Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas
Número: 26/B/96
Processo: R-3085/96
Data: 19.12.1996
Área: A1

Assunto: CAÇA E PESCA – REGIME CINEGÉTICO ESPECIAL – ZONA DE CAÇA ASSOCIATIVA – DESAFECTAÇÃO – SINALIZAÇÃO – ORDEM PÚBLICA

Sequência: Acatada

I – Exposição de Motivos

1. Foi apresentada ao Provedor de Justiça por uma associação de caçadores uma exposição em que se questiona a desafectação de terrenos de caça integrados em zonas de caça associativas através do procedimento especial previsto (entre outros) nos art.ºs 71.º e ss. do Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, e a ter lugar por força do Acórdão n.º 866/96 do Tribunal Constitucional.

2. Em face da pretensão apresentada, foi ouvido o Governo sobre se iria adoptar alguma medida que, sem contrariar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade contida no referido Acórdão n.º 866/96, conferisse às associações de caçadores a possibilidade de reconstituição das zonas de caça associativas através da obtenção dos acordos dos proprietários dos terrenos anexados ao abrigo das normas inconstitucionais, tendo em vista que os efeitos do Acórdão se mostram de difícil individualização no terreno, podendo daí resultar um complexo de factos potenciadores de conflitos entre proprietários e caçadores e entre estes últimos.

3. Respondeu o Senhor Chefe de Gabinete de Sua Excelência o Secretário de Estado da Agricultura e do Desenvolvimento Rural, através do ofício n.º 6278, de 10.10.96, comunicando que fora pedida ao Tribunal Constitucional a aclaração do Acórdão n.º 866/96, visando esclarecer os seus efeitos, por forma a neutralizar possíveis conflitos, e que a possibilidade de reconstituição das zonas associativas de caça, através da obtenção dos acordos dos proprietários dos terrenos anexados com recurso ao procedimento especial, se encontra admitida no art.º 76.º do Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto.

Foi ainda referido que a Direcção-Geral das Florestas, cumprindo orientações superiores, já exortara as entidades gestoras das zonas de caça associativas a contactarem os proprietários dos prédios incluídos sem acordo, com vista à obtenção do seu expresso consentimento, a fim de diminuir o número de situações a abranger pelo Acórdão quando da sua publicação.

4. O Tribunal Constitucional veio, através do seu Acórdão n.º 866/96, de 4 de Julho de 1996, declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do regime jurídico da caça que permitem a integração nas zonas de caça associativas e turísticas de terrenos, relativamente aos quais, os respectivos titulares não produziram uma efectiva manifestação de vontade no sentido dessa integração, restringindo, por razões de segurança jurídica, e ao abrigo do art.º 282.º, n.º 4, da Constituição, os efeitos da inconstitucionalidade relativamente às zonas de caça associativas, por forma a que os terrenos referidos apenas fiquem delas excluídos a partir da publicação do acórdão e, relativamente às zonas de caça turística, de modo a que os terrenos se mantenham nelas integrados até ao termo do prazo da respectiva concessão.

5. Notificado do Acórdão n.º 866/96, veio, com efeito, o Primeiro-Ministro requerer a sua aclaração, questionando o Tribunal Constitucional sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, inquirindo, em especial, se caberia ao Governo tomar qualquer providência no sentido de determinar que os terrenos que foram integrados em zonas de caça do regime cinegético especial, ao abrigo das disposições legais consideradas inconstitucionais, estão delas excluídos ou se, ao invés, seria necessário, para tal, a apresentação de requerimento pelos proprietários.

6. Através do Acórdão n.º 1145/96, de 12 de Novembro, o Tribunal Constitucional desatendeu o pedido de aclaração formulado, por não reconhecer na decisão em causa a existência de qualquer obscuridade. Segundo o Tribunal Constitucional, a decisão – na parte em que limitou os efeitos da inconstitucionalidade – limitou-se a impor que as parcelas integradas nas zonas de caça associativas em causa apenas se considerarão delas excluídas a partir da data da publicação do acórdão, não fazendo alusão à exigência de qualquer comportamento por parte da Administração ou dos proprietários como condição e pressuposto da respectiva desanexação.

7. Nos termos do art.º 282.º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma considerada inconstitucional (n.º 1), salvo decisão do Tribunal Constitucional que, por motivos de segurança jurídica, equidade ou interesse público de excepcional relevo, fixe os efeitos da inconstitucionalidade com alcance mais restrito (n.º 4).

8. A força obrigatória geral traduz-se na vinculatividade para todas as entidades públicas e privadas: os órgãos administrativos e os tribunais não podem mais aplicar a norma declarada inconstitucional e os particulares deixam de a poder invocar nos seus actos jurídico-privados ou em tribunal (JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, II, 3ª ed., Coimbra, 1991, pp. 484-485).

9. Desta forma, a produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não depende de qualquer actuação posterior da Administração ou dos particulares: a nulidade da norma impõe-se a todos os seus destinatários que dela devem retirar as consequências devidas.

10. Claro está que a Administração não fica impedida de tomar as medidas (legislativas ou administrativas) adequadas a colmatar ou erradicar do ordenamento jurídico situações de desequilíbrio ou iniquidade que a remoção da norma inconstitucional tenha proporcionado (uma vez que o contencioso constitucional é de anulação), nem os particulares de lançar mão dos meios (graciosos ou contenciosos) que lhes permitam maximizar o aproveitamento dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

11. No caso vertente, o Tribunal Constitucional restringiu os efeitos da sua decisão, conferindo-lhe, no que toca aos terrenos integrados em zonas de caça associativas com recurso ao procedimento especial, eficácia “ex nunc”, porquanto permite que as normas declaradas inconstitucionais produzam efeitos até à publicação da declaração de inconstitucionalidade.

12. Assim sendo, deve entender-se que os terrenos que foram integrados nas zonas de caça associativas com recurso ao procedimento especial se encontrarão imediatamente excluídos daquelas zonas quando da publicação do Acórdão n.º 866/96, sem necessidade de qualquer actuação da Administração ou dos proprietários para que essa exclusão se produza.

13. Desta forma, com a publicação do Acórdão n.º 866/96, os terrenos em causa deixarão, de imediato, de estar sujeitos ao regime cinegético especial para passarem a estar sujeitos ao regime cinegético geral, permitindo, consequentemente, que todos os caçadores aí pratiquem actos venatórios, quando, anteriormente, só os caçadores das concessionárias das zonas de caça associativas o podiam fazer.

14. Entre as obrigações dos titulares das zonas de regime cinegético especial inclui-se a sinalização das zonas de caça (art.º 73.º, n.º 1, al. a], do Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto), condição da eficácia da proibição de caçar imposta aos caçadores que não sejam membros das associações de caçadores (art.º 28.º do mesmo diploma legal).

15. No entanto as parcelas cuja desafectação é produzida como efeito do sempre citado Acórdão não se encontram individualizadas, nem através de sinalização específica, nem por qualquer outro meio que possibilite a sua identificação por qualquer caçador.

16. Ora, uma vez que as zonas de caça associativas constituídas com recurso às normas inconstitucionais, se verão amputadas, com a publicação do Acórdão n.º 866/96, dos terrenos integrados sem o consentimento expresso dos seus proprietários e sem que tal se reflicta na sua sinalização, não poderão os caçadores que não sejam sócios das concessionárias determinar, com clareza, os locais onde podem caçar.

17. Não será imponderado admitir nesses casos, a ocorrência de conflitos entre as associações de caçadores concessionárias das zonas de caça associativas e os caçadores do regime cinegético geral quanto à determinação dos locais – anteriormente integrados em zonas de caça associativas – onde estes últimos poderão passar a caçar após a publicação do Acórdão n.º 866/96 do Tribunal Constitucional.

18. Assim, considerando que o pedido de aclaração do Acórdão n.º 866/96 foi desatendido, e considerando a necessidade de prevenir a ocorrência de conflitos quanto à determinação dos locais de caça que deixam de estar sujeitos ao regime cinegético especial, entendo que se impõe a tomada, por parte do Governo, de medidas que assegurem a manutenção da ordem pública.

19. Entende-se como desejável que, por forma a obviar às dúvidas quanto ao estatuto cinegético dos terrenos integrados nas zonas de caça associativas constituídas com recurso ao procedimento especial, se pondere a suspensão do exercício da actividade cinegética nas zonas em causa, a partir da data da publicação do Acórdão n.º 866/96, e até que estejam identificadas as parcelas delas excluídas e devidamente reconstituída a sua sinalização.

20. Claro está que a suspensão deverá operar autonomamente relativamente a cada zona de caça associativa: quando estiver concluída a identificação das parcelas a excluir e a reposição da sinalização de uma concreta zona de caça associativa, deverá de imediato ser levantada a suspensão da actividade cinegética que sobre ela impenda.

21. Por fim, permita-me, Senhor Ministro, que expresse a minha consideração, segundo a qual, a ter sido atendida, em toda a sua extensão e em devido tempo, a Recomendação que formulei em 16.08.1994 ao XII Governo Constitucional, boa parte dos problemas que actualmente se deparam estaria dissipada.

22. Pretendo, com isso, ilustrar a função preventiva que pode ter a intervenção conciliadora do Provedor de Justiça evitando a necessidade de recurso à Justiça Constitucional, sem a reservar para situações extremas.

II – Conclusões

De acordo com o exposto e no uso dos poderes que me são conferidos pelo art.º 20.º, n.º 1, al. b), do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO

A adopção das medidas a suspender o exercício da actividade cinegética nas zonas de caça associativas constituídas com recurso ao procedimento especial previsto (entre outros) nos art.ºs 71.º e ss. do Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, desde a data em que venha a ocorrer a publicação do Acórdão n.º 866/96 do Tribunal Constitucional, até que estejam identificadas as parcelas excluídas e reconstituída a sinalização das referidas zonas, a menos que – o que recomendo em alternativa – venha a Direcção-Geral das Florestas, em tempo útil, a proceder ao levantamento da sinalização em terrenos que sejam desanexados por efeito do Acórdão até à data da publicação deste.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL