Exm.º Senhor
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Processo:R-2587/95
N.º 58/A/96
Data:17.07.1996
Área: A1

Assunto:URBANISMO E OBRAS – OBRAS PARTICULARES – ACTIVIDADE COMERCIAL – ESTABELECIMENTOS SIMILARES – LICENÇA DE UTILIZAÇÃO – PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO DO DANO AMBIENTAL

Sequência:Acatada

I-Exposição de Motivos

1. O processo referenciado foi desencadeado por queixa relativa aos inconvenientes de funcionamento de estabelecimento similar dos hoteleiros denominado …, sito na Av. … .

2.Na sequência de pedido de esclarecimentos formulado pela Provedoria de Justiça tendo em vista a instrução do processo, informou o Órgão a que V.ª Ex.ª dignamente preside, a coberto do ofício n.º …, que o estabelecimento similar denominado … não possui alvará de licença sanitária e aditou a subscritora daquele oficio que a utilização licenciada quanto à fracção ocupada pelo estabelecimento, consoante alvará de licença nº…, prevê que nele seja exercida a actividade típica de estabelecimento comercial.

Também de acordo com as declarações ali reduzidas a escrito, foi o proprietário do estabelecimento notificado, em …, a submeter à aprovação da Divisão de Projectos Municipais projecto de instalação relativo a estabelecimento de Restaurante Pizzaria, no prazo de 60 dias e, concomitantemente, a fim de manter o exercício das actividades de confecção de alimentos, a proceder, subsequentemente ao encerramento do estabelecimento, ao suprimento de deficiências detectadas quanto ao isolamento acústico, sistemas de ar condicionado e refrigeração, e a apresentar declaração técnica no tocante à instalação da conduta de exaustão de fumos e vapores.

3. Os demais elementos instrutórios coligidos permitem extrair ilação segundo a qual não acatou o proprietário do estabelecimento as determinações do Centro de Saúde de Cascais, no tocante à realização de obras de insonorização e à exibição de relatório técnico relativo aos procedimentos de eliminação de cheiros e vapores.
Este facto, aliado à circunstância de o estabelecimento se encontrar desprovido de licença sanitária, fundou, aliás, ordem de encerramento do mesmo, proferido pelo Exm.º Governador Civil em 21.12.1995, na sequência de comunicação fundamentada dessa Câmara Municipal e ao abrigo do disposto no art.º 55.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 328/86, de 30 de Setembro.

4. A utilização licenciada por esse Município para a fracção designada supõe a sua afectação a fim comercial, em consonância, decerto, com o disposto no título constitutivo da propriedade horizontal e com o destino previsto no projecto de obras que mereceu aprovação municipal.

4.1. Assim, deve o uso em exercício naquele espaço, conformar-se com o fim autorizado.

4.2. No caso em apreço verifico porém, que a actividade a prosseguir não se reconduz, na sua essência, à actividade típica prosseguida pelos estabelecimentos comerciais.
Embora afins não deverão, em rigor, considerar-se como equiparadas, nem como tal integrar o mesmo tipo de utilização, as actividades cujo objecto se cinja à venda de artigos ao público e a actividade que comporte a transformação ou confecção de alimentos, em ordem a posterior consumo pelo público.

4.3. Decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 27.01.1993, proc. 82630, que a noção de comércio para um declaratário normal coincidirá com a ideia de “compra e venda de valores, mercadorias, negócio, permutação de produtos, troca de valores”, pelo que divergirá substancialmente do “conjunto de actividades de produção e transformação de matérias”.
Acrescidamente, perfilhando o entendimento explicitado na decisão recorrida, aduz o Supremo Tribunal de Justiça que a circunstância das demais fracções do edifício se destinarem a habitação obstará a que um declaratário normal atribua à declaração “destinada a comércio” um sentido lato e compaginável com a utilização de actividades “provocando emanações de vapores gordurosos, gases e cheiros, que vêm conspurcando o prédio, e ruídos, que se fazem sentir nas fracções dos AA. De acordo com a boa fé, não é de admitir que a utilização assim feita das fracções corresponda ao comércio a que foram destinadas, segundo se declara no título. Outra interpretação sacrificaria com aquela utilização, apesar das restrições derivadas das relações de interdependência e vizinhança decorrentes da propriedade horizontal, os legítimos interesses dos titulares das fracções destinadas à habitação, em proveito de actividades não abarcadas pelo sentido normal da expressão “comércio””.

4.4. Às actividades compagináveis com o uso comercial se reporta também Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.01.1995 (publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, 1995, Tomo 1, p.p. 24 a 27), ao definir o comércio como actividade de troca de produtos por dinheiro, e ao excluir daquele conceito “a transformação da matéria prima em produto acabado e sua posterior venda, numa actividade completa e verbal”, concluindo, consequentemente, que “constando do título constitutivo da propriedade horizontal que a fracção se destina a comércio, não pode o condómino afectá-la ao fabrico de pão e pastéis, mesmo que sejam para serem vendidos na fracção”.

4.5. O exercício de utilização que careça de aprovação municipal legitima a Câmara Municipal a fazer cessar o uso não autorizado, determinando o despejo sumário da fracção ocupada (cfr. art.º 165.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951).

5. A alteração da utilização de determinada fracção deve ser analisada pela Câmara Municipal na perspectiva dos valores que o direito do urbanismo se propõe tutelar e segundo critérios de ordem pública, à luz das finalidades de actuação previstas na lei, ainda que sem prejuízo da ampla margem de discricionariedade que o art.º 30.º, n.ºs 6 e 8, al. c) do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, concede às Câmaras Municipais no que toca à aprovação do uso.
Impõe-se à Câmara Municipal acautelar os interesses públicos de urbanismo, estética, salubridade, segurança que a lei lhe confia.

5.1. Por força do princípio da proporcionalidade não poderá a Administração adoptar solução que apresente excessivos inconvenientes em relação às vantagens que ela comporte. Assim, deverá a Câmara Municipal ponderar, a par dos interesses inerentes ao pedido de licenciamento formulado e que motivam o exercício de uma actividade económica, os inconvenientes que para os circunvizinhos aquela actividade poderá ocasionar e as suas repercussões ambientais.

5.2. Não pode a Câmara Municipal deixar de atender às relações de interdependência dos condóminos no uso e fruição do prédio, e às suas repercussões para a comodidade e tranquilidade do condomínio e segurança do edifício.

6. Compete à Câmara Municipal, em particular no âmbito do procedimento de licenciamento sanitário, impor a adopção de medidas que eliminem ou tornem comportáveis os potenciais incómodos ou efeitos negativos.
Em razão da actividade exercida, confecção de alimentos, e da localização do estabelecimento, em fracções de prédio destinado primordialmente a fins habitacionais, há-de o estabelecimento similar obedecer a condições de funcionamento peculiares, necessariamente mais exigentes que as prescritas para os meros estabelecimentos comerciais, em termos que não sujeitem os moradores a inconvenientes mais pesados que aqueles que decorrem normalmente da actividade de um estabelecimento de comércio, no sentido que o Supremo Tribunal de Justiça apontou.

A natureza dos condicionalismos inscritos no alvará de licença sanitária dependerá do tipo de estabelecimento e a sua fixação visará assegurar que o uso em causa não pertubará ou colidirá com as demais utilizações exercidas.

6.1. Em particular, pondero que importará precisar quais as normas técnicas a que deve obedecer o sistema de exaustão de fumos, em ordem a assegurar a adequação e suficiência dos procedimentos de eliminação de gases e vapores e prevenir eventuais situações de insalubridade, advenientes de excesso de fumosidade e da consequente concentração de odores.

Aquela exigência decorrerá ainda do princípio da prevenção das lesões ambientais, segundo o qual, deverão ser consideradas de forma antecipativa as actuações potencialmente danosas em termos ambientais. Em lugar de se adoptarem medidas correctivas e sancionadoras, uma vez consumada a lesão, importará prevenir a sua ocorrência, reduzindo ou eliminando as suas causas (v. d. artigos 2.º e 3.º, al. a) da Lei n.º 11/87, de 7 de Abril).

Ao estabelecimento de restaurante e pizzaria, destinado a fornecer alimentos ao público mediante remuneração, para consumo no próprio estabelecimento, são aplicáveis, em especial, as prescrições legais constantes dos artigos 271.º e 273.º do Decreto Regulamentar n.º 8/89, de 21 de Março (vd. art.º 13.º, n.º 2 e art.º 19.º do Decreto-Lei n.º 328/86, de 30 de Setembro).

II-Conclusões

8. A aprovação da instalação de estabelecimento de restaurante e pizzaria apenas poderá ter lugar desde que a Câmara Municipal se pronuncie positivamente quanto à alteração do uso licenciado, na sequência de pedido formulado pelo particular, nos termos do disposto no artigo 30.º, n.ºs 2 e 4 do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro, em virtude de o exercício comercial, correspondente ao uso aprovado, não integrar as actividades peculiares daquele tipo estabelecimento.

O pedido deve ser instruído com documento comprovativo da legitimidade do requerente, em consonância com o que estabelece o art.º 30.º, n.º 4, al. c), do mencionado Decreto-Lei.
A legitimidade do requerente há-de aferir-se em função da prova apresentada a respeito do consentimento unânime dos condóminos quanto à alteração da utilização requerida.
A modificação no destino de fracção autónoma implica a alteração da correspondente disposição do título constitutivo da propriedade horizontal, pelo que pressupõe a anuência do condomínio.

Sem que o requerente apresente documento comprovativo da autorização de todos os condóminos quanto à utilização projectada, designadamente acta da assembleia de condóminos que aprove, por unanimidade, a alteração da utilização, não disporá a Câmara Municipal de elementos que atestem a legitimidade do requerente, pelo que o pedido não poderá proceder e diferente entendimento, que se baste com a exibição de documento que titule a posse exercida sobre a fracção autónoma, sujeita os condóminos às consequências da alteração do uso da fracção, sem deliberação válida da Assembleia de Condóminos, e a subversão, por deliberação camarária e subsequente emissão de licença de utilização, da escritura de constituição da propriedade horizontal.

A perfilhar tal interpretação, criará a Câmara Municipal, ao decidir sobre a viabilidade do pedido de alteração da utilização, circunstâncias propícias ao despoletar de conflitos de vizinhança, os quais a orientação que preconizo, mais cautelosa, tenderá a precaver ou a dissipar.
Termos em que, no uso dos poderes que me são conferidos pelo art.º 20.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO:

a V.ª Ex.ª que a Câmara Municipal de Cascais indefira pedidos de aprovação de projectos de estabelecimentos similares dos hoteleiros, no exercício da competência prevista no art.º 5.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 328/86, de 30 de Setembro, quando o uso a exercer colida com a utilização fixada em alvará de licença de utilização emitido relativamente ao prédio a ocupar, em especial quanto a estabelecimentos a instalar em prédios que, nos termos previstos nos respectivos alvarás de licença de utilização, se destinam ao exercício de actividades comerciais.

Por esta ordem de razões, entendo dever manter-se encerrado o estabelecimento similar …… identificado supra.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel