Ministro do Equipamento Social, Planeamento e Administração do Território
Processo:R-2618/88
Número: 22/B/96
Data:17.10.1996
Área: A1

Assunto:CONSUMIDORES – CP (CAMINHOS DE FERRO) – CTT (CORREIOS) – ATRASOS E PERDAS – PREJUÍZO – RESPONSABILIDADE CIVIL – DEVER DE INDEMNIZAR.

Sequência:Parcialmente Acatada

Da norma contida no art. 19.º, n.º 1 da tarifa geral de transportes

I-Exposição de Motivos

A norma constante do art.º 19.º, n.º 1 da Tarifa Geral de Transportes (TGT) aprovada pela Portaria n.º 403/75, de 30 de Junho, alterada pela Portaria n.º 1160/80, de 31 de Dezembro desresponsabiliza a Caminhos de Ferro Portugueses, E.P. pelos danos causados aos passageiros em consequência de atrasos, supressão do comboios ou perdas de enlace.
Efectivamente, dispõe a norma legal em apreço que:
“O Caminho de Ferro não responde pelos danos causados aos passageiros resultantes de atrasos, supressão de comboios ou perdas de enlace”.
Assiste-se assim a uma desresponsabilização da Caminhos de Ferro Portugueses, E.P., no caso de se verificar quer a impossibilidade de cumprimento, quer a mora no cumprimento do contrato de transporte que celebra com os utentes. E prevê-se que esta desresponsabilização se verifique independentemente do motivo que determinou o incumprimento, ou seja, mesmo nos casos em que quer a impossibilidade de cumprimento quer a mora sejam devidos a dolo ou culpa grave do transportador, ou daqueles que operam sob as suas ordens e instruções (seus comitentes/trabalhadores). E esta desresponsabilização acontece relativamente a todos os tipos de danos (quer no âmbito da dicotomia danos morais/danos patrimoniais quer na dicotomia danos emergentes/lucros cessantes).

II-Fundamentos

A) Da sua inconstitucionalidade:
Tal estado de coisas parece-me estar em manifesta contradição com o propugnado no art.º 60.º da nossa Lei Fundamental.
Efectivamente, declara este preceito constitucional que constitui um direito fundamental do cidadão o direito à qualidade dos bens e serviços consumidos bem como à reparação dos danos.
Esta protecção do consumidor, entendido como a parte mais fraca na relação contratual, faz todo o sentido, maxime nos casos como o ora em apreço em que se assiste efectivamente a uma desigualdade gritante entre o poder de que está imbuído o fornecedor e aquele que tem o que recorre aos seus serviços.
De facto, o transporte ferroviário – serviço de interesse público – é prestado em regime de monopólio pelo que não tem o consumidor qualquer alternativa na escolha do transportador (efectivamente, como se sabe, no presente momento, a Caminhos de Ferro Portugueses, E. P. é a única empresa que explora esta modalidade de transporte).

Por seu turno, o utilizador, na grande maioria dos casos, e na prática, quando procede à aquisição do bilhete de transporte desconhece a existência de tal desresponsabilização por parte do transportador, limitando-se a aderir a um contrato cujas cláusulas, pré-elaboradas, sem possibilidade de alteração por via do acordo de vontades e nem sequer são devidamente publicitadas, pois o que se verifica é um imperfeito contrato imposto.

Embora correntemente conheça a designação de utente ou utilizador, o passageiro do caminho de ferro deve qualificar-se como consumidor, assim como a relação de transporte estabelecida há-de qualificar-se como de consumo (atente-se ainda que a CP, embora possua um substrato institucional público, as suas relações com terceiros inserem-se no domínio dos actos de gestão privada).
“Consumidor é o adquirente de bens de consumo ou de serviços destinados ao seu uso pessoal, familiar ou doméstico; portanto, uso privado (privaten verwendung, private use), não profissional” (Calvão da Silva, João – Protecção do Consumidor, in Direito das Empresas, INA, 1990, p. 126).

Segundo o autor citado, serve de escopo à protecção especial do consumidor, edificada sobre o direito privado que disciplina substancialmente as relações jurídicas de consumo, “a desigualdade de bargaining power entre o consumidor – homme faible e o profissional, normalmente uma empresa” (loc. cit., ob. cit, p. 107).
Tudo permite fazer crer, e nada o infirma, que é este o conceito de consumidor que se encontra sob a esfera de protecção da norma constitucional contida no art.º 60.º, n.º 1, onde é garantido o direito à reparação dos danos.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, ao anotarem o citado preceito, não hesitam em qualificar o direito à reparação de danos causados a consumidores como um direito com análoga natureza aos direitos liberdades e garantias para o efeito de beneficiar do regime destes últimos (Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, Coimbra, p. 323).
E não se vislumbra que a norma jurídica em apreço possa ser justificada pela previsão constante dos n.º 2 e 3 do art.º 18.º da CRP.

De facto, em primeiro lugar, assiste-se, no caso vertente, ao puro sacrifício de um direito constitucionalmente protegido, por motivos que parecem totalmente arbitrários, já que não se vislumbra qual o direito fundamental ou outro direito ou princípio constitucional – expresso ou implícito -, que a norma contida no n.º 1 do art.º 19.º da TGT pretende conjugar, compatibilizar ou proteger.

Em segundo, o preceito em apreço diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial do direito à reparação de danos correntemente verificados em dada actividade, já que exclui, pura e simplesmente, a sua ressarcibilidade (art.º 218.º, n.º 3 da CRP).

Por último, refira-se que o diploma em análise não está revestido da característica formal que se impunha (Lei da Assembleia da República ou Decreto-Lei autorizado).
Deste modo, o art.º 60.º da CRP, consagrando um direito fundamental do cidadão/consumidor, é uma norma preceptiva, de eficácia imediata, directamente aplicável e que vincula entidades públicas e privadas (art.º 18.º, n.º 1 da CRP, ex vi art.º 17.º).
Donde, e atentas estas suas características, necessário é concluir que a disposição legal que a contraria é inválida desde a origem, devendo ser banida quanto antes do ordenamento jurídico, pois só assim será possível acautelar os direitos do cidadão/consumidor previstos no art.º 60.º da Constituição da República Portuguesa, por forma a que o comércio jurídico se faça com a transparência e justiça que se impõem num Estado de Direito Democrático.

B) Da sua desconformidade com o regime jurídico que disciplina as cláusulas contratuais gerais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.
Como se sabe, estamos no caso em apreço perante a existência de contratos de adesão/contratos tipo cujas características de pré-elaboração e rigidez lhes conferem uma natureza susceptível de proporcionar situações de abuso de poder, já que a elaboração dos mesmos não obedeceu aos ditames do acordo de vontades e os seus emitentes estão, regra geral, e como se verifica no caso em análise, imbuídos de forte poder.
Dispõe a al. c) do n.º 1 do art.º 18.º deste diploma legal que são absolutamente proibidas as cláusulas contratuais gerais que:
“Excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade por não cumprimento definitivo, mora ou cumprimento defeituoso, em caso de dolo ou culpa grave”.
Sendo certo que tal proibição é extensiva às relações com o consumidor final, por força do disposto no seu art.º 20.º, e que é exactamente isto o que o n.º 1 do art.º 19.º da TGT permite, resulta evidente a violação do disposto no diploma legal em análise.

C) Da sua desconformidade com o constante na Directiva 93/13/CEE do Conselho de 5 de Abril de 1993.
No intuito de favorecer a protecção do consumidor, dispõe o art.º 3.º desta Directiva que:

1. Uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

2. Considera-se que uma cláusula não foi objecto de negociação individual sempre que a mesma tenha sido redigida previamente e, consequentemente, o consumidor não tenha podido influir no seu conteúdo, em especial no âmbito de um contrato de adesão. (…)
E na lista meramente indicativa de cláusulas tidas como abusivas, constante do seu Anexo, incluem-se as cláusulas que excluem ou limitam de forma inadequada os direitos legais do consumidor em relação ao profissional, em caso de não execução total ou parcial ou de execução defeituosa do profissional de quaisquer obrigações contratuais.
Não posso ainda deixar de chamar a atenção de Vossa Excelência para o facto de dispor o art.º 10.º desta directiva que os Estados-membros deveriam adoptar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para lhe dar cumprimento o mais tardar em 31 de Dezembro de 1994, devendo as disposições adoptadas ser aplicáveis a todos os contratos celebrados após aquela data (o que, segundo suponho, não aconteceu).

Da norma constante do primeiro segmento do art. 53.º, N.º 3 do estatuto dos Correios e Telecomunicações de Portugal (anexo i do decreto-lei n.º 49 368 de 10 de novembro de 1969):

III-Exposição de Motivos

Dispõe a norma em apreço que:
“Em relação aos utentes, a responsabilidade dos CTT não poderá abranger, em caso algum, lucros cessantes”.
Dela resulta que os CTT – Correios de Portugal, S.A., não se encontram, em caso algum, obrigados a indemnizar os utentes dos serviços respectivos por dano imputado a esta empresa, na parte em que o dano consista numa diminuição de proveitos. Isto é, quando um facto imputável aos CTT constitua causa adequada da cessação de um lucro legítimo para o utente, é oponível a este último a norma impugnada com o efeito de o privar da reparação.

IV-Fundamentos

A extensão e alcance desta norma é menor que a extensão e alcance da norma enunciada no art.º 19.º da Tarifa Geral de Transportes. Contudo, não é por isso que deixa de infringir as mesmas normas constitucionais invocadas.
A obrigação de indemnizar, no âmbito da responsabilidade civil contratual, pode ter várias fontes: o incumprimento, a mora no cumprimento, o cumprimento defeituoso e a impossibilidade da prestação por facto imputável ao devedor.

Qualquer uma destas fontes determina o devedor a ressarcir o credor pelos danos que lhe haja causado – tanto os danos emergentes, como os chamados lucros cessantes, tanto “a perda ou diminuição de valores já existentes no património do lesado”, como “os benefícios que ele deixou de obter em consequência da lesão, ou seja, o acréscimo patrimonial frustrado” (Almeida Costa, Mário Júlio – Direito das Obrigações, 1984, Coimbra, p.391).
O autor citado, e em consonância com a generalidade da doutrina, embora reconhecendo a admissibilidade de excepções, considera que, por princípio, o “damnum emergen” e o “lucrum cessans” são determinantes de indemnização (idem, p. 392).
A simples diminuição do valor patrimonial é insuficiente para compreender “a realidade concreta do prejuízo sofrido pelo ofendido”, mas ainda para quem perfilhe esse entendimento, “os lucros cessantes, sendo representados por valores que ainda não pertenciam ao património do lesado, são susceptíveis de indemnização apenas por corresponderem ao aproveitamento de bens que o prejudicado já possuía e não pode utilizar em virtude da lesão” (Gomes da Silva, Manuel – O Dever de Prestar e o dever de Indemnizar, 1944, Lisboa, p. 76 e seg.).

O Código Civil, de resto, no sentido que venho apontando, consagrou a plenitude da obrigação de indemnizar, a qual compreende “não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” (art.º 564.º, n.º 1), havendo o cuidado, por parte do legislador, em apartar lucros cessantes e danos futuros, relativamente aos quais, a obrigação de indemnizar obedece a diferentes pressupostos, assentes, fundamentalmente, na valoração do Tribunal produzida sobre o caso concreto.

Não encontra qualquer apoio pertinente, sustentar que a extensão e compreensão do dano cuja reparação é garantida constitucionalmente aos consumidores possui limites inferiores aos da lei civil, sob pena de o consumidor encontrar melhor tutela fora desta qualidade.
Permito-me fazer notar, ainda, que a jurisdição constitucional teve já oportunidade, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, de julgar inconstitucional, no âmbito do processo n.º 340/87 (Acórdão 153/90, 2ª Secção, in Diário da República, II Série, n.º 207, de 7 de Setembro de 1990) a primeira norma contida no art.º 53.º, n.º 3 do Estatuto dos Correios e Telecomunicações, por entender que, e porque nos casos de incumprimento, cumprimento defeituoso ou retardamento no cumprimento, em que tão só resultem para o consumidor lucros cessantes, e tendo em conta a limitação da responsabilidade constante da norma questionada, se constata que fica o consumidor desprovido da garantia de ressarcimento pela conduta inadimplente do devedor, o que redunda num esvaziamento do conteúdo do direito a ver reparado o dano sofrido, direito esse imposto pelo n.º 1 do art.º 110.º da lei fundamental (actual n.º 1 do art.º 60.º).

Pelos mesmos motivos que foram enunciados a respeito da violação do disposto no art.º 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP pela norma supra impugnada da Tarifa Geral de Transportes, deve ter-se por inconstitucional a primeira norma do art.º 53.º, n.º 3 do Estatuto dos Correios e Telecomunicações, ou seja, por inexistir direito ou interesse constitucionalmente protegido que possa legitimar a medida de ablação ao direito em causa, e por, do mesmo passo, ser atingido o conteúdo essencial do mesmo (o que não sucederia, por hipótese, se a lei arredasse do âmbito do dever de indemnizar alguns lucros cessantes, desde que, naturalmente, cumprisse os demais requisitos das restrições).

Em tudo o mais – designadamente quanto à sua desconformidade com o regime jurídico que disciplina as cláusulas contratuais gerais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, e com o constante na Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993 – valem, quanto à primeira norma contida no art.º 53.º, n.º 3 da Estatuto dos Correios de Portugal, as motivações sustentadas a respeito da norma impugnada da Tarifa Geral de Transportes.

III-Conclusões

Em face do exposto e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no art.º 20.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,RECOMENDO:

Que, seja alterada a norma contida no n.º 1 do art.º 19.º da Tarifa Geral de Transportes aprovada pela Portaria n.º 403/75, de 30 de Junho com a redacção que lhe foi dada pela Portaria n.º 1116/80, de 31 de Dezembro, bem como a primeira norma do art.º 53.º, n.º 3 do Estatuto dos Correios e Telecomunicações de Portugal, em virtude destas violarem os direitos dos consumidores contidos no n.º 1 do art.º 60.º da CRP articulado com as disposições contidas nos n.ºs 1, 2 e 3 do seu art.º 18.º (ex vi art.º 17.º), assim como o disposto no regime jurídico que disciplina as cláusulas contratuais gerais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, e o constante da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel