Ministro da Administração Interna

C/C:Procurador-Geral da República

Número:38/A/96
Processo:P-7/96
Data:3.05.1996
Área: A5

Assunto:SEGURANÇA INTERNA – ABUSO DE AUTORIDADE – PSP – SANTO TIRSO – EMPRESA .

Sequência:Acatada

Por despacho de 23 de Fevereiro de 1996, determinei a abertura de inquérito, nos termos do disposto nos artigos 24.º e 21.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, às circunstâncias que rodearam a intervenção da Polícia de Segurança Pública, em 22 de Fevereiro do mesmo ano, nas instalações da empresa …, em Santo Tirso.
É dos resultados desse inquérito que venho dar conta a Vossa Excelência, com base nos quais entendi dever formular as recomendações finais.

I

O Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso solicitou a colaboração da Policia de Segurança Pública (PSP) para a realização de diligências – entrega de equipamentos – a levar a efeito nas instalações da empresa …, sita em Santa Cristina do Couto, Santo Tirso.
Em 28 de Dezembro de 1995, dera entrada no 3.º Juízo Cível do referido Tribunal, carta precatória extraída de processo do 13.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, na qual se deprecava a apreensão imediata de equipamentos, devidamente identificados, que se encontram na posse da referida empresa e a entrega dos mesmos à Requerente “Sonfinloc – Sociedade Financeira de Locação, SA”. De acordo com as informações obtidas, os equipamentos em questão são máquinas de grande volume e sofisticada tecnologia.
Apurou-se que a colaboração de quatro elementos da PSP começou por ser solicitada, pelo 3.º Juízo do Tribunal de Santo Tirso, no passado dia 26 de Janeiro, tendo em consideração que, naquele mesmo dia, não tinha sido possível aos funcionários do Tribunal e ao pessoal técnico indicado para proceder ao desmantelamento das máquinas, realizar a diligência ordenada pelo Tribunal, quer pela atitude da gerência da empresa, que não lhes permitiu a entrada no edifício, quer pela resistência manifestada pela generalidade dos trabalhadores.
A PSP teria como missão, segundo determinação judicial, “garantir o bom andamento dos trabalhos na diligência de apreensão e entrega judicial de bens”.
Novas tentativas de apreensão do equipamento foram levadas a cabo, com a colaboração da PSP, em 29 de Janeiro e 1 de Fevereiro, mantendo-se a oposição por parte dos trabalhadores da empresa à realização da diligência ordenada pelo Tribunal, bloqueando os pontos de acesso ao local onde o equipamento se encontrava e concentrando-se junto da portaria.

De acordo com as informações prestadas, o Senhor Comandante da Esquadra da PSP de Santo Tirso concluiu, em ambas as tentativas, que não existiam condições para a efectivação da diligência, devido à escassez de elementos policiais face à oposição existente.
A reacção dos trabalhadores, muito embora seja indiscutível a ile�galidade de qualquer conduta que se traduza em obstáculos ao cum�primento das deprecadas, encontra explicação na alegada essencialidade do equipamento em questão para o funcionamento da fábrica. É que não havendo na empresa… problemas de salários em atraso e parecendo desconhecer os trabalhadores a grave situação patrimonial da empresa, reagiram estes com incompreensão e alguma indignação à ameaça da eventual paralisação da fábrica, fonte da sua subsistência, resultante da remoção dos equipamentos em questão. Entretanto, no 1.º Juízo do Tribunal da Comarca de Santo Tirso, deu entrada para cumprimento de uma decisão judicial de entrega de equipamentos devi�damente identificados, uma outra carta precatória extraída de providência cautelar, do 5.º Juízo do Tribunal Cível da Comarca do Porto, em que é Requerente a empresa… e Requerida a empresa ….

Com vista ao cumprimento daquela decisão judicial, no início de Fevereiro, o 1.º Juízo do Tribunal de Santo Tirso solicitou à PSP que providenciasse no sentido de ser colocada à disposição do Tribunal uma força policial, “a fim de colaborar e manter a “ordem pública”, em diligência que estaria marcada para o dia 5 daquele mês.

Atenta a previsível oposição dos trabalhadores da empresa ao cumprimento da decisão judicial de entrega dos bens, a PSP informou o 1.º Juízo que, para execução da referida diligência, seria necessário um prazo mais dilatado “para planeamento, deslocação logística e actuação das forças consideradas necessárias”. No seguimento desta informação, no dia 2 de Fevereiro, o Tribunal solicitou ao Comando Metropolitano da PSP do Porto que informasse o dia e hora em que seria então possível concretizar a diligência adiada, informando que os autos em questão eram “considerados de carácter urgente”.

Por sua vez, o 3.º Juízo do Tribunal da Comarca de Santo Tirso, no dia 9 de Fevereiro, solicitou ao Senhor Comandante da PSP daquela cidade, tendo em conta as dificuldades sentidas até ao momento na realização da diligência e, em consequência, as previsíveis, que informasse quando poderia coadjuvar os funcionários daquele Tribunal no levantamento das máquinas, atento o carácter urgente do processo. Determinou ainda que, caso fosse necessário, se procedesse ao arrombamento das portas.

Em resposta aos pedidos formulados por ambos os Juízos, o Comando Metropolitano da PSP do Porto informou que no dia 22 de Fevereiro teria à disposição as forças policiais para o efeito solicitadas.

Da análise dos relatórios da PSP e dos esclarecimentos prestados pelos respectivos Comandantes que directa ou indirectamente intervieram na execução das diligências a solicitadas pelo Tribunal e, ainda, do testemunho de representante da Comissão de Trabalhadores da empresa… verifica-se que foram promovidas diversas reuniões com vista a encontrar uma solução que, por via do diálogo, permitisse a resolução do conflito em causa.

Assim, desde finais do mês de Janeiro, o Senhor Comandante da Esquadra de Santo Tirso esteve reunido, diversas vezes, com representantes da Comissão de Trabalhadores da empresa… e com o Senhor Delegado do Sindicato da Indústria Têxtil, que insistentemente solicitaram o adiamento da diligência judicial.

No que respeita à Administração da empresa, nunca compareceu às referidas reuniões, comprometendo o encontro de uma solução. No entanto, no dia 9 de Fevereiro de 1996, em nome da empresa, foi dirigida exposição à esquadra da PSP de Santo Tirso, na qual se refere que a Polícia, “seguindo as ordens de um juiz tem tentado introduzir na empresa pessoas não identificadas para procederem à desmontagem de várias das nossas máquinas (…) este facto é grave e tem originado a revolta dos trabalhadores,..”. No seguimento desta ideia, refere-se ainda que “dada a firmeza demonstrada pelos trabalhadores em não permitirem a desmontagem das citadas máquinas vimos respeitosamente lembrar que uma possível tentativa de entrar pela força nas nossas instalações poderá originar graves confrontos, ferimentos e danos irreparáveis e consequências imprevisíveis”.
Tendo sido dado conhecimento do teor daquela exposição ao Comando Metropolitano da PSP do Porto, por despacho de 14.02.96 do seu Comandante, foi determinado que todas as diligências fossem efectuadas “com muito tacto e sensatez e, principalmente, na altura oportuna instruir devidamente todo o pessoal que venha a tomar parte na acção prevista para o dia 22 do corrente, no sentido de ser imprescindível muita serenidade, disciplina e paciência para que a diligência determinada pelo Tribunal decorra da forma o mais pacífica possível. Há que mentalizar todo o pessoal para estar preparado para uma eventual agressividade, fruto do desespero, com que poderá defrontar-se, a que teremos que “não responder”.
Por outro lado, o Comando da PSP do Porto assegura que tendo-se apercebido do “melindre e da complexidade da situação – remoção de máquinas essenciais ao funcionamento da fábrica, duração prevista para esta e consequências socialmente muito graves daí decorrentes” alertou o Governo Civil do Porto para o assunto, no final do mês de Janeiro, tendo desde essa altura permanecido as duas entidades em permanente contacto. Também a Câmara Municipal de Santo Tirso foi alertada para a situação.
Por ambos os Juízos do Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso foi designado o dia 22 de Fevereiro, pelas 10 horas, para efectivação da diligência de entrega.
De acordo com as informações obtidas, no dia 21 de Fevereiro, os representantes da Comissão de Trabalhadores da empresa e do Sindicato da Indústria Têxtil do Porto foram informados pela PSP, de que a efectivação da diligência ordenada pelo Tribunal poderia ter lugar a partir desse mesmo dia.
No dia designado pelo Tribunal para a diligência, aproximadamente às 9 horas e 30 minutos, chegou junto da empresa … uma força policial composta por dois pelotões operacionais, englobando, na sua totalidade, 69 agentes (1 Intendente, 1 Comissário, 2 Subcomissários, 6 Subchefes e 59 Guardas).
Os agentes que constituíam os referidos pelotões, de acordo com os esclarecimentos prestados pelo Comando Metropolitano da PSP do Porto, participavam regularmente em treino específico vocacionado para a intervenção em situações difíceis para as quais é essencial manter o auto-domínio e a disciplina.
Quando os funcionários do Tribunal chegaram ao local, por volta das 10 horas, verificaram que, apesar de estarem reunidos os meios necessários para efectivação das diligências, existia uma forte resistência à sua prossecução. Com efeito, de acordo com relatórios dos referidos funcionários, o portão principal da empresa “encontrava-se fechado e bloqueado por um veículo pesado” e junto àquele “centenas de trabalhadores manifestavam-se”, impedindo a entrada dos funcionários nas instalações. Pôr outro lado, o portão que dava acesso ao local onde estariam os equipamentos, encontrava-se fechado “a aloquete” e soldado e entre aquele portão e a entrada do edifício estavam estacionados dois camiões.
Entretanto, reunidos numa carrinha disponibilizada pela Polícia para o efeito, os representantes das empresas credoras apresentaram ao advogado da empresa … as condições que exigiam para a desistência da diligência em curso. Contudo, de acordo com informações prestadas pelo último, a empresa não tinha meios que permitissem a satisfação imediata daquelas propostas.
Não se teve conhecimento que tivesse estado presente na ocasião qualquer membro da administração da empresa.
Afirmam os funcionários judiciais e os agentes policiais que não foi possível estabelecer diálogo com os trabalhadores, de modo a convencê-los que deveriam desimpedir a entrada do edifício e permitir o cumprimento da diligência em questão. A este propósito, foi referido que o ruído provocado pela sirene da fábrica, tocando ininterruptamente, dificultava as tentativas de conversação.
Tendo em consideração as informações dos funcionários que tentavam executar a diligência, foi determinado pelo 1.º Juízo do Tribunal de Santo Tirso a evacuação necessária dos trabalhadores “com os cuidados devidos e sem esquecer as legais disposições penais”, para que pudesse ser efectivada a diligência deprecada.
Da parte da tarde, cerca das 14 horas e 30 minutos, esgotadas as possibilidades de diálogo entre as empresas locadoras e a empresa…e tendo-se revelado infrutíferas as tentativas de diálogo com os trabalhadores, foi entendido que seria conveniente, para a prossecução da diligência, saltar o muro exterior ao edifício e, para o efeito, cortar a respectiva vedação.
Conforme o testemunho dos funcionários judiciais, o Relatório elaborado pela PSP e as imagens televisivas, no momento em que se estava a cortar a vedação, sob a protecção dos escudos dos agentes policiais, os trabalhadores lançaram água, através de uma mangueira, tendo molhado os funcionários e agentes policiais, tendo ainda sido atirado um tijolo, a partir do recinto exterior da fábrica, na mesma direcção.
Refere o relatório da PSP que “junto a um dos portões foi cortada a rede de vedação, para permitir a entrada de um pelotão” e ainda que “pelo extremo sul da vedação, entrou uma secção que subiu à cobertura da fábrica, de onde desalojou os trabalhadores que daí arremessavam pedras” tendo, no decurso desta última diligência, apreendido extintores de incêndio e detido “um dos trabalhadores que atirava pedras junto de um dos baldes com as mesmas”.
Nas imagens televisivas verifica-se que no decurso da acção de dispersão levada a cabo pela PSP, foram agredidos com bastão vários trabalhadores que se encontravam entre o muro e a porta do edifício.

Afirma a polícia que no decorrer daquela acção “era apedrejada quer pelas pessoas que se encontravam no arruamento da fábrica e que dispersavam, quer pôr pessoas que se encontravam na estrada”, o que não se consegue comprovar pelas imagens televisivas.
Entre os trabalhadores que vieram a ser atingidos com bastão encontravam-se, designadamente, um representante da Comissão de Trabalhadores da empresa … e o delegado do Sindicato da Indústria Têxtil do Porto, que tinham participado nas várias reuniões anteriormente referidas.
No que respeita ao primeiro, de acordo com as informações de um agente policial, era ele quem segurava a mangueira que antes fora utilizada para lançar água contra as forças policiais e os funcionários do Tribunal.
Além dos trabalhadores que foram atingidos pelos bastões dos agentes policiais, outros sofreram ferimentos, igualmente ligeiros.
Contudo, destaca-se, pelo grave estado de saúde em que ainda se encontra, o caso de um homem, de 66 anos, actualmente internado no Hospital de 5. João, no Porto. Sendo antigo trabalhador da empresa …, no dia 22 de Fevereiro encontrava-se entre os trabalhadores que protestavam contra a efectivação da diligência judicial.
Junto do Hospital de S. João, apurou-se que aquele antigo trabalhador, atendido inicialmente no Hospital de Santo Tirso, onde foi reanimado após ter dado entrada com insuficiência cardio-respiratória, “terá tido queda ou agressão” da qual resultou uma ferida contuso-occipital superficial. De acordo com os relatórios médicos, a referida ferida, sem fractura nem sinais internos, não tem tradução na T.A.C. cerebral efectuada. Considerando que se trata de doente que tem uma patologia cardíaca prévia, entre outras complicações de saúde, não foi possível estabelecer alguma relação entre a queda ou agressão que sofreu e o seu actual estado clínico.

A esse respeito informou o Comando da PSP do Porto que nenhum dos agentes policiais envolvidos na operação se recorda de o ter agredido e, pôr outro lado, o doente em questão, nos dias seguintes aos incidentes, não se encontrava capaz de prestar declarações. Além dos trabalhadores, quatro agentes da PSP, segundo esta, terão sofrido ferimentos ligeiros. No que respeita aos meios utilizados para a dispersão dos trabalhadores, a PSP referiu que o uso de bastões encontra justificação em motivos de ordem táctica, nomeadamente atendendo à imprevisibilidade do desenrolar dos acontecimentos e ao facto de estarem estacionados camiões junto do portão, que impediam a visibilidade dos agentes no decurso da operação.
Todavia, a PSP refere que a acção de dispersão se processou com alguma dificuldade, motivo pelo qual foram lançados 4 disparos, através de uma arma tendo pôr munição bolas de borracha. Os disparos terão sido efectuados com meros propósitos de dissuasão e a uma distância incapaz de provocar qualquer dano.

Quando os técnicos indicados pelas empresas locadoras tentaram entrar no edifício da fábrica para efectivar a diligência ordenada pelo Tribunal, verificaram que o portão de acesso ao interior estava fechado e soldado. Partiram um vidro, para que um dos técnicos indicados para o desmantelamento das máquinas averiguasse qual o estado interior do portão e, nesse momento, terá sido lançado, do interior do edifício, um objecto que bateu violentamente no portão, bem como pó químico dos extintores de incêndio, o que determinou que os agentes policiais tivessem que lançar granadas de gás lacrimogéneo, para o interior da fábrica.
Posteriormente, o portão de acesso ao edifício foi arrombado e cerca das 17 horas os funcionários do Tribunal, os técnicos indicados pela requerente e as forças policiais, entraram no interior da fábrica e procederam à localização e reconhecimento das máquinas, dificultada e demorada “por falta de luz, pelo efeito do gás lacrimogéneo e pelas dimensões das instalações da fábrica”, de acordo com o relato dos mesmos funcionários.

II

O artigo 272.º, n.º 1 da Constituição dispõe ter a polícia por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos.
Na concretização das missões assinaladas, dispõe o n.º 2 do mesmo preceito que as medidas de polícia que a lei estabelecer não devem ser utilizadas para além do estritamente necessário e estatui ainda o n.º 3 que no quadro da sua função de prevenção do crime, deve a polícia respeitar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Na mesma linha, o Decreto-Lei n.º 321/94, de 29 de Dezembro (Lei Orgânica da Polícia de Segurança Pública), prescreve, no n.º 3 do artigo 9.º, que a PSP, para a prossecução das missões que lhe estão atribuídas não pode impor restrições ou fazer uso dos meios de coerção para além do estritamente necessário e, no n.º 4, alínea b), do mesmo artigo, considera os meios coercivos a utilizar como instrumentos de “ultima ratio”, de que se socorrerá apenas e na medida em que tal seja necessário “para vencer resistência à execução de um serviço no exercício das suas funções e manter o princípio da autoridade, depois de ter feito aos resistentes intimação formal de obediência e esgotados que tenham sido quaisquer outros meios para o conseguir”.

Parece poder retirar-se dos preceitos constitucionais e legais citados um conjunto de asserções que poderão resumir-se da seguinte forma:
a) A lei – entendida em sentido amplo e englobando o texto constitucional – é o fundamento, o limite e o critério da actuação da polícia.
b) A polícia deve, no quadro da sua missão respeitar os direitos dos cidadãos individualmente considerados.
c) As medidas de polícia devem obedecer aos requisitos da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiariedade. Reafirma-se aqui o princípio constitucional fundamental em matéria de actos públicos potencialmente lesivos de direitos fundamentais e que consiste em que eles só devem ir até onde seja imprescindível para se assegurar o interesse público em causa, sacrificando no mínimo os direitos dos cidadãos.
Daqui se infere a exigência de adequação entre os meios a empregar e o fim tido em vista e a proibição de utilização de medidas gravosas quando medidas mais brandas se revelem suficientes.

Daqui se retira, igualmente, a permissão do uso da força como meio preventivo ou defensivo e a sua consequente proibição quando tal uso assumir um carácter punitivo. Com efeito, à polícia caberá, essencialmente, a garantia da ordem e da segurança públicas através de medidas de natureza preventiva, reservando a Constituição e a lei a outras entidades as missões que revistam um carácter sancionatório.
d) A polícia deve actuar sobre os perturbadores da ordem e não sobre aqueles que legitimamente se situem no exercício dos seus direitos. Relativamente a estes, a actuação da polícia que se concretize através da utilização de meios coercivos não encontra justificação fáctica ou legal.
e) A polícia deve adaptar a utilização dos meios que a lei lhe confere às situações concretas que se lhe deparem no quadro da sua actuação. No respeito dos critérios da necessidade, da proporcionalidade, e da subsidiariedade atrás referidos, é obrigação da polícia proceder, em cada momento, à escolha das formas de intervenção mais adequadas à danosidade dos comportamentos objecto da sua reacção.
Não é indiferente, neste contexto, o facto de, embora cumprindo a determinação constitucional e legal de actuar para salvaguardar a ordem e a segurança públicas ou para assegurar o respeito e o cumprimento da lei, dever a polícia levar em linha de conta a medida de cada perturbação a que tem de pôr fim e actuar tomando em consideração o grau dessa perturbação, a qualidade dos seus autores e as circunstâncias que a rodeiam.

III

Os acontecimentos ocorridos em Santo Tirso, no dia 22 de Fevereiro de 1996, nas instalações da empresa …, encontram-se ligados à exteriorização por parte de trabalhadores dessa empresa de direitos constitucionalmente consagrados, como o direito de manifestação ou o direito ao trabalho.
Sendo inquestionável não se reputar legítima a utilização da força para pretensamente repor a ordem e a tranquilidade públicas quando se estiver perante o mero exercício de direitos que a lei prevê e salvaguarda, constata-se, no entanto, que originada embora por preocupações de natureza laboral e social, pode a conduta dos trabalhadores da empresa… naquela data, consubstanciar um comportamento ilegal e susceptível de enquadramento penal.

Com efeito, é crime à luz da lei, e como tal punido pelo artigo 347.º do Código Penal, o facto de empregar violência ou ameaça grave contra funcionário ou membro das forças de segurança para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções. Da mesma forma comete um crime, previsto e punido no artigo 348.º do Código Penal, quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente.
Ainda que se possa argumentar serem aqueles actos socialmente justificáveis pelo clima emocional que rodeava a situação laboral e social vivida pelos trabalhadores da empresa…., convencidos da indispensabilidade dos bens objecto da providência cautelar para a sobrevivência da empresa, não o são no entanto à luz da lei.

A verificação de ocorrências susceptíveis de censura penal e perturbadoras da ordem e tranquilidade públicas justifica a intervenção da polícia com o objectivo de repor a legalidade. Resulta aliás da lei que a PSP se encontra vinculada a corresponder, salvo circunstâncias excepcionais devidamente tipificadas, às solicitações que lhe sejam colocadas pelos tribunais para o cumprimento de actos ou decisões destes, apenas se compreendendo na sua disponibilidade e responsabilidade a adopção das medidas e a utilização dos meios necessários ao seu desempenho (artigo 12.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 321/94 de 29 de Dezembro).
Impõe-se, porém, como atrás foi salientado, que essa intervenção seja proporcional e se contenha dentro do estritamente necessário, num quadro de normalidade democrática, à realização desse fim.
É inquestionável que à PSP outra conduta não caberia do que equacionar os meios e os métodos de levar a bom termo a determinação judicial: em causa e de procurar desenvolver os esforços tidos como necessários para o seu normal cumprimento. Pôde o Provedor de Justiça verificar que a PSP, colocada perante uma situação real de deliberada obstrução à realização da justiça, que se concretizou ao longo de várias semanas, levou até às últimas consequências e com exaustão dos meios de persuasão e de negociação, a tentativa de pôr cobro a esta violação.
Esgotadas que foram as possibilidades de resolução pacífica do conflito em presença, encontrava-se a PSP, no caso presente, legitimada para delinear e pôr em prática os planos de acção adequados a fazer cumprir a lei. Na medida em que tal se revelasse estritamente necessário, poderia a PSP, tendo em vista o fim perseguido, socorrer-se do uso da força.

Tendo tido oportunidade de recolher depoimentos dos principais intervenientes nos acontecimentos ocorridos em Santo Tirso, no dia 22 de Fevereiro, nas instalações da empresa …, e dispondo das imagens televisivas que se reportam a esses acontecimentos, que sujeitei a detalhado visionamento, pude constatar o seguinte:

1) Na medida em que se deparou à PSP uma atitude de deliberada obstrução ao cumprimento de determinação judicial, consubstanciada através de manifestações nesse sentido de trabalhadores da empresa e da colocação de obstáculos físicos (veículos pesados estacionados em frente dos portões de entrada e barras de soldadura nos portões) à entrada dos funcionários judiciais que tinham pôr missão proceder à apreensão dos bens em litígio, dispunha aquela força de segurança de legitimidade para, esgotadas as tentativas de pacificamente pôr fim àquela obstrução, actuar e entrar nas instalações da empresa “Abel Alves de Figueiredo” através dos meios mais adequados.

2) Não sendo ilegítimo o uso da força se ela se revelar estritamente necessária para garantir o cumprimento da lei, tal uso não deve, porém, assumir carácter punitivo, pôr não se compreender dentro das missões que se encontram constitucionalmente conferidas à polícia. Se não é de excluir que em circunstâncias muito excepcionais possa a PSP, ou qualquer outra força de segurança, socorrer-se de meios coercivos no seu desempenho, é de exigir, no entanto, que o faça, primacialmente, numa perspectiva preventiva e defensiva.

Das imagens que documentam a intervenção da PSP, ressalta sem margem para dúvidas que, pelo menos num momento preciso, terá a polícia excedido os deveres de contenção que lhe são exigíveis. Reporto-me, em concreto, ao facto de, pouco após se ter consumado a entrada no recinto exterior da empresa, um grupo de três agentes ter utilizado os bastões para agredir um conjunto de três pessoas que se encontravam isoladas relativamente aos restantes trabalhadores, entretanto afastados em debandada. A interpretação que faço daquelas imagens leva-me a concluir ter-se verificado, naquele momento, uma atitude de desforço, ilegítima e eticamente condenável, dirigida contra pessoas que porventura manifestaram maior protagonismo na acção de resistência ao cumprimento da lei. Ainda que se possa reputar como verdadeira esta última circunstância, tal não impede, decididamente, que a actuação daqueles agentes mereça, da minha parte, declarada censura.
Ouvidos que foram os responsáveis da PSP pela operação, sustentam estes que tal actuação se justificaria pôr razões de ordem táctica. Defendem ter-se tratado de procedimento adequado em função do tipo de intervenção, qualificado de “assalto”, e face ao perigo que representaria para a eficácia da operação permitir a permanência daquelas pessoas naquele local. Argumentam ainda com a necessidade de proceder à neutralização de possíveis opositores num espaço tido como vital e que permanecia relativamente oculto, dada a disposição dos veículos pesados que aí se encontravam.

Não posso, no entanto, subscrever tal tese, pôr me parecer excessivo o modo de reacção, ainda que fossem verdadeiros os motivos de preocupação manifestados pela polícia. Convirá não esquecer que a PSP tinha como opositores, naquele contexto, pessoas que nada fazia crer não serem trabalhadores da empresa “Abel Alves de Figueiredo”, que se encontravam desarmados e entre os quais se contavam inúmeras mulheres e idosos. Se é verdade, como aliás as imagens também patenteiam e como parece encontrar-se documentado pelas provas que a PSP recolheu no terreno, que alguns trabalhadores levaram a sua manifestação de protesto a extremos susceptíveis de reacção penal, através do arremesso de pedras, tijolos e outros objectos, não é menos verdade dispor a lei de mecanismos suficientes para reprimir tal tipo de comportamentos. À PSP caberia, sem dúvida, deter os seus autores e proceder à sua entrega às entidades para o efeito competentes.

3) Dos acontecimentos verificados em Santo Tirso no dia 22 de Fevereiro fez eco a comunicação social da existência de pessoas feridas entre os manifestantes. Segundo relatório elaborado pela PSP, ter-se-iam verificado igualmente feridos entre agentes daquela corporação.
No que concerne aos manifestantes feridos, não foi possível apurar haver uma relação directa e necessária entre os ferimentos ou perturbações de saúde de que foram vítimas e a actuação da polícia, na parte em que esta se reputa como ilegítima e excessiva.
Tendo-se verificado que um dos manifestantes foi transportado ao hospital em estado clínico considerado muito grave, com posterior entrada em coma, não podia, naturalmente, deixar de me preocupar com a tentativa de apurar em que circunstâncias aquele cidadão correra perigo de vida. Do inquérito sumário que conduzi, não pude, contudo, extrair conclusões seguras, pelas razões já expostas. Sei apenas que aquele cidadão possui uma ferida na cabeça cuja origem se desconhece, que não há conexão entre o seu estado de saúde e essa ferida e que possui uma história clínica recheada de graves complicações.
Sendo legítimas as suspeitas de que as circunstâncias que rodearam este infeliz episódio poderão ter natureza criminal, seja quem for o seu autor, ao Ministério Público competirá, se assim o entender necessário, proceder às averiguações tidas pôr necessárias, pôr dispor, para o efeito, das competências e dos meios de acção. Em face do que, nesta mesma data, transmitirei cópia desta Recomendação ao Meritíssimo Conselheiro Procurador-Geral da República para os efeitos que reputar convenientes.

Em Conclusão

1. A intervenção policial de 22 de Fevereiro de 1996 nas instalações da empresa …, em Santo Tirso, encontrava-se, na sua origem, legitimada por se destinar a assegurar o cumprimento de determinação judicial.
2. Pelo menos num momento concreto excederam alguns elementos da PSP, no decurso dessa intervenção, as regras que devem nortear toda a actuação policial e que se consubstanciam nos princípios da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiariedade, ao terem, em declarada atitude de desforço, agredido, com bastões, cidadãos.
3. Entendo dever realçar o esforço de mediação e de resolução pacífica da situação levado a cabo antes do início da intervenção policial.
4. Para estabelecer uma imputação subjectiva quanto aos factos de que resultaram danos físicos sobre as pessoas durante a intervenção policial, ao Ministério Público caberá, se assim o entender necessário, desenvolver as competentes averiguações. Em face do exposto e no uso das prerrogativas que a Constituição e a Lei me conferem,RECOMENDO:

1. Que a Polícia de Segurança Pública proceda, com urgência, a uma avaliação interna dos procedimentos adoptados pelas forças presentes em Santo Tirso, sendo abertos os processos de averiguações necessários ao esclarecimento da eventual responsabilidade dos agentes mencionados supra, com as consequências disciplinares a que se mostrarem adequadas.

2. Que a Polícia de Segurança Pública, à luz dos acontecimentos de Santo Tirso, estude, pondere e avalie as circunstâncias que justificam a intervenção das forças especiais que se compreendem na sua estrutura, com o objectivo de minimizar os riscos de envolvimento, em perturbações graves da ordem pública, de forças indevidamente preparadas para lhes fazer frente.

3. Que a Polícia de Segurança Pública, em casos semelhantes, utilize os meios legais, detendo os prevaricadores e apresentando-os às instituições judiciárias competentes, em detrimento da simples utilização da força.

4. Que sejam utilizados, em cada caso concreto, com obediência ao princípio da proporcionalidade, dos meios necessários, suficientes e adequados à situação e às possíveis dificuldades e ameaças enfrentadas, com emprego de armas ofensivas exclusivamente quando tal se mostre imprescindível à reposição da legalidade e à segurança da própria força policial.

5. Que a Polícia de Segurança Pública confira particular atenção aos aspectos de formação dos seus quadros, reforçando-a, tendo em conta as seguintes preocupações:
a) formação adequada dos agentes que em cada unidade de comando se encontrem vocacionados para intervir em situações de grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas, aproximando-a, na medida do possível, daquela que é ministrada às forças especiais da PSP e, em especial, ao seu Corpo de Intervenção;
b) consciencialização permanente de todos os seus agentes, através dos meios que repute convenientes, para as missões da polícia no quadro de uma sociedade democrática, para a dimensão ética da sua intervenção e para o imperioso dever de respeito dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;
c) aperfeiçoamento do treino de autodomínio, contenção e serenidade que são particularmente exigíveis a todos os agentes chamados a intervir em situações de conflito;
d) estudo e avaliação permanente dos métodos de acção de forças de segurança em sociedades que, como a nossa, confiram particular atenção à protecção da dignidade da pessoa humana.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel