.º 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março (com a redacção dada pelo enunciado no art.º 1.º, do Decreto-Lei n.º 213/92, de 12 de Outubro), ordenando a demolição da edificação identificada e adoptando, para o efeito, o procedimento regulado pelo disposto no art.º 6.º, do Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel