Presidente da Câmara Municipal de Vila Verde
Processo:R-2331/96
Número:72/A/96
Data:23.09.1996
Área: A 2

Assunto:MINORIAS ÉTNICAS – IMPLANTAÇÃO DAS EDIFICAÇÕES URBANAS – DEMOLIÇÃO POR ILEGALIDADE – LEGALIZAÇÃO DE OBRAS – PRINCÍPIO DA IGUALDADE – DEVER DE INDEMNIZAR

Sequência:Não acatada

I-Exposição de Motivos

Da Instrução

a) Da queixa Apresentada ao Provedor de Justiça

1. Foi pedida a intervenção do Provedor de Justiça por parte de uma associação cívica de defesa dos Direitos do Homem sobre assunto da competência da Câmara Municipal de Vila Verde e respectivo Presidente, órgãos aos quais são, por esse meio, imputadas acções ilegais e injustas.

2. Em concreto, a queixa reportou-se a processos, em curso, de demolição de obras visando construções pertencentes ao Senhor … identificado como “patriarca da comunidade cigana” de Oleiros, a cuja motivação não seriam alheios propósitos de natureza discriminatória e racista.

3. De acordo com a reclamação, não poderia a Câmara Municipal de Vila Verde ter como certo o pressuposto determinante das demolições ordenadas, pois, com efeito, não se encontraria suficientemente demonstrada, a localização das construções em prédios integrantes da Reserva Agrícola Nacional, em especial, quanto a uma dessas construções.

4. Mais se referiu que a Câmara Municipal de Vila Verde desenvolvia esforços no sentido de expulsar o Senhor …. e sua família do concelho, compelindo-os a alienar os terrenos.

5. Pediu-se, assim, a intervenção do Provedor de Justiça com vista a ver assegurada a permanência do Senhor …. e do respectivo agregado familiar nos terrenos que possuem, em Oleiros, Vila Verde, sem o que ficariam privados de alojamento condigno.

b) Das diligências instrutórias

6. Através do oficio n.º …., a Provedoria de Justiça inquiriu o Exm.º Presidente da Câmara Municipal de Vila Verde acerca da exacta localização das construções em questão em zona submetida ao regime da Reserva Agrícola Nacional (RAN).

7. Do mesmo passo, pediu-se que fosse esclarecido o aspecto relativo às intenções de aquisição dos terrenos ocupados pelas construções a demolir.

8. Sem que tenha sido obtida resposta às solicitações descritas, pese embora se aproximasse a data de uma provável demolição coerciva da casa de morada do Senhor ….., o Provedor de Justiça pronunciou-se publicamente, através de nota transmitida pela comunicação social.

9. Por esta via, e sem poder antecipar conclusões, recordou a necessidade de aplicar as medidas de reposição da legalidade urbanística por forma imparcial, propondo-se testar a prática administrativa recente do município de Vila Verde em matéria de ordens de demolição, com o que procurou induzir a uma correcta ponderação dos factos e do direito aplicável, por parte das autoridades locais competentes, salvaguardando, em tempo, eventual lesão de direitos e interesses legítimos dos administrados.

10. Em 27 de Agosto p.p., mantida a falta de resposta por parte do Exm.º Presidente da Câmara Municipal de Vila Verde, foi recebido na Provedoria de Justiça, a seu pedido, o Exm.º Governador Civil do Distrito de Braga, com vista a uma troca de impressões sobre a demolição, entretanto consumada em 23 de Agosto p.p., e sobre os factos que se seguiram, amplamente noticiados pelos Órgãos de comunicação social: perturbações da ordem pública, obstando à permanência do senhor J. G. e seus familiares em pontos diversos do concelho de Vila Verde e do concelho de Braga e ao adequado realojamento dos mesmos.

11. Em 30 de Agosto p.p., exercendo o poder que lhe confere o disposto no art.º 29.º, n.º 5 da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, requereu o Provedor de Justiça a presença do Exm.º Presidente da Câmara Municipal de Vila Verde nesta Provedoria, a fim de suprir a omissão de resposta, designando, para o efeito a data de 6 de Setembro.

12. Compareceu o Exm.º Presidente, lamentando o atraso na resposta às solicitações da instrução do processo, não concedendo, no entanto, que os procedimentos de demolição, documentados em volume que exibiu, possam mostrar-se viciados.

13. Reconduz o problema à não inserção da comunidade cigana de Oleiros, devida a práticas anti-sociais, na sua maioria, relacionadas com o narcotráfico, circunstância que tem vindo a propiciar um clima crescente de animosidade e insegurança, apesar de reiterados pedidos de reforço do policiamento.

14. Inquirido sobre o cumprimento das formalidades exigidas pelo disposto no Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio, bem como sobre o cumprimento do dever de audiência dos interessados previamente à adopção de actos ablatórios (art.º 100.º do Código do Procedimento Administrativo), remeteu para o teor dos documentos exibidos.

15. Questionado sobre a individualização das construções demolidas – designadamente, sobre a demolição, também, de um tanque de rega e de um estábulo – e acerca dos fundamentos da ordem de demolição decretada sobre zona alegadamente não compreendida na RAN, respondeu o Senhor Presidente que desconhece, em concreto, o conteúdo do acto exequendo e do acto de execução, pois só se encontra no exercício de funções desde há cerca de um mês. Já quanto aos fundamentos do despacho, em particular, no ponto respeitante à susceptibilidade de legalização (art.º 16.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas), indicou que a construção demolida se encontrava demasiado próxima da extrema de terreno confinante, pelo que não respeitaria as pertinentes disposições regulamentares aplicáveis.

16. No tocante a invocadas negociações preliminares destinadas à aquisição do terreno, confirmou ter tido lugar uma iniciativa conjunta do município e da freguesia, associados a um grupo de moradores locais, tendo em vista comprar o prédio possuído pelo Senhor J. G., e supostamente propriedade de seu irmão. Apontava-se para o preço de Esc. 10 000 000 $, acrescidos de um subsídio para transporte dos bens no valor de Esc. 2 000 000 $.

17. À questão formulada sobre se a compra seria, ou não, condicionada à deslocação do Senhor … e seus parentes para fora do concelho, respondeu não crer que tenha sido tal condição seriamente veiculada.

18. Por fim, e de modo a conhecer a prática administrativa municipal relativa à demolição de construções ilegais, foi perguntado ao Senhor Presidente o número de intimações para demolição coercivamente executadas nos últimos anos, em confronto com outras situações de infracção urbanística tratadas em processos da Provedoria de Justiça, pedindo-se, especificamente, indicação do último acto executado. Respondeu que se tratou de uma demolição executada em 1989, no lugar de Loureira, adiantando não ter presente nenhum outro caso ulterior.

19. Sobressaem das declarações prestadas pelo Exm.º Presidente reiteradas referências a pressões populares, nomeadamente, as que foram exibidas em manifestações e petições largamente participadas, cujo efeito sobre a decisão de ordenar e executar a demolição não terá sido despiciendo. Pelo contrário, terá sido determinante da actuação camarária, considerando o Exm.º Presidente poder ter ocorrido excessivo rigor no cumprimento da lei.

II-Dos Factos

20. Compulsados os processos camarários respectivos, importa condensar os factos documentados, os quais, analisados à luz do direito aplicável, permitirão concluir sobre a procedência das questões suscitadas.

21. Assim, é de começar por apontar que a factualidade se deve agregar em dois conjuntos distintos: obras localizadas em zona RAN e obras localizadas em área de expansão urbana.

22. Com efeito, de acordo com informação dos serviços camarários de 9-8-1996, confirmada pela Comissão Regional de Reserva Agrícola de Entre-Douro e Minho, apenas as obras edificadas pelo Senhor J. G. se situavam em área não compreendida na RAN, constituindo objecto do processo n.º 2996/94.

23. Quanto às demais obras demolidas em Oleiros no ano em curso (6-5-1996 e 20-5-1996) verificou a Comissão encontrarem-se localizadas em zona non aedificandi, sem que obtivessem o parecer favorável que permitiria obstar à demolição (art.º 9.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho); parecer que fora requerido com fundamento em razões de carência atestadas pela Junta de Freguesia de Oleiros, em 26-9-1995. Pode concluir-se que as obras situadas em área da RAN não eram susceptíveis de legalização, para os efeitos do disposto no citado art.º 167.º do RGEU, de onde resultou a prática vinculada da ordem de demolição e sua execução, em conformidade com a articulação deste preceito com o disposto no art.º 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro.

24. As obras edificadas pelo Senhor …., no prédio rústico sito no lugar da Veiga, freguesia de Oleiros, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde, sob o n.º 30222, e inscrito na matriz predial respectiva sob o art.º 702, situam-se em área de espaço de expansão de aglomerados do tipo 2, segundo a mesma informação de 9-8-1996.

25. Em 13-5-1994 o Presidente da Câmara Municipal de Vila Verde ordenou o embargo de uma construção em madeira destinada a habitação e mais determinou que se notificasse o infractor para, no prazo de 15 dias, regularizar a situação, uma vez que a obra se mostrava desprovida de licença de construção.

26. Consequentemente, o Senhor …. foi notificado, em 26-8-1994, para legalizar a obra embargada (cfr. comunicação do Proc. 585/95. de 17-8-1995. dirigida ao Senhor …).

27. Requereu, em 21-9-1994, a legalização, apresentando, para o efeito, planta topográfica com implantação, memória descritiva e justificativa, projecto de arquitectura e termo de responsabilidade do respectivo autor, para uma construção unifamiliar pré-fabricada, em madeira, composta por cozinha, sala comum, três quartos e instalação sanitária.

28. Sobre o pedido recaiu informação técnica favorável, em 19-10-1994, onde se pode ler:
“Não vemos inconveniente na pretensão, alertamos para a circunstância de o muro exterior não limitar a propriedade, situação invulgar, mas a que o requerente tem pleno direito. Podem colher-se os pareceres da D.S. e S.N.B.”

29. A Autoridade de Saúde emitiu parecer favorável em 4-11-1994, e o Serviço Nacional de Bombeiros, em 17-11-1994, apenas condicionou ao cumprimento do disposto no art.º 22.º do Regulamento de Segurança contra Incêndios, impondo, para o efeito, a instalação de hidrantes exteriores.

30. Nova informação técnica favorável mereceu o requerimento, em 30-1-1995, considerando-se que:
“Pode ser aprovado o projecto de arquitectura. Após aprovação, o requerente deverá apresentar os seguintes projectos das especialidades:
a) projecto da rede de abastecimento de água;
b) projecto da rede de saneamento;
c) cálculo das características do comportamento térmico, e
d) cálculos de estabilidade.”

31. Não obstante, em 12-3-1995, é determinado ao requerente que faça juntar nova planta topográfica para melhor identificação do prédio:
“dado que a escritura de compra refere um terreno com 2640 m2 e na planta topográfica está demarcado um terreno muito menor, deverá ser notificado para demarcar correctamente a propriedade, a fim de o projecto ser devidamente aprovado”, pelo que deliberou a Câmara Municipal, na sua reunião ordinária de 27-3-1995 que fosse notificado o … .

32. Em cumprimento da ordem municipal, o Senhor J. G. apresentou nova planta topográfica em 24-5-1995, o que não obstaria, porém, a que nova planta viesse a ser solicitada em 4-7-1995.

33. Este pedido foi satisfeito em 8-11-1995 com a apresentação de nova planta topográfica.

34. Ainda assim, seria o técnico e autor do projecto, convocado em 20-11-1995 para pessoalmente esclarecer a relação entre as plantas topográficas.

35. 0 processo recebeu novo aditamento à planta topográfica, em 18-12-1995.

36. Veio a ser elaborada informação técnica, em 4-1-1996, respeitante ao projecto de arquitectura com o seguinte teor:
“Quanto ao projecto em si, nada há a opor.
Quanto à implantação na planta topográfica, chamo a atenção que o afastamento em relação à extrema do terreno vizinho situado a norte é apenas de 1,5 metros, pelo que deixo este ponto à consideração superior.”
No entanto, indicaram-se os projectos de especialidade a apresentar.

37. Sobre esta informação veio a ser proferido despacho, por parte do Senhor Director do Departamento Técnico, onde se lê:
“Não deverá ser deferido por o afastamento à extrema do vizinho não permitir o cumprimento do artº 60º do RGEU de forma equitativa para ambos os confrontantes. Se no entanto o vizinho declarar não se opor à obra, não se vê inconveniente”.

38. Presente à reunião de Câmara de 8-1-1996, foi deliberado indeferir o requerimento de legalização, remetendo para a posição do Senhor Director Departamento Técnico, sem que, no entanto, tenha sido deliberado notificar o requerente para suprir a invocada falta de anuência por parte do proprietário confinante a norte.

39. Do ofício n.º…., comunicando o indeferimento do pedido ao interessado, não resulta qualquer prazo fixado para obter o mencionado acordo com o vizinho.

40. Em 18-3-1996, o Senhor ….. foi notificado de novo embargo relativo a obra edificada na mesma propriedade. Desta vez, de um armazém, registando-se como actual estado da obra o seguinte:
“paredes levantadas em blocos exteriores e placa de tecto colocada, sem divisórias interiores”.
41. Foi intimado a demolir voluntariamente, no prazo de cinco dias, as obras cuja legalização fora indeferida, pelo que foi notificado pela GNR do teor do despacho em 15-5-1996.

42. Em 24-5-1996, teve lugar reunião, no Governo Civil de Braga, entre o Exm.º Presidente da Câmara Municipal, o Senhor ….. e o Exm.º Governador Civil do Distrito, de onde terá resultado, segundo informação municipal, um acordo de venda do prédio onde se localizavam as construções ilegais pelo preço de Esc. 10 000 000$, do mesmo passo que se deu conta ao interessado da faculdade de audiência prévia.

43. 0 Senhor ….. veio a ser notificado pela GNR, em 25-5-1996, do teor de um despacho proferido em 23-5-1996, facultando audiência dos interessados, dentro de 15 dias, nos termos do disposto no art.º 100.º do CPA.

44. Seguiu-se nova notificação, em 29-5-1996, por ordem municipal, com vista à realização da escritura pública de compra e venda, aprazada para 31-5-1996.

45. O contrato não veio a ser celebrado, uma vez que à data e hora fixadas não compareceu o Senhor J. G. no Cartório Notarial de Vila Verde.

46. Constam do processo certidões de novas notificações pessoais do Senhor …, de 6-6-1996, para audiência prévia, relativa à ordem de demolição referida no n.º 41 (supra), e de 18-6-1996, referente ao armazém.

47. Nada se contém no processo que referencie o exercício da faculdade de audiência dos interessados, seguindo-se nova ordem de demolição voluntária, proferida em 4-7-1996, “de um edifício em madeira”, notificada ao Senhor …, e aos ocupantes (Senhor ….. e agregado familiar) em 13-7-1996.

48. Em 15-7-1996, a Câmara Municipal foi informada pelo respectivo Presidente do estado em que se encontrava o assunto, indicando que ainda não fora possível notificar o Senhor … .

49. Por fim, é ordenada, por despacho do Exm.º. Presidente de 30-7-1996, a demolição coerciva “da barraca de madeira e do muro”, designando, para o efeito, a data de 23 de Agosto, pelas 10 horas.

50. Do despacho retiram-se os fundamentos seguintes:
a) indeferimento do pedido de legalização da obra;
b) falta de licenciamento municipal da construção e utilização;
c) dever jurídico vinculado de ordenar a demolição; e,
d) nada ter sido obstado pelos interessados na fase de audiência prévia.

51. Também o armazém contíguo foi objecto de ordem de demolição coerciva, na mesma data e com fundamentos semelhantes, a que acresce o de não ter sido requerida a legalização.

52. Em conformidade com o disposto no Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio foi requerido à EN-Vila Verde, em 22-8-1996, que interrompa o fornecimento de energia eléctrica ao local.

53. As demolições ordenadas vieram a ser executadas em 23-8-1996, por empresa contratada, e sob fiscalização municipal, acompanhada por elementos das forças de segurança requisitados à GNR.

54. Consta do processo uma informação dos funcionários que acompanharam as operações, dando conta dos impasses sofridos em resultado da oposição ao realojamento dos ocupantes, por parte de populares concentrados em Cervães, sem que, porém, isso tenha obstado à execução das ordens administrativas e à remoção de duas caravanas que se encontravam no local. Da mesma informação, consta descrição dos bens móveis retirados e depositados à guarda do município.

III-Do Direito Aplicável

55. De acordo com o disposto no art.º 1.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, encontram-se ” sujeitas a licenciamento municipal todas as obras de construção civil, designadamente novos edifícios e reconstrução, ampliação, alteração, reparação ou demolição de edificações, e ainda os trabalhos que, não possuindo natureza exclusivamente agrícola, impliquem alteração da topografia local”.

56. Os interesses públicos atingidos em presença de obras desconformes com a regra do licenciamento não se bastam com a simples repressão contra-ordenacional (art.º 54.º), importando, bem assim, que os municípios, através dos seus órgãos competentes, providenciem pela reintegração da legalidade urbanística, quando infringida.

57. Como tal, conferem-se ao presidente da câmara municipal três poderes cujo exercício visa promover a reintegração da ordem urbanística: o de ordenar o embargo, o de decretar a demolição e o de intimar para que os terrenos sejam repostos de acordo com as condições que se encontravam antes do início das obras (art.ºs 57.º e 58.º).

58. A estes acresce um quarto poder com a mesma finalidade, o qual, contudo, não implica, por si só, a destruição total ou parcial da obra em infracção. Trata-se do poder de vir a aprovar obras que se encontrem executadas, embora sem licença, ou ao arrepio da licença outorgada (art.º 1670 do Regulamento Geral das Edificações Urbanas).

59. Este poder constitui um corolário do princípio da proporcionalidade, pois pretende evitar-se o excesso de virem a ser demolidas obras que preencham os requisitos urbanísticos substantivos, ou seja, obras que se mostrem conformes com os critérios de estética, salubridade, segurança e ordenamento do território.

60. A articulação entre estes quatro poderes não é arbitrária, nem tão pouco envolve discricionariedade optativa. Constituem poderes vinculados, como se admite, hoje, pacificamente na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, sem prejuízo de alguma margem de livre apreciação na verificação dos pressupostos de facto enunciados nas respectivas previsões legais, a qual, essa sim, é por vezes confundida com discricionariedade (Ac. STA 1ª Secção, de 11-6-1987, BMJ (368), p. 387 e Ac. STA 1ª Secção, de 6-11-1990, AD. n.ºs 13-14, p. 35.

61. Assim, desde que uma obra ilegal seja passível de legalização, tem o presidente da câmara municipal o dever de facultar ao infractor a possibilidade de obter a sua aprovação, em termos que salvaguardam o interesse público e, concomitantemente, causam menor prejuízo ao particular.

62. E com o mesmo sentido que se contém no enunciado do art.º 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, um pressuposto condicional:

“O presidente da câmara municipal, sem prejuízo das atribuições cometidas por lei a outras entidades; pode ainda, quando for caso disso, ordenar a demolição da obra (…)”.

63. Isto significa que antes de ordenar a demolição de uma obra desprovida da necessária licença, o presidente da câmara municipal tem de percorrer vários passos:
a) esgotar os efeitos visados com o embargo (a apresentação voluntária de projecto e requerimento para licença), se for o caso de a obra poder, ainda, ser embargada;
b) emitir juízo sobre a susceptibilidade de legalização da obra ou pedir à câmara municipal que emita esse juízo;
c) aferida a susceptibilidade, notificar o particular para apresentar projecto, se mostrar necessário, e fixar-lhe um prazo; e
d) aprovar ou indeferir o pedido que vier tempestivamente a ser apresentado (ou remetê-lo à câmara municipal, quando for este o órgão competente), depois de instruído com os pareceres necessários de entidades exteriores ao município.
Sem licença, desconforme com a licença, excedendo ou ficando aquém dos limites do projecto aprovado com a licença. Trata-se dos casos relativamente aos quais é incompetente o presidente da câmara municipal para aprovar a legalização (cfr. art.º 165.º. corpo do artigo e § 7.º com a previsão do corpo do art.º 167.º. ambos do RGEU). Supletivamente. aplica-se o prazo geral de quinze dias. previsto no art.º 71. n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo.

64. A preterição de qualquer um destes passos e os vícios que possam ter lugar em cada um deles, determinam a invalidade da própria ordem de demolição.

65. Concluído pela inevitabilidade da demolição, impõe-se ao presidente da câmara municipal seguir, fielmente, o procedimento disciplinado no Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio, sem prejuízo de cumprir, preliminarmente, o dever de facultar audiência prévia dos interessados (art.º 58.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro).

66. Em primeiro lugar, a ordem de demolição tem de fixar “os trabalhos a realizar pelo dono da obra, bem como o prazo para o inicio e conclusão dos mesmos” (art.º 6.º, n.º 1).

67. Em segundo lugar, é determinado no art.º 6.º, n.º 2 que incumprido o prazo fixado, deverá ser executada coercivamente a demolição a expensas do infractor, precedida da tomada de posse administrativa do terreno.

68. No art.º 7.º encontram-se descritas as formalidades que condicionam o acto de execução, visando garantir os direitos e legítimos interesses dos titulares de direitos sobre as construções a demolir, nomeadamente, por forma a fazer respeitar pelo acto de execução os limites do objecto definido no acto exequendo.

69. Temos pois que o dono da obra e os titulares de direitos reais sobre o terreno serão notificados do acto que tiver determinado a posse administrativa, por meio de carta registada com aviso de recepção (art.º 7.º, n.º 2).

70. Por outro lado, prevê-se que a tomada de posse administrativa tenha lugar com a elaboração do respectivo auto, “o qual, para além de identificar os titulares de direitos reais sobre o terreno e a data do acto administrativo referido no número anterior, especificará o estado em que o terreno se encontra no momento da posse, incluindo a descrição de outras construções que aí possam existir, e ainda a indicação dos equipamentos que não tiverem sido selados “(art.º 7.º, n.º 3).

71. Esta formalidade – essencial para garantir os direitos dos administrados -corresponde, no seu conteúdo, à vistoria ad perpetuam rei memoriam estabelecida no Código das Expropriações (art.º 19.º, n.º 1, alínea b) ), “destinada a fixar os elementos de facto susceptíveis de desaparecerem e cujo conhecimento seja de interesse ao julgamento da processo”.

72. Em síntese, deve reter-se que o poder de ordenar a demolição por falta de licença municipal da obra tem, por um lado, de obedecer ao procedimento administrativo acabado de descrever, e por outro, de confinar-se à verificação dos pressupostos de facto e de direito resultantes da lei. Ao reconhecer-se o poder de ordenar a demolição como um poder vinculado, está a querer afirmar-se que o órgão competente deve praticá-lo sempre que observe certos pressupostos de facto e de direito, mas também quer significar que não deve, nem pode, exercer esse mesmo poder quando estes pressupostos não se mostrem presentes.

73. Ver-se-á seguidamente se a Câmara Municipal de Vila Verde cumpriu, ou não, com este regime, e se o acto que determinou a execução coerciva da ordem de demolição destinada ao Senhor …. preenche, ou não, os requisitos de validade.

IV-Do Direito Aplicado aos Factos

A) Do incumprimento das regras procedimentais fixadas no Decreto-Lei n.º 92/95. de 9 de Maio

74. Cumpre começar por apontar que o procedimento disciplinado no Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio, não foi respeitado pelos serviços camarários, nem pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal.

75. Com efeito, se é certo que a obra não se encontrava legalizada no momento em que foi proferido despacho ordenando a demolição coerciva (30-7-1996) e se é certo, por outro lado, não ter sido cumprido o prazo fixado pelo município ao infractor para demolir voluntariamente (dez dias úteis contados da notificação ocorrida em 4-7-1996, posto que a anterior ordem, de 15-5-1996, não fora precedida de audiência dos interessados), o que não pode postergar-se é o facto de não ter tido lugar a notificação dos interessados da tomada de posse administrativa pelo município, imposta, conforme se viu, pelo disposto no art.º 7.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio.

76. Cumprida não foi também a exigência de realização de uma vistoria ad perpetuam rei memoriam, reduzida a auto, em momento anterior ao do início da execução das operações de demolição.

77. Do auto lavrado apenas consta registo das operações de demolição, em si, e dos contactos mantidos no local com o Exm.º. Governador Civil de Braga e com as forças de segurança. Dá-se conta, simplesmente, da “demolição de um armazém, uma barraca em madeira e um muro, pertencentes ao Senhor… “, sem que se especifique o estado em que o terreno se encontrava, incluindo a descrição de outras construções que aí pudessem existir (v.g. um tanque de rega).

78. É de convir que a referência a uma barraca de madeira é de pouco rigor e não se compagina com as designações encontradas em outros pontos do processo:
a) o requerimento de legalização, de 21-9-1994 (cfr. n.º 27) descreve “uma construção unifamiliar pré-fabricada, em madeira, composta por cozinha, sala comum, três quartos e instalação sanitária “,
b) quanto ao armazém, indicava-se na comunicação da ordem de
embargo ao interessado, de 18-3-1996, o estado da obra como “paredes levantadas em blocos exteriores e placa de tecto colocada, sem divisórias interiores”.
c) a ordem de demolição voluntária, de 4-7-1996, reporta-se a “um edifício em madeira”.

79. Ora, edifício em madeira ou barraca de madeira são expressões linguísticas que designam realidades bastante diversas: “A palavra edifício tem como radical a palavra latina “oedis” , com que se designava a casa de habitação, especialmente nas povoações.” (CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil, XII, p.68). Acresce que existem pavilhões pré-fabricados, desmontáveis, construídos a título transitório, sobre cuja necessidade de licenciamento podem ocorrer dúvidas (cfr. Ac. Rel. Lisboa, de 8-3-1988, apud COSTA, António Pereira da, Regime Jurídico de Licenciamento de Obras Particulares – Anotado, Coimbra, 1993, p. 25).

80. É por razões desta ordem que o legislador se mostrou particularmente criterioso com os órgãos autárquicos competentes em matéria de formalidades preparatórias da demolição.

B) Dos princípios da boa-fé e da igualdade na prática administrativa adoptada

81. A Administração Pública não se encontra obrigada a tudo fazer para salvar da demolição uma obra contraventora. Ao que se encontra obrigada é a agir com lealdade e segundo critérios iguais quando em face de situações materialmente idênticas.

82. Desconhece-se se a Câmara Municipal de Vila Verde pretende erradicar do concelho, quanto antes, todas as construções não licenciadas ou indevidamente licenciadas que, eventualmente, se possam encontrar sobre solos classificados na Reserva Agrícola Nacional (RAN).

83. Embora o registo da escassez de outras demolições ordenadas pelo município a construções ilegais (a última há cerca de sete anos) não invalide, por si só, a demolição ordenada ao Senhor J. G., dado que a igualdade não procede no campo da ilegalidade, é de concluir que a Câmara Municipal revelou maior empenho neste caso quanto à reintegração da legalidade infringida do que em outros casos descritos em processos instruídos na Provedoria de Justiça. Acresce que na situação ora analisada se mostrava extremamente dificultado o realojamento de pessoas e bens, aconselhando, sem grave prejuízo do interesse público, que se aguardasse a recuperação da tranquilidade pública visivelmente atingida, de acordo com as imagens da comunicação social e com o depoimento do Exm.º. Governador Civil.

84. Parece elucidativo transcrever o seguinte trecho do auto de demolição:
“Entretanto fomos avisados pelo Sr. Governador Civil, para aguardarmos uma vez que este iria resolver a situação conflituosa existente na freguesia de Cervães, o que até cerca das 13 horas não se tinha verificado.
Entretanto toda a família do Sr. J. G., tinha-se instalado no armazém que iria ser demolido, levando com os mesmos alguns haveres que restavam no local.
Contactámos então, o Comandante das Forças de Segurança existentes no local, comunicando-lhe que teríamos de dar cumprimento ao despacho do Sr. Presidente da Câmara, no sentido de proceder às referidas demolições, tendo o mesmo comunicado para aguardarmos uma vez que este iria solicitar mais elementos de segurança para o local.
Chegados os reforços solicitados, cerca das 13, 30 horas, e depois do despejo dos prédios, procedeu-se às respectivas demolições”.

85. Por seu turno, no procedimento que concluiu pelo indeferimento do pedido de legalização requerido pelo Senhor ……, não pode o Provedor de Justiça deixar de assinalar alguma incompreensão pelo facto de só após terem sido obtidos os pareceres da Autoridade Sanitária e Serviço Nacional de Bombeiros, só após ter sido notificado o interessado para, por três vezes (em 27-3-1995, 4-7-1995 e 20-11-1995) aperfeiçoar o requerimento, só depois de se ter observado “a circunstância de o muro exterior não limitar a propriedade, situação invulgar, mas a que o requerente tem pleno direito” (informação técnica de 19-10-1994), só após tudo isto, é que vem a Câmara Municipal concluir pela indevida implantação no prédio por incumprimento de distancias entre construções.

86. Este modo de agir não se coaduna com o sentido do princípio da boa-fé, segundo o qual deverá a Administração ponderar os valores fundamentais do Direito, em especial, “a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa” (art.º .6.º-A, n.º 2, alínea a) do Código do Procedimento Administrativo), o que determina o princípio procedimental de começar por se apreciarem os aspectos essenciais ( v.g. localização e implantação).

87. Os órgãos autárquicos têm de mostrar-se intransigentes com manifestações mais ou menos explícitas de intimidação por parte das populações, por forma a evitarem a infracção dos citados princípios da boa fé e da igualdade. Por outro lado, as razões de segurança, de ordem pública e a necessidade da perseguição do crime escapam por completo às competências municipais.

C) Da susceptibilidade de legalização das obras em questão

88. Como se viu, resulta da articulação entre a disposição do art.º 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, e a do art.º 167.º do RGEU que a demolição de uma obra ilegal pode ser evitada por meio da sua legalização, desde que seja formulado um juízo positivo a respeito do cumprimento “dos requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade”.

89. Teremos de analisar os fundamentos do indeferimento do pedido de legalização, vertido em deliberação camarária de 8-1-1996, para conhecermos da sua validade. Em boa parte, a validade da ordem de demolição assenta na validade do acto que indefere o pedido formulado ao abrigo do art.º 167.º do RGEU.

90. O indeferimento aprovado pela Câmara Municipal louva-se nas razões constantes de informação técnica do Senhor Director do Departamento Técnico, transcritas supra (n.º 37).

91. Estes fundamentos partem do entendimento sobre o disposto no art.º 60.º do RGEU, segundo o qual, para que possam respeitar-se as distâncias mínimas entre fachadas de edificações em terrenos confinantes (10 metros), deverão os titulares de direitos de construção sobre esses mesmos terrenos repartir entre si o encargo resultante da necessidade de preservar uma faixa “non aedificandi”.

92. Na verdade, são de acompanhar os propósitos de repartição equitativa das distâncias a salvaguardar por razões de salubridade, desde que seja possível construir edificações urbanas no prédio confinante, muito embora se reconheça que o meio mais idóneo para se conter esta disposição deveria ser o alvará de loteamento, o plano de pormenor ou o regulamento municipal de obras particulares.

93. Já não se podem acompanhar as consequências que a Câmara Municipal retira deste entendimento, como não se pode seguir, também, a errónea qualificação da natureza jurídica da licença de construção em que o mesmo órgão incorre.

94. Dos factos descritos, pode retirar-se que o motivo do indeferimento residiu no incumprimento por parte da fachada posterior (tardoz), voltada a Norte, de uma margem de cinco metros que habilite a preservação da distância de dez metros estatuída no art.º 60.º do RGEU caso venha a ser levantada construção no prédio confinante.

95. No Acórdão de 17-5-1990, tirado na 1ª Secção do STA, concluiu-se em sentido que nada abona em favor desta concepção articulada pelo município (vide Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo. n.º 374, 1993, p. 133 e segs.):
“Impõe-se, assim, concluir que no art.º 60.º do RGEU, não se prevê a distância entre fachadas posteriores de prédios que, por esse lado, se opõem entre si, ainda que nelas existam vãos de compartimentos de habitações”.

96. Sufraga-se, porém, neste acórdão, interpretação cujos alicerces não me parecem suficientemente sedimentados, antes devendo aplicar-se a regra do art.º 60.º à generalidade das fachadas de edificações, mas com uma importante ressalva, a qual resulta expressamente da lei – encontrarem-se, nessas fachadas, vãos de compartimentos destinados à habitação.

97. A fachada posterior em causa exibia um vão de compartimento de habitação situada a uma distância de 1,5 metros da extrema, o que importaria, para o proprietário do terreno confinante a norte, querendo, e podendo, construir edificação habitacional, uma de duas coisas: se pretendesse que na fachada voltada a sul fossem abertos vãos de compartimentos de habitação, teria de recuar 8,5 metros dentro do seu terreno (8,5 metros + 1,5 metros = 10 metros); se quisesse aproximar-se da extrema sul, não poderia abrir os referidos vãos, havendo, nesse caso, de respeitar 1,5 metros, por forma a salvaguardar o disposto no art.º 73.º do RGEU.

98. Ora, daqui não se retira que, inexoravelmente, tivesse que ser determinada a demolição da edificação em madeira do Senhor J. G.. Bastaria fazer precludir o pressuposto de facto que alimenta toda a motivação municipal: fechar o vão.

99. Encerrado o vão, teríamos uma fachada cega, uma simples empena. Não haveria lugar para a aplicação do disposto no art.º 60.º do RGEU, pois, como se viu, este inclui na sua previsão a necessidade de duas fachadas confrontantes, dotadas, ambas, de vãos de compartimentos de habitação.

100. Ao vizinho do prédio situado a norte, caberia, tão só, respeitar os três metros a que se reporta o preceituado no art.º 73.º do RGEU, guardando, desde a sua extrema 1,5 metros (1,5 metros + 1,5metros = 3 metros), permitindo-se-lhe abrir vãos de compartimentos de habitação em toda a extensão. Nenhum prejuízo adviria para o vizinho, nem para o interesse público.

101. Nem se diga que ao ser determinado o entaipamento do vão se frustraria o cumprimento do disposto no art.º 71.º, n.º 1 do RGEU, onde se fixa o dever de praticar vãos de iluminação e ventilação em parede dos quartos, salas e cozinha, pois, a realização de pequenos ajustamentos interiores lograria o efeito de manter iluminados e ventilados todos os compartimentos habitacionais, sendo certo, por outro lado, que ventilação transversal se mostrava já garantida (art.º 72.º do RGEU).

102. Devo fazer notar que este meio, permitindo, legitimamente, evitar a demolição, não é desconhecido dos serviços técnicos da Câmara Municipal de Vila Verde. No processo de obras n.º 94/95, onde figura como requerente o Senhor A…, pode observar-se informação, de 6-7-1995, que revela ter a Câmara ponderado a solução apontada noutros casos semelhantes:
“O projecto inicial foi indeferido por contrariar o art.º 60.º do RGEU o presente aditamento apresenta as fachas cegas (sem vãos de abertura),pelo que penso este ponto estar ultrapassado.”
Informação que obteve aprovação do Senhor Director do Departamento Técnico. por despacho de 12-7-1995.

103. A decisão de indeferimento do pedido de legalização da obra demolida, como se observa na deliberação municipal que remete para o despacho do Senhor Director do Departamento Técnico, ficou condicionada resolutivamente à obtenção de acordo com o vizinho do prédio confinante a norte.

104. Incorre a Câmara Municipal em erro indesculpável, e fazendo, além do mais, representar na consciência do infractor que a legalização da sua obra passaria, necessariamente, pela anuência de um terceiro particular.

105. A licença de construção é um acto de policia urbanística. Se para ser concedida (ou o seu sucedâneo resultante de legalização a posteriori) ficar dependente da aquiescência de um particular, isso remete a Câmara Municipal para o exercício de um poder que se lhe encontra vedado: o de dirimir conflitos de interesses particulares, tomando posição em favor de um ou outro vizinho, e segundo finalidades que não são de ordem pública.

106. A licença de construção não é um acto de composição de potenciais conflitos entre titulares de relações jurídicas reais de vizinhança. O que a licença de construção não pode é lesar os direitos e interesses legítimos do vizinho, enquanto administrado. Isso seria o caso de se permitir derrogar a distância mínima entre fachadas com vãos de compartimentos de habitação, mesmo que mediante acordo entre particulares. O interesse público em impedir que se perpetuem edificações implantadas de modo insalubre não pode ceder perante as vantagens auferidas por dois particulares num dado momento histórico.

107. As disposições urbanísticas que a Câmara Municipal tem de garantir são indisponíveis, pois, de outro modo, estaria a renunciar ao exercício de uma competência, transgredindo o disposto no art.º 2.º, n.º 1 do CPA. Condicionar o deferimento à anuência do vizinho leva à prática de acto nulo (art.º 29.º, n.º 2, idem), por essa mesma razão.

D) Da invalidade das ordens de demolição e do acto que indeferiu o pedido de legalização

108. A deliberação camarária de 8-1-1996 encontra-se viciada por violação de lei, ao fundar-se em erro de direito sobre a aplicação do art.º 60.º do RGEU, dado que não considera aplicar-se este preceito apenas a fachadas com vãos de compartimentos de habitação.

109. Por outro lado, verifica-se erro manifesto na apreciação dos pressupostos de facto que determinam o exercício do poder contido no art.º 167.º do RGEU, comprometendo o princípio da proporcionalidade, posto não se mostrar necessária a demolição. Bastaria encerrar o vão voltado a norte para evitar um prejuízo maior para o Senhor J. G. e demais ocupantes. Devendo apreciar a susceptibilidade de legalização em toda a extensão dos requisitos urbanísticos, estéticos e higio-sanitários, o órgão competente não pode ficar-se pelo simples confronto entre a obra executada e as pertinentes disposições legais e regulamentares aplicáveis, antes havendo de formular um juízo de prognose sobre as medidas que, permitindo salvaguardar o interesse público, evitem o mal maior para o particular, isto é, que obstem à demolição total.

110. A invalidade deste acto de indeferimento gera, por consequência, a invalidade das ordens de demolição praticadas: “Actos consequentes são os actos produzidos ou dotados de certo conteúdo, por se suporem válidos os que lhes servem de causa, base ou pressuposto. (…) São, diríamos, aqueles actos (ou contratos) cuja prática ou sentido foram determinados pelo acto agora anulado ou revogado e cuja manutenção é incompatível com a execução da decisão anulatória ou revogatória” (Oliveira, Mário Esteves de, e AA, Código do Procedimento Administrativo Comentado, II, 1995, Coimbra, p. 160).

111. Como tal, os actos praticados em 4-7-1996 (ordem de demolição voluntária) e em 30-7-1996 (ordem de demolição coerciva) serão nulos, de acordo com o disposto no art.º 133.º, n.º 2, alínea i) do Código do Procedimento Administrativo, logo que o indeferimento de 8-1-1996 seja revogado ou contenciosamente anulado.

112. Mesmo que se pudesse abstrair da relação de consequência, sempre seria inválida a demolição ordenada, também por manifesto erro de apreciação, redundando em violação de lei, já que no art.º 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, se vincula a demolição às situações em que seja caso disso. Viu-se que não era o caso, porquanto a obra demolida era susceptível de legalização em termos bem diversos daqueles que firmaram a decisão de indeferimento de 8-1-1996.

113. Por fim, no campo da invalidade do acto, importa não esquecer que foi postergada pela Câmara Municipal de Vila Verde a aplicação do procedimento previsto no Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio (art.º 7.º, n.ºs 2 e 3), com o resultado de vício de forma (preterição de formalidades essenciais), determinando a ilegalidade dos actos de execução.

V-Da Responsabilidade Civil Extracontratual por Facto Ilícito

114. Visto serem ilegais a ordem de demolição e os actos de execução desta, e ilegal também, conforme se expôs, o indeferimento da legalização, importa saber se da sua prática resulta obrigação de indemnizar para o município, nos termos do disposto no art.º 90.º, n.º 1 da Lei das Autarquias Locais (LAL – Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março), porquanto foram sofridos prejuízos na esfera jurídica dos Senhores J. G. e J. G..

115. Qualquer autarquia local tem de responder civilmente “perante terceiros por ofensa de direitos destes ou de disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes no exercício das suas funções ou por causa desse exercício” (art.º 9.º, n.º 1 da LAL).

116. Admitido que ocorreu dano pela destruição de uma edificação em madeira, de um armazém adjacente, de um muro e de um tanque de rega, e admitido que teve lugar essa demolição em execução de actos administrativos inválidos, importará saber se:
a) o acto é objectivamente imputado ao município;
b) o acto foi praticado no exercício de poderes de gestão pública;
c) o acto praticado é civilmente ilícito;
d) as normas violadas pelo acto de indeferimento do pedido de legalização e pelos actos que ordenaram e executaram a demolição são destinadas a proteger os interesses dos lesados;
e) a lesão perpetrada é causada directa e suficientemente pelo facto; e se
f) o facto foi praticado culposamente.

117. Em primeiro lugar, as operações de demolição são objectivamente imputadas ao município, uma vez que se destinam a executar o cumprimento de um acto administrativo praticado pelo Exm.º. Presidente da Câmara Municipal, através do qual se ordena a sobredita demolição. Os funcionários municipais e os trabalhadores da empresa com quem foi ajustada a empreitada actuam como simples agentes administrativos e representantes do município de Vila Verde (v.g. “Agentes administrativos são os indivíduos que por qualquer título exerçam actividade ao serviço das pessoas colectivas de direito público. sob a direcção dos respectivos órgãos”, Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, II, 1991. Coimbra, p. 641).

118. Em segundo lugar, deve observar-se que o acto praticado corresponde a acto de gestão pública – “toda a actividade da Administração que seja regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para o prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício ou organize os meios necessários para esse efeito” (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, II, 1991, Coimbra, p. 1222).

119. Não deixa dúvidas que a norma que confere aos presidentes das câmaras municipais o poder de ordenarem a demolição coerciva de obras ilegais, confere poderes de autoridade, já que determina a sujeição dos interessados, e visa prosseguir o interesse público na reposição da ordem material em conformidade com a legalidade urbanística.

120. Quanto à ilicitude civil do acto, dispõe-se no art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, que esta resulta directamente da violação de norma legal ou regulamentar pelo acto. Como se concluiu, os actos de execução violaram normas do Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio, sendo certo, por outro lado, que, para além da invalidade da própria ordem, devida a uma errónea apreciação dos pressupostos que condicionam o poder de demolição, fixados no art.º 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, e foi a ordem praticada como consequência de um outro acto ilícito – o que indeferiu a pretensão de legalização da obra – por infracção ao disposto no art.º 167.º do RGEU.

121. Em quarto lugar, observa-se que as normas violadas se destinam a proteger interesses dos lesados. Com efeito, tanto no caso das normas infringidas do art.º 7.º, n.ºs 2 e 3 do Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio, como no caso de violação das regras do art.º 167.º do RGEU e do art.º 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 445/91, não se trata de normas de organização interna dos serviços, antes projectando externamente os seus efeitos, quer por via da criação de situações de sujeição aos administrados, como por lhes conferirem situações jurídicas activas (interesses legítimos na legalização e na conservação da obra).
A protecção destes interesses fica compreendida nas suas esferas de protecção.

122. Em quinto lugar, dá-se por demonstrada a causalidade entre o acto ilegal e o prejuízo dos lesados. A demolição executada constituiu causa adequada da lesão sofrida.

123. Por fim, em sexto lugar, terá de analisar-se o elemento subjectivo da imputação, pois se exige que acto tenha sido culposamente praticado (art.º 90.º, n.º 1 da LAL).

124. Ora, culposo não é apenas o acto praticado com a intenção deliberada de causar a lesão. A mera culpa ou negligência são condição suficiente para se dar como imputado subjectivamente o acto.

125. Nesta matéria, remete-nos o art.º 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, para o disposto no art.º 487.º do Código Civil, o qual, por sua vez, estabelece que “a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstancias de cada caso.”

126. Não se mostra razoável admitir que o Presidente da Câmara Municipal de Vila Verde desconheça ou postergue, simplesmente, a aplicação das regras do procedimento de demolição contidas no Decreto-Lei n.º 92195, de 9 de Maio. Conferido a este órgão o poder de ordenar a demolição de obras ilegais (art.º 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, e art.º 53.º, n.º 2, alínea 1] da LAL) procede com manifesta falta de zelo e prudência quando desrespeita formalidades essenciais para o exercício dessa competência.

127. Por outro lado, havendo o mesmo órgão de formular juízo sobre a susceptibilidade de legalizar uma obra ilegalmente executada, por forma a evitar a sua demolição, e com esta, um prejuízo desnecessário para o particular, esse juízo deve ponderar cuidadosamente todos os elementos presentes, cuidando de apreciar que medidas permitem conceder a legalização.

128. O juízo produzido pela Câmara Municipal, em 8-1-1996, fundado em informação técnica, mostra-se superficial, posto que evitou formular uma prognose relativa às possibilidades de legalização. No art.º 167.º do RGEU exige-se, como se viu (supra, n.º 109) não apenas um confronto entre a obra e os requisitos legais e regulamentares de ordem urbanística, estética e higio-sanitária, como também uma previsão razoável sobre as virtualidades dessa mesma obra vir a conformar-se com estes mesmos requisitos, de modo a permitir um mal menor que a demolição total.

129. A falta desta prognose revela negligência do órgão decisor e dos serviços de apoio à decisão, tanto mais notória quanto, como se viu, no processo n.º 94/95 (vide supra n.º 102), os serviços técnicos admitiram que o encerramento de um vão permitia obstar à aplicação da distância preceituada no art.º 60.º do RGEU relativamente aos limites do prédio confrontante.

130. É de concluir, então, que o município de Vila Verde deve indemnizar justamente os lesados …. pelos danos sofridos como causa directa da demolição ilegalmente ordenada, pois o órgão competente, cuja vontade é imputada ao município agiu culposamente, infringindo regras destinadas a tutelar interesses dos lesados, tudo isto, no âmbito de uma actividade de gestão pública.

VI-Conclusões

Tudo exposto, importa recensear as conclusões:
1ª- São ilegais os actos de execução praticados em cumprimento dos despachos do Exm.º. Presidente da Câmara Municipal de Vila Verde que ordenaram a demolição de construções edificadas pelo Senhor …., em terreno do Senhor …., porquanto não foram precedidos da observância do dever de notificação da tomada de posse administrativa, nem da vistoria ad perpetuam rei memoriam, tal como se estabelece no art.º 7.º, n.º 2 e 3 do Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio.
2ª- É inválido o acto que indeferiu pedido de. legalização de um edifício habitacional em madeira e muro adjacente, sitos em terreno do Senhor J. G., no lugar de Veiga, Oleiros, Vila Verde, porquanto reflecte erro de direito na interpretação do disposto no art.º 60.º do RGEU, do mesmo passo que revela erro manifesto na apreciação das possibilidades de legalização (art.º 167.º do RGEU), evitando o exercício do poder de demolição (art.º 58.º, n.º 1 do Decretos-lei n.º 445/91, de 20 de Novembro).
3ª – São inválidas as ordens de demolição (coercivas e voluntárias) já por serem consequentes de acto anulável (art.º 133.º, n.º 2, alínea i) do CPA), já por violarem a norma que confere o poder de demolição (art.º 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro), vinculando-o a um elemento não apreciado (“quando for caso disso”).
4ª – Os referidos actos inválidos, foram culposamente praticados no âmbito de uma actividade de gestão pública. Devem a sua invalidade à violação de normas destinadas a tutelar interesses dos lesados e mostram-se causalmente adequados à produção do dano sofrido. Dão lugar, de acordo com a conjugação do disposto no art.º 90.º, n.º 1 da LAL (Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março) com as regras contidas nos art.ºs 4.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, ao dever de indemnizar.
5ª – Quer no procedimento que culminou com o indeferimento do pedido de legalização, quer no procedimento que ordenou e fez executar as demolições, a Câmara Municipal de Vila Verde não cumpriu com perfeição o dever de tratamento igual dos munícipes titulares de direitos sobre obras ilegais, nem se vinculou a deveres de boa-fé que imporiam suster as operações até que a ordem pública restabelecida permitisse o realojamento do Senhor …. e seus familiares.

Embora estes aspectos não afectem determinantemente a validade dos actos mencionados, principalmente, por não prevalecer a desigualdade sobre a ilegalidade em que se mantinham as obras, não fica o Provedor de Justiça sem registar este ponto e reprovar esta actuação, exortando a Câmara Municipal de Vila Verde a providenciar pela breve reintegração de outras lesões urbanísticas que no concelho se verifiquem, usando, porém, em todo o caso, de prudência e lealdade no cumprimento desse dever.
6ª – Não foi alheia a actuação dos órgãos autárquicos visados ao exercício de meios de persuasão usados por numerosos membros da comunidade local contra as construções ilegalmente erigidas, associando-as a um sentimento crescente de quebra da segurança na via pública, quando não cabe à Autarquia substituir-se às forças de segurança, nem aos Tribunais, muito menos, lançando mão de medidas de policia urbanística, para esse efeito. O crime tem de ser denunciado e participado aos órgãos de polícia criminal e sempre que se procede a imputações difusas corre-se o risco de, com facilidade, se generalizar a expiação. No passado, por usura ou prática de artes mágicas apontadas a comunidades culturalmente autónomas, no presente, pela identificação com actos de narcotráfico, pode cair-se na tentação de fazer ceder princípios fundamentais do Estado de direito democrático: o princípio da proibição da discriminação e o princípio da culpa.

Assim, no exercício dos poderes que me são conferidos pelo disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, e como tal RECOMENDO:

a) a revogação, por ilegalidade, da deliberação que, em 8-1 1996, indeferiu o pedido de legalização;

b) a declaração da nulidade de todas as ordens de demolição praticadas como consequência do referido indeferimento;

c) a reconstituição da situação que foi objecto das demolições executadas em 23-8-1996 e o pagamento de justa indemnização aos lesados relativamente aos danos não integralmente reparados por essa via.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel