Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia
Processo:R-532/92
Número: 71/A/96
Data:2208.1996
Área: A1

Assunto:URBANISMO E OBRAS – OBRAS PÚBLICAS – ALVARÁ DE LOTEAMENTO – PARQUE INFANTIL – ÁREA DE LAZER – INVIABILIDADE – CARGA E DESCARGA DE MERCADORIAS.

Sequência:Acatada

I-Exposição de Motivos

1. Por um conjunto de moradores na Rua D. Afonso II, nessa cidade, foi apresentada queixa a este órgão do Estado contra os inconvenientes resultantes da utilização, para acesso dos veículos de abastecimento do Lar de St.ª Isabel, de uma parcela de terreno, destinada, nos termos da planta anexa ao alvará de loteamento n.º 63/78, a parque infantil.

2. Segundo alegado na mencionada queixa, não obstante não ter sido construído o parque infantil, tal área encontrou-se afecta à utilização prevista na planta anexa ao alvará de loteamento até 1983, altura em que, tendo sido realizadas obras no Lar de St.ª Isabel, foi efectuada uma abertura no muro respectivo e aí colocado um portão, tendo em vista permitir o acesso de diversos tipos de veículos ao citado estabelecimento.

3. Em resultado das diversas diligências desenvolvidas pelos queixosos junto do Vereador do Pelouro, foi por este autorizada a colocação de espigões de ferro e cimento (mecos) de modo a impedir a circulação de veículos (ofício n.º …).

4. Carecendo a obra de licença, foi o presidente do Lar de St.ª Isabel notificado em 27.08.1991, “a proceder, no prazo de 15 dias, ao tapamento do portal, aberto clandestinamente, sob pena de acção coerciva, caso não cumpra”.

5. Não obstante o teor da posição camarária de expresso reconhecimento da ilegalidade urbanística existente, determinou o Exm.º Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia a remoção dos mecos colocados no terreno em causa, por forma a permitir o acesso de viaturas para abastecimento do reservatório de gás que alimenta o sistema de cozinhas e aquecimento do Lar de St.ª Isabel, com fundamento no manifesto interesse que tal acesso reveste para o citado estabelecimento, o qual desempenha uma relevante função de assistência na recolha de muitos idosos do concelho.

6. Incumprida a notificação efectuada para efeitos de tapamento da abertura no muro e não tendo sido coercivamente executadas as obras, nos termos do disposto no art.º 167.º, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, executada a ordem de remoção dos mecos e afecta a área em causa à circulação de veículos, contraria esta situação a utilização constante do alvará de loteamento para a parcela de terreno em causa.

7. Assim, analisada a questão em face do regime jurídico relativo ao licenciamento de operações de loteamento e de obras particulares, à data vigente, concluí que existem elementos que permitem a este Órgão do Estado intervir junto da Câmara Municipal no sentido de ser assegurada a utilização constante do alvará de loteamento.

8. O despacho do Exm.º Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia que determinou a remoção dos mecos colocados no terreno em causa, por forma a permitir o acesso das viaturas, conjuntamente com a falta de execução coerciva da ordem de tapamento do portal clandestino, está, implicitamente, a reconhecer a legalidade na utilização do acesso em causa e a proceder à legalização da obra efectuada sem licença camarária.

9. Mais se acrescentará que tal despacho determina a revogação implícita da ordem de reposição da legalidade urbanística notificada ao Presidente do lar de St.ª Isabel em 27.08.1991 e legaliza, nos termos do disposto no art.º 167.º, as obras em causa.

10. Com efeito, admitida a realização de uma obra sem licença, ou a Câmara Municipal ordena a demolição da obra ilegal ou reconhece que a mesma é “susceptível de vir a satisfazer aos requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade”, devendo para tal efeito obter do interessado a legalização. Assim, nada resta à Câmara senão ordenar a demolição da obra, caso esta não possa vir a ser legalizada ou não venha a sê-lo efectivamente (Acórdãos do STA, de 11.06.1987 e 06.11.1990, in Acórdãos Doutrinais, 322, pp. 1176 e segs, e AJ, n.ºs 13-14, p. 35).

11. Isto significa que, caso não seja exercido o poder de legalização a posteriori (art.º 167.º do RGEU), a discricionariedade optativa do art.º 165.º do RGEU – entre ordenar a demolição ou legalizar – fica reduzida a um poder vinculado de ordenar a demolição.

12. No caso em apreço, veio o Exm.º Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, com o propósito de regular a mesma situação jurídica, proferir um acto cujo conteúdo é inconciliável com a previamente determinada reconstituição da situação material anterior à execução da obra clandestina, e isto porque, “não declarando expressamente a supressão dos efeitos do acto anterior, produz, todavia, consequências jurídicas que, sendo incompatíveis com os feitos produzidos pelo acto anterior, levam à eliminação deste” (Andrade, Robin, A revogação dos actos administrativos, Coimbra, 1969, pp. 37 e 345 e segs.).

13. Verifica-se, assim, não obstante a respectiva invalidade, atenta a natureza vinculada do poder de ordenar a demolição de obras ilegais (no sentido da impossibilidade de revogação de actos praticados no exercício de poderes vinculados, cfr. Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. III, Lisboa, 1985, p. 345), a revogação implícita da ordem de tapamento do portal.

14. Para além dos efeitos destrutivos inerentes ao acto revogatório, produziu este o expresso reconhecimento da legalidade da obra com fundamento no relevante interesse público que representa a possibilidade de acesso ao estabelecimento, determinando a aplicação à situação jurídica de uma nova regulamentação material, qual seja a da legalização a posteriori da obra edificada sem licença, nos termos e para efeitos do disposto no art.º 167.º do RGEU.

15. Consumindo a mera anulabilidade, decorrente da impossibilidade de revogação de actos praticados no exercício de poderes vinculados, o despacho em causa é nulo porque vem atentar contra as prescrições do alvará de loteamento.

16. Não contendo o Decreto-Lei n.º 166/70, de 15 de Abril, norma idêntica à contida no art.º 52.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro, onde se comina com a nulidade os actos administrativos que violem o disposto em alvará de loteamento em vigor, e por aplicação da doutrina de que a nulidade só ocorria nos casos expressamente previstos na lei, seriam meramente anuláveis, por vício de violação de lei, os actos administrativos de licenciamento de obras particulares que dispusessem contra as prescrições de alvará de loteamento.

17. Não obstante, na vigência do Decreto-Lei n.º 166/70, constituía entendimento pacífico do Supremo Tribunal Administrativo e da Procuradoria Geral da República que o licenciamento de obras em desconformidade com as prescrições do alvará de loteamento implicitamente procedia a uma alteração dessas prescrições, pelo que lhes seria aplicável a norma que determinava a nulidade dos actos respeitantes a operações de loteamento urbano que não fossem precedidos de parecer da entidade competente da administração central (art.º 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 289/73, de 6 de Junho, e art.º 65.º, do Decreto-Lei n.º 400/84, de 31 de Dezembro).

18. Cumpre aplicar, no caso em análise, tal entendimento. O alvará de loteamento n.º 63/78, foi sujeito a parecer de entidade externa ao Município, pelo que, de acordo, com a posição citada, o acto do Exm.º Presidente da Câmara que autorizou a manutenção das obras ilegais e reconheceu a licitude da utilização do terreno em causa para um fim diferente daquele que consta da planta anexa ao alvará de loteamento é nulo.

19. Resulta a doutrina exposta do desvalor jurídico que deve merecer o desrespeito do alvará de loteamento pelo acto de licenciamento e de legalização de obras.
Atento o critério do interesse predominantemente protegido ou tutelado no que concerne à determinação do grau de invalidade do acto administrativo (vd, Marcelo Rebelo de Sousa, O valor jurídico do acto inconstitucional, Lisboa, 1988, p. 222), e considerado como primordial, na ponderação dos interesses públicos eventualmente conflituantes, “o interesse público do respeito da legalidade vigente”, em simultâneo “na sua vertente subjectiva de garantia dos direitos dos particulares e na sua vertente objectiva, que só reflexamente se projecta em interesses legalmente protegidos dos administrados”, o acto será nulo.

20. Constituem as operações de loteamento e as obras de urbanização uma das formas mais relevantes de ocupação do solo, quer pelas incidências que possuem ao nível do ordenamento do território, do ambiente e dos recursos naturais, quer pelas repercussões que delas resultam para a qualidade de vida dos cidadãos (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro). Assim, deverá ser entendido como primordial o interesse público de respeito pela legalidade vigente, na sua vertente subjectiva e objectiva, (designadamente em matéria de urbanismo e de protecção do ambiente), quanto aos actos administrativos respeitantes a operações de loteamento, a obras de urbanização e a quaisquer obras de construção.

Pelo exposto, um acto de licenciamento ou de legalização de obras particulares que viole as prescrições de um alvará de loteamento não deverá ser passível de sanação pelo decurso do tempo de modo a não comprometer grave e irremediavelmente o correcto ordenamento do território, no tocante aos termos da divisão da propriedade, ocupação e uso do solo por aquele definidos.

21. A medida que venho a sugerir com a presente a Recomendação não visa pura e simplesmente, a reposição do cumprimento da lei, muito embora este valor seja suficiente. Com efeito a partir de todos os elementos que pôde a Provedoria de Justiça recolher para instrução do presente processo, deve concluir-se que é possível obter a concordância prática dos vários interesses individuais e colectivos em presença. A retoma da utilização devida, beneficiando o lazer das crianças não obsta, de modo algum, ao bom funcionamento do estabelecimento destinado à residência de idosos. Apenas tornará, porventura, menos simples, o acesso de viaturas para carga e descarga de mercadorias, sem que, no entanto, este acesso se torne incomportável. São, pois então, razões de justiça material que também me motivam a formular a presente Recomendação.

II-Conclusões

Em face de quanto fica exposto, entende o Provedor de Justiça exercer o poder que lhe é conferido no art.º 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, e como tal,

RECOMENDO:

Que seja declarada, nos termos do disposto no art.º 134.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, a nulidade do despacho de V.ª Ex.ª que determinou a remoção dos espigões colocados no terreno, por forma a permitir o acesso de viaturas para abastecimento do reservatório de gás do lar de St.ª Isabel e restituída ao terreno a utilização prevista na planta anexa ao alvará de loteamento n.º 63/78 – a utilização como parque infantil.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel