Presidente da Direcção do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Número:3/A/96
Processo:R-52/96
Data:11.01.1996
Área: A2

Assunto:JOGOS DE FORTUNA OU AZAR – TOTOLOTO – SORTEIO – VALIDAÇÃO DE MATRIZ ACTUAÇÃO ILÍCITA DO JÚRI – INDEMNIZAÇÃO.

Sequência: Acatada

I-Questões prévias

Conforme é já do conhecimento de V.ª Ex.ª, foi apresentada queixa na Provedoria de Justiça acerca das irregularidades registadas no sorteio do totoloto ocorrido no passado dia 6 de Janeiro. Antes de abordar aqueles que julgo serem os pontos principais da questão, permito-me deixar aqui, desde logo, dois esclarecimentos prévios:

1. Em primeiro lugar, uma sumária explanação dos motivos pelos quais entendi dirigir a V.ª Ex.ª a presente Recomendação: independente�mente da tese perfilhada acerca da responsabilidade pelos incidentes ocorridos no sorteio do totoloto do passado dia 6 de Janeiro, é inegável que a sua simples ocorrência afectou de forma grave a imagem da entidade sob a égide da qual se realiza o concurso em causa, precisamente o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Mesmo que outro não existisse, este motivo justificaria, por si só, a legitimidade e – porque não dizê-lo -, o interesse do Departamento de Jogos em esclarecer por completo todas as dúvidas que actualmente se colocam acerca da questão e em, paralelamente, liderar todo o processo de reposição da legalidade e da normalidade da situação criada com os incidentes ocorridos. Aliás, sendo o júri dos concursos um órgão do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia (artigo 4.º do respectivo Regulamento), difícil se torna alcançar uma solução para o caso em apreço que não passe pela iniciativa e orientação de V.ª Ex.ª, com a colaboração, evidentemente, das restantes entidades com competência para nomear os dois vogais do júri que, com o respectivo presidente, o constituem.

2. Em segundo lugar, e embora tenha tomado boa nota da principal justificação apresentada por V.ª Ex.ª para a ocorrência das irregularidades verificadas, relacionada com o comportamento da R.T.P. na decisão de antecipação do início do programa no âmbito do qual o sorteio é transmitido em directo, não posso deixar de considerar ser esse um assunto do foro das relações do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa com aquela empresa, não podendo, porém, a decisão da R.T.P. justificar a desresponsabilização do júri dos concursos em matéria da exclusiva competência deste. Permito-me, aliás, salientar o facto de a transmissão televisiva do sorteio não ser, tão pouco, condição da sua realização ou da sua validade (artigo 13.º, n.º 4, do Regulamento Geral dos Concursos de Apostas Mútuas, aprovado pela Portaria n.º 1328/93, de 31 de Dezembro), pelo que não existem dúvidas quanto à opção a tomar se a alternativa se situar entre a realização de um sorteio correctamente efectuado sem transmissão televisiva e a transmissão de um sorteio cujos actos violam as regras legais aplicáveis ao mesmo: parece óbvio que deverá ser preterida a transmissão televisiva, independentemente de quaisquer pressões nesse sentido. Acresce que é a R.T.P. que presta um serviço ao Departamento de Jogos – procedendo à transmissão do sorteio em directo – e não o inverso.

II-A questão de fundo

No decurso do sorteio do totoloto a que venho fazendo referência, veio a apurar-se ter sido indevidamente introduzida na esfera rotativa, uma bola com o algarismo 0, em violação, portanto, do disposto no artigo 13.º do Regulamento Geral dos Concursos de Apostas Mútuas, aprovado pela Portaria n.º 1328/93, de 31 de Dezembro, o qual refere expressamente que aquela esfera deverá conter “49 bolas iguais, numeradas de 1 a 49”.
A explicação apresentada para a existência de uma bola com um algarismo que não pode, em caso algum, ser validamente sorteado – “bola neutra” – prende-se com procedimentos de teste do sistema e de eventual substituição de qualquer outra bola que não possa ser utilizada, explicação que me parece apenas dificilmente aceitável.
O mesmo não ocorre, porém, com o lapso que originou a introdução da referida bola neutra na esfera rotativa, acrescendo – de acordo com as informações facultadas a este órgão do Estado – às restantes 49 bolas.

Dos esclarecimentos prestados por V.ª Ex.ª na qualidade de Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – que agradeço, bem como a celeridade colocada no respectivo envio à Provedoria de Justiça -, resulta, em suma, que aquele lapso ou “mera inadvertência”, resultou apenas e tão só da “falta de tempo para execução de todas as tarefas preliminares aos sorteios”, tudo por força da antecipação da hora do referido sorteio, determinada pela R.T.P., sem prévio aviso à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ou ao respectivo Departamento de Jogos.

Assim, as referidas tarefas preliminares terão estado exclusivamente a cargo do substituto do Presidente do júri, o qual confirma ter colocado as bolas sem que tivesse detectado qualquer erro.

Esse erro só viria a ser constatado no decurso do sorteio – já na presença dos dois vogais do júri – precisamente com a extracção da bola 0 como número suplementar, tendo o júri, então, decidido proceder à extracção de uma nova bola em substituição daquela, que considerou “anulada”.

Com este resumo dos acontecimentos que levaram ao sorteio da bola 0, pretendo centrar a análise desta questão na área onde creio que, de facto, se situa o verdadeiro problema, isto é, no conjunto de circunstâncias que levou à introdução da bola 0 na esfera rotativa: tal facto só ocorreu porque os procedimentos prévios ao sorteio – todos da responsabilidade exclusiva do júri dos concursos – não só não foram efectuados com a diligência devida, como não o foram na presença do número mínimo de membros do júri (2), imposto pelo n.º 4, do artigo 11.º, do Regulamento do Departamento de Jogos da Santa Casa de Misericórdia, constante do anexo II ao Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de Agosto.

Assim sendo:
a) Nunca o presidente substituto do júri, presente nas instalações da R.T.P. antes do início do sorteio, deveria ter autorizado a realização do mesmo sem a presença de, pelo menos, um vogal e a devida conferência das bolas por ambos;
b) Nunca os dois vogais que chegaram ao local do sorteio quando processo já decorria deveriam ter permitido a continuação deste.
Não pode, pois, deixar de concluir-se que a introdução da bola 0 na esfera rotativa só ocorreu porque não foram cumpridas todas as formalidades essenciais à boa e regular realização do sorteio do totoloto do passado dia 6 de Janeiro.

Nestes termos, nunca o sorteio poderia ter sido efectuado nas condições em que o foi, em violação de várias disposições do Regulamento supra referenciado.
A aceitação, pelo júri, dos resultados da extracção, depois de improvisada uma forma de ultrapassar o incidente, não pode deixar de criar nos cidadãos em geral e nos apostadores em particular, um clima de forte suspeição sobre a credibilidade do júri dos concursos e sobre a regularidade dos sorteios que é suposto superintender – artigo 10.º, alínea c), do já citado Regulamento do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia.

É que as irregularidades verificadas tiveram como efeito uma alteração das regras com base nas quais os apostadores haviam decidido participar no concurso, desde logo no que concerne à existência de um júri composto por três pessoas – conforme, aliás, é sempre salientado na transmissão do sorteio -, nomeadas por entidades de reconhecida isenção e competência, que tem como principal finalidade assegurar e atestar a regularidade de todos os procedimentos do sorteio.

Aliás, a norma constante do artigo 2.º, n.º 2, do Regulamento Geral dos Concursos de Apostas Mútuas, aprovado pela Portaria n.º 1328/93, de 31 de Dezembro, erige em pressuposto de participação nos concursos, o integral conhecimento e plena aceitação das normas que regulam os concursos, para além de o n.º 4, do artigo 5.º, do mesmo diploma, referir que “dos bilhetes consta obrigatoriamente um extracto das regras essenciais” do concurso.
Não pode, pois, o júri dos concursos fazer, de forma unilateral, tábua rasa das normas cujo conhecimento e aceitação são exigidos à outra parte interveniente no concurso.
Esta alteração das estritas regras por que se deve reger o sorteio, consubstancia uma alteração inadmissível do contrato celebrado entre cada apostador e o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia, alteração que, para além de ser manifestamente ilegal por violação das regras dos Regulamentos supra citados, compromete seriamente a confiança dos apostadores.

Por outro lado, a verificação de que na esfera rotativa haviam sido introduzidas não 49, mas 50 bolas, viria também a afectar a credibilidade de todo o concurso. Mas não só. Ainda que o sorteio da bola zero não tenha gerado qualquer modificação das probabilidades de êxito de cada apostador, uma vez que foi rejeitada e substituída por novo número suplementar – ou seja, a possibilidade de cada apostador acertar na chave sorteada foi rigorosamente a mesma -, a sua presença na tômbola durante a extracção de todas as outra bolas constitui um factor de aleatoriedade adicional.

Ora, dependendo a atribuição dos prémios deste concurso de factores exclusivamente aleatórios, a introdução da bola zero na esfera faz aumentar o grau de aleatoriedade de uma forma não prevista na lei, desconhecida dos apostadores e, uma vez mais, modificativa das regras base do concurso.

Na verdade, não é possível garantir que a ausência da bola 0 teria determinado um resultado idêntico ao que foi sorteado com a sua inclusão. Pelo contrário, esta “bola neutra”, poderá, embora com uma probabilidade muito reduzida, ter influenciado o resultado do sorteio. Refiro-me à probabilidade de o contributo da bola zero – por via da interactividade com as restantes bolas, induzida pelo movimento de todas elas – ter determinado o resultado que se veio a apurar.
Face ao exposto, parece dever concluir-se que a extracção do totoloto do passado dia 6 de Janeiro, incorreu em ilegalidades, de entre as quais se destacam, para além da violação das regras contratuais aplicáveis aos concursos de apostas mútuas, a introdução de uma bola extra na esfera rotativa e a ausência, no processo de sorteio, do número mínimo de elementos do júri, em violação, respectivamente, do disposto no artigo 13.º do Regulamento Geral dos Concursos de Apostas Mútuas, aprovado pela Portaria n.º 1328/93, de 31 de Dezembro e do disposto no n.º 4, do artigo 11.º, do Regulamento do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, constante do anexo II ao Decreto-Lei n.º 322/91, de 29 de Agosto.

Neste sentido, o sorteio do totoloto realizado no passado dia 6 de Janeiro não pode deixar de se considerar anulável por vício de forma, nos termos gerais de direito.
Nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 5, do Regulamento do Departamento de Jogos, “das decisões do júri dos concursos apenas há recurso para o júri das reclamações”, havendo, da decisão deste segundo júri, unicamente recurso contencioso (artigo 19.º, n.º 3, do Regulamento Geral dos Concursos de Apostas Mútuas).

Não restam, assim, dúvidas de que apenas o júri das reclamações inicialmente é competente para proceder à anulação da decisão do júri dos concursos que considerou válido o resultado do sorteio obtido após a extracção da oitava bola, em substituição da bola 0.
É do meu conhecimento que ao júri de reclamações já foram apresentados recursos da decisão do júri dos concursos. Por todo o exposto, é minha convicção que o sorteio irá ser anulado pelo júri de reclamações, face às ilegalidades cometidas.

Em suma, está assim e desde já desencadeado o processo irreversível que poderá conduzir à anulação do sorteio.
As consequências desta anulação serão, desde logo, o não pagamento dos prémios resultantes do sorteio anulado e a realização de um outro sorteio, de acordo com as normas regulamentares.

Ocorre, porém, que o júri dos concursos considerou válido o primeiro sorteio, quer no momento da sua transmissão em directo, pela R.T.P., quer na ressalva à acta n.º 1/96, relativa a este sorteio quer, ainda, no comunicado posteriormente emitido acerca dos incidentes ocorridos.
Existem, pois, actualmente, milhares de apostadores cuja situação jurídica activa se encontra suficientemente consolidada e é, por isso, inquestionavelmente merecedora de protecção: refiro-me a todos aqueles que foram premiados em função do resultado do sorteio de 6 de Janeiro.

Ora, enquanto que em relação aos apostadores não premiados no primeiro sorteio, a respectiva anulação e substituição por outro correctamente efectuado vai possibilitar a reposição da legalidade, porque vêm renovada a hipótese de participar em sorteio realizado conforme os regulamentos, em relação a todos os apostadores que resultaram premiados do primeiro sorteio, a respectiva anulação acarreta a perda dos prémios, consequência que não pode, de todo, aceitar-se, pelas razões já avançadas relacionadas com o progressivo fortalecimento da sua posição jurídica.

É na salvaguarda dos interesses destes últimos apostadores que o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia não pode deixar de ter papel determinante, o qual, aliás, lhe é imposto por lei e pelos princípios gerais do direito, nomeadamente pelo princípio da boa fé e da protecção da confiança dos cidadãos.

Dúvidas não restam, depois de tudo o que ficou dito, que, a não terem ocorrido as ilegalidades já identificadas, o sorteio não seria anulado e os apostadores com matrizes premiadas receberiam a totalidade dos prémios a que teriam direito.
Se tal não acontece porque a actuação negligente do júri dos concursos violou as disposições legais supra citadas destinadas a proteger os interesses dos apostadores, constitui-se, na esfera jurídica de cada um destes, um direito a indemnização pelos danos sofridos.

O montante da indemnização será necessariamente idêntico ao valor do dano, ou seja, ao valor do prémio que os apostadores deixam de receber por força da anulação do sorteio decorrente da conduta negligente e ilícita dos membros do júri dos concursos.

Contudo, para evitar situações injustificadas de enriquecimento sem causa e, na hipótese de existirem apostadores premiados em ambos os sorteios – recorde-se que ao segundo sorteio concorrerão todos os apostadores que participaram no primeiro, independentemente de terem, ou não, sido já premiados -, ao prémio obtido no segundo sorteio acrescerá um valor indemnizatório até se perfazer o valor do prémio eventualmente obtido na primeira extracção, se este for superior.

Deste modo, todos os prémios serão pagos aos apostadores que sejam premiados no segundo sorteio e todos os danos serão ressarcidos aos apostadores premiados no primeiro.
Não obstante o acto ilícito ter sido praticado pelo júri dos concursos, a responsabilidade pelo pagamento das indemnizações a todos os apostadores lesados deve ser do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia pois, como se referiu, aquele júri é um órgão deste, nos termos do disposto no art.º 4.º do Regulamento do Departamento de Jogos. Assim sendo, o Departamento de Jogos deverá responder civilmente pelos danos causados pelo júri dos concursos.

Face a todo o exposto,RECOMENDO:

1. Que, em caso de anulação, o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia promova a realização de um segundo sorteio do concurso do totoloto n.º 1/96, em que serão apostadores todos os que o foram por ocasião do primeiro sorteio, sendo válidas as matrizes então utilizadas.

2. Que o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa pague, aos apostadores com matrizes premiadas no primeiro sorteio, montante igual àquele a que teriam direito se o mesmo tivesse decorrido conforme às regras dos Regulamentos.

3. Este pagamento revestirá a natureza de indemnização pelos danos provocados pela actuação ilícita do júri dos concursos.

4. Que o valor da indemnização seja rigorosamente igual ao valor do dano, a fim de evitar situações de enriquecimento sem causa. Assim, o valor indemnizatório só será devido na medida em que exceda o prémio resultante do segundo sorteio.

5. Que sejam adoptadas, urgentemente, as medidas necessárias para a impossibilidade da repetição de casos desta natureza.

O acatamento da presente Recomendação, para além de me parecer a melhor forma de conciliar razões de legalidade e razões de justiça, não deixará, por certo, de contribuir decisivamente para a reposição da confiança e restabelecimento da credibilidade desse Departamento de Jogos.

Nesta data dei conhecimento do teor da presente Recomendação aos Exm.ºs Senhores Presidente do Júri das reclamações, Inspector-Geral de Finanças e Governador Civil de Lisboa.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel