Presidente da Assembleia da República
Processo:R-3584/94
Número:16/B/96
Data:11.06.1996
Área: A1

Assunto:CULTURA – COMUNICAÇÃO SOCIAL – TELEVISÃO – SERVIÇO PÚBLICO – REGIÕES AUTÓNOMAS – DIREITO À INFORMAÇÃO – DIREITOS CULTURAIS – PRINCÍPIO DA IGUALDADE.

Sequência:Não acatada

I-Exposição de Motivos

A

1. Pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista da Madeira à Assembleia Legislativa Regional daquela Região Autónoma e pelo Sr. Dr. …., residente no concelho da Praia da Vitória, nos Açores, foi-me apresentada queixa contra as condições em que se processa o acesso dos cidadãos residentes nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira ao serviço público de televisão.

2. Em especial, é suscitada a questão da inconstitucionalidade da norma contida no art.º 3.º, n.º 3, alínea i), da Lei n.º 21/92, de 14 de Agosto, diploma que opera a transformação da Radiotelevisão Portuguesa, E.P., em sociedade anónima.

3. Entre as obrigações da concessionária do serviço público de televisão enumeradas no art.º 3.º, n.º 3, consta da citada alínea, a emissão de dois programas de cobertura de âmbito geral, um dos quais abrangerá as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.

4. Obrigado a garantir, nos termos do disposto no art.º 38.º, n.º 5, da Constituição, a prestação de um serviço público de rádio e de televisão e assumindo esta norma a natureza de garantia institucional da preservação de um sector público de comunicação social, pelo menos no domínio da rádio e da televisão, está o Estado adstrito ao cumprimento de um dever objectivo de assegurar uma prestação específica que se traduz no exercício da actividade de rádio e de televisão, nos domínios da produção e da emissão de programas (art.º 3.º, n.º 1, dos Estatutos da Radiotelevisão Portuguesa, S.A., aprovados pelo art.º 11.º, da Lei n.º 21/92, de 14 de Agosto).

5. Por seu turno, na actividade de produção normativa destinada a cumprir o desiderato constitucional e na actividade material de produção e emissão de programas pela entidade pública criada para tal efeito, encontra-se o Estado, enquanto legislador e enquanto administrador, vinculado ao cumprimento dos princípios e normas respeitantes aos direitos fundamentais, designadamente, à obrigação de garantir em condições de igualdade a satisfação das necessidades colectivas neste campo.

B

6. Cumpre, assim, como ponto prévio à análise do actual quadro normativo em matéria de serviço público de televisão, proceder a uma breve análise da disciplina em que se vem processando a prestação da actividade de televisão, em especial, relativamente aos arquipélagos dos Açores e da Madeira.

7. A primeira intervenção legislativa específica em matéria de televisão registou-se em 29 de Janeiro de 1930, através do Decreto-Lei n.º 17.899, diploma que veio sujeitar a actividade televisiva ao regime de monopólio estatal. Não obstante, apenas em 1955, o Decreto-Lei n.º 40.341, de 18 de Outubro, veio determinar a constituição de uma sociedade anónima de responsabilidade limitada à qual seria atribuída a concessão do serviço público de televisão em território português, e aprovar, do mesmo passo, em anexo, as bases da concessão.
A base I obrigava a concessionária a explorar uma cadeia de centros de emissão que cobrisse as regiões de maior densidade populacional, abrangendo, pelo menos, as regiões de Lisboa, Porto e Coimbra, incumbindo-lhe elaborar planos de cobertura de outros centros populacionais do território. Contudo, o Governo poderia determinar a ampliação do serviço a qualquer região do continente, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas.

8. Na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974, veio a ser suspensa a concessão atribuída à RTP, SARL, e atribuída a gestão do serviço público de televisão ao Governo (Decreto-Lei n.º 278/74, de 25 de Junho). Em 1975, o Decreto-Lei n.º 674-D/75, de 2 de Dezembro, nacionaliza as participações privadas no capital social da RTP, SARL, resgata o contrato de concessão e cria a Radiotelevisão Portuguesa, E.P., com o objectivo de prestar, em regime de exclusividade, o serviço público de televisão.

9. Por força do sistema de autonomia política e legislativa regional consagrado pela Constituição de 1976, o Decreto-Lei n.º 156/80, de 4 de Maio, extinguiu as delegações locais da RTP, E.P., dos Açores e Madeira, criando, em simultâneo, dois centros regionais aos quais competia organizar e elaborar programas de interesse e âmbito regional e transmitir programas informativos ou outros sobre acontecimentos ou factos da vida nacional e internacional.

10. No art.º 3.º, dos Estatutos da RTP, Radiotelevisão Portuguesa, E.P., aprovados pelo Decreto-Lei n.º 321/80, de 22 de Agosto, previa-se que esta empresa possuísse delegações regionais nos Açores e na Madeira, as quais seriam objecto de um regime especial que veio a constar do Decreto-Lei n.º 283/82, de 22 de Julho, diploma que, com intuitos de aperfeiçoamento veio substituir a disciplina contida no Decreto-Lei n.º 156/80, de 24 de Maio.

11. Para além do citado art.º 3.º, não possuíam os estatutos da RTP, E.P., ou a Lei da Radiotelevisão à data vigente (Lei n.º 75/79, de 29 de Novembro) qualquer disposição relativa à distribuição do sinal de radiotelevisão nas regiões Autónomas.

12. Assim, o Decreto-Lei n.º 283/82, de 22 de Julho, veio criar como representações descentralizadas da RTP nas Regiões Autónomas, os centros regionais. Esta solução representava, de acordo com o teor do preâmbulo do diploma e na esteira do regime constante do Decreto-Lei n.º 156/80,, uma manifestação do regime constitucional de autonomia política e administrativa das Regiões.

13. Tendo por parâmetros o interesse específico das Regiões e o reforço da unidade nacional, constituem finalidade dos centros regionais (art.º 3.º, do Decreto-Lei n.º 282/82, de 22 de Agosto):
organizar e elaborar programas de informação e de divulgação, de comentário e de crítica, de pedagogia, culturais, recreativos, desportivos e infantis, de interesse e âmbito regionais, retransmitir, em directo ou em diferido, integral ou parcialmente, programas informativos ou outros sobre acontecimentos e factos da vida nacional e internacional elaborados fora dos centros regionais.

14. Neste enquadramento, as Regiões Autónomas passaram a dispor de um específico canal regional cuja programação teria por fim a prossecução dos objectivos referidos, os quais seriam a expressão, neste domínio, da interacção constitucional entre os interesses específicos das Regiões Autónomas, o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses (art.ºs 227.º, n.º 2, e 231.º, n.º 1, da CRP).

C

15. A falta de uma actividade televisiva simultânea e integral para todo o território nacional, proporcionou, assim, a manutenção do modelo de serviço público de natureza regionalizada nos Açores e Madeira, em termos que, embora acompanhando o aprofundamento da autonomia regional, deixou por cumprir plenamente os princípios constitucionais apontados.

16. O quadro legislativo aplicável nesta matéria à data da Revisão Constitucional de 1989 permanece intocado até hoje, apesar das dúvidas sobre a caducidade do Decreto-Lei n.º 283/82, de 22 de Agosto (Centros Regionais da RDP, EP, e da RTP, EP) levantadas com o Acórdão n.º 450/95, do Tribunal Constitucional (DR, II, (235), 11.10.1995):
prestam o serviço público nas Regiões autónomas dois canais com características regionalizadas (emissão composta de programas produzidos na Região e programas produzidos no Continente), sem que, concomitantemente, seja facultado o serviço público de âmbito nacional e internacional).

17. Na sequência da abolição pela Revisão Constitucional de 1989 do regime de monopólio público de televisão, a Lei n.º 58/90, de 7 de Setembro, veio estabelecer o regime do exercício da actividade de televisão pelo operador público e pelos operadores privados.

18. A par da expressa previsão, quanto a estes do regime de licença a atribuir mediante concurso público (art.º 38.º, n.º 6 da CRP e art.º 3.º, n.º 3 da Lei n.º 58/90), a Lei n.º 58/90 refere que o serviço público de televisão não carece de licença (art.º 3.º, n.º 3), estabelece o regime da concessão para a sua existência e funcionamento (art.º 3.º, n.º 2) através de um operador de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos e atribui, desde logo, a concessão à Radiotelevisão Portuguesa, E.P., pelo prazo de 15 anos, renovável por igual período. Nos termos do art.º 5.º, n.º 1, desta Lei, a concessão do serviço público de televisão abrange as redes de cobertura de âmbito geral que integram as frequências correspondentes ao 1.º e 2.º canais.

19. Previa o art.º 3.º, n.º 5, da Lei n.º 58/90, a aprovação por decreto-lei do estatuto do operador de serviço público, e o art.º 65.º, n.º 1, do mesmo diploma, a revisão, no prazo de 120 dias, do estatuto da empresa pública concessionária do serviço público de televisão. Neste sentido, veio a ser publicada a Lei n.º 21/92, de 14 de Agosto, que transformou a RTP, E.P., em sociedade anónima, determinou a sucessão desta no património e na universalidade dos direitos e obrigações da empresa pública, entre eles, a concessão do serviço público de televisão, e aprovou, ainda, os respectivos estatutos.

20. A concessão tem por objecto a prestação do serviço público de televisão, o qual consiste, com específica observância do disposto no art.º 3.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 21/92, em exercer a actividade de televisão, produzindo e emitindo programas, através das redes de cobertura de âmbito geral que integram as frequências correspondentes ao 1.º e ao 2.º canais (art.º 3.º, n.º 1, dos Estatutos da RTP, S.A., art.º 2.º, n.º 2, da Lei 21/92 e art.º 5.º, da Lei n.º 58/90).

21. Nestes termos, a concessão do serviço público de televisão tem por objecto o exercício da actividade de televisão através das redes de cobertura de âmbito geral que integram as frequências correspondentes ao 1.º e 2.º canais.

22. Trata-se, assim, de assegurar “a transmissão ou retransmissão de imagens não permanentes e sons através de ondas electromagnéticas ou de qualquer outro veículo apropriado” e destinadas à recepção pelo público (art.º 1.º, n.º 2, da Lei n.º 58/90). Para definição do âmbito territorial, corresponde o serviço público de televisão ao exercício da actividade televisiva com cobertura de âmbito geral, definida esta, pelo art.º 4.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 58/90, como abrangendo, com o mesmo programa e sinal recomendado, todo o território nacional, ou pelo menos, o território continental português.

23. No desenvolvimento da Lei da Televisão, o Decreto-Lei n.º 401/90, de 20 de Dezembro, que aprovou o plano técnico de frequências, dispõe que as bandas, canais e potências de emissão previstos para a 1ª e 2ª redes de cobertura de âmbito geral, constantes do mapa I aprovado em anexo, ficam afectos ao serviço público de televisão, correspondente aos 1.º e 2.º canais (art.º 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 401/90).

24. Por seu turno, o mapa I, anexo ao Decreto-Lei n.º 401/90, prevê para todas as redes de cobertura de âmbito geral a existência de estações de emissão localizadas nas Regiões Autónomas (Barrosa, Cabeço Gordo, Morro Alto e Santa Bárbara, nos Açores, e, Pico do Silva, na Madeira).

25. Assim, considerando que no art.º 4.º, n.º 1, alínea a), da Lei 58/90, é definida a actividade televisiva com cobertura de âmbito geral, como abrangendo, com o mesmo programa e sinal recomendado, todo o território nacional ou, no mínimo, o território continental, parece decorrer do Decreto-Lei n.º 401/90, a existência de condições técnicas que permitem a emissão dos canais de serviço público de televisão nas Regiões Autónomas ou, pelo menos, um rumo apontado nesse sentido.

26. De acordo com as disposições legais referidas, o serviço público de televisão será exercido através de duas redes de cobertura de âmbito geral que integram as frequências correspondentes ao 1.º e 2.º canais, sendo que se encontram atribuídas frequências para estações de emissão localizadas nas Regiões Autónomas.

27. Terminologia diversa, porém, é aquela que se encontra no art.º 4.º, n.º 3, alínea i), da Lei n.º 21/92, de 14 de Agosto. De acordo com esta disposição constitui obrigação da concessionária de serviço público de televisão emitir dois programas de cobertura geral, um dos quais abrangerá as Regiões Autónomas.

28. Não obstante, à expressão programa de cobertura geral terá de ser atribuído o significado de rede de cobertura de âmbito geral.

29. Com efeito, nos termos do art.º 5.º, da Lei 58/90 e do disposto no art.º 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 401/90, são as redes de cobertura de âmbito geral que integram as frequências correspondentes ao 1.º e 2.º canais que são compreendidas no o âmbito da concessão do serviço público de televisão (cláusula 2ª do Contrato de Concessão). A actividade de televisão exercida através destas duas redes constitui, por si, o serviço público de radiotelevisão concessionado.

D

30. Definido o âmbito material e territorial da concessão do serviço público de televisão, importa determinar quais as especificidades que o quadro normativo em análise comporta no que concerne ao exercício da actividade televisiva pela RTP, S.A., nas Regiões Autónomas.

31. Na enumeração das obrigações da concessionária do serviço público de televisão, prevê-se no art.º 3.º, n.º 3, alínea i), a emissão de “dois programas de cobertura geral, um dos quais, pelo menos, abrangerá as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira”. De forma diferente a alínea j), do n.º 3, do art.º 4.º, da proposta de lei (Proposta de Lei n.º 6/91, in Diário da Assembleia da República, II-série-A, n.º 9), constituía a concessionária na obrigação de assegurar a emissão para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, o que permitia concluir que estaria a concessionária vinculada a emitir para as Regiões Autónomas nos mesmos termos em que emite para o restante território nacional.

32. Estar-se-ia, assim, perante emissões simultâneas e integrais do 1.º e do 2.º canais. Com efeito, e numa interpretação conforme à Constituição, atento o princípio interpretativo “ubi lex non distinguit, nec interpres distinguere debet”, seria de concluir que o legislador havia pretendido que as emissões abrangessem todo o território nacional nos mesmos moldes, uma vez que o preceito não faz qualquer distinção entre as emissões do canal 1 e do canal 2, nem tão pouco, quanto à possibilidade de emissões em diferido ou de retransmissões de programas destes canais.

33. Sem que resulte claro do enunciado legal, a Lei n.º 21/92, de 14 de Agosto, parece pressupor que as redes de cobertura de âmbito geral que integram as frequências atribuídas ao 1.º e ao 2.º canais apenas abrangem, de acordo com a possibilidade aberta pelo art.º 4.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Televisão, o território continental português, sendo necessário prever como específica obrigação de serviço público a actividade de emissão para as Regiões Autónomas.

34. Por seu turno, o Contrato de Concessão do Serviço Público de Televisão, celebrado entre o Estado e a RTP, S.A., em 17 de Março de 1993, prevê na cláusula 4ª, entre as obrigações gerais da concessionária, o dever de emissão de dois programas com cobertura geral da população do território continental, um que corresponde ao actual 1.º canal, de carácter eminentemente generalista, com opções diversificadas e destinado a servir a generalidade da população, o segundo, vocacionado para servir públicos potencialmente minoritários, e integrando programas de carácter educativo nos domínios da literatura, da ciência, da música, do teatro, da ópera, do bailado e das artes plásticas.

35. No que se reporta ao serviço público de televisão nos Açores e na Madeira, o contrato de concessão limita-se a estabelecer, no n.º 3 da referida cláusula que, nos termos da Lei n.º 21/92, de 14 de Agosto, um dos canais abrangerá as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira. É, assim, à concessionária que cabe determinar qual deles será difundido nos arquipélagos.

E

36. Importa, agora, apreciar se a solução legal é conforme e suficiente em face da norma constitucional contida no art.º 38.º, n.º 5.

37. Introduzida esta disposição na Revisão Constitucional de 1989, veio a consagrar um sistema misto, ao incumbir o Estado de garantir a existência e o funcionamento de um serviço público de televisão e ao prever a existência de operadores privados de radiotelevisão.

38. Nos termos do n.º 6, do mesmo preceito, o sector público de rádio e televisão está sujeito a um regime especial relativamente aos órgãos de comunicação social privados, no tocante à respectiva estrutura e funcionamento, o qual deve salvaguardar a respectiva independência perante o Governo, a Administração e os demais poderes públicos, bem como assegurar a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião.

39. A previsão constitucional de um serviço público de televisão e rádio constitui uma garantia institucional da liberdade e pluralismo da comunicação social (CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed., Coimbra, p. 233, MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 2ª Ed., Coimbra, 1993, p. 402 e 403, Serviço Público de Televisão e Regiões Autónomas, in O DIREITO, Ano 125.º, 1993, I-II, págs. 129 e segs.).

40. Esta norma vincula o Estado em termos objectivos enquanto fundamenta um dever que, embora não estando em relação com qualquer titular concreto, obriga a pessoa colectiva pública em questão ao desempenho de uma específica actividade administrativa para satisfação de uma necessidade de interesse geral (RIVERO, Jean, Direito Administrativo, 1981. p. 494). Neste sentido alude Gomes Canotilho (Direito Constitucional, Coimbra, 1991, p. 544 e 546) a “normas de direitos fundamentais objectivas”, as quais se fundamentam no especial significado para “a colectividade, para o interesse público , para a vida comunitária”.

41. Atenta a manifesta importância da rádio e da televisão como veículos privilegiados de informação, estão estas actividades subordinadas à possibilidade de realização dos direitos fundamentais de “se informar” e a “ser informado” (art.º 37.º, n.º 1), bem como do direito de participação na vida pública (48.º, n.º 2). O exercício destes direitos constitui, por sua vez, condição indispensável para a formação de uma opinião pública livre, e mais genericamente, do funcionamento dos próprios mecanismos democráticos.

42. Foi exactamente com base nas considerações relativas à acepção funcional ou objectiva da liberdade de comunicação social e à existência de uma função estatal de criação de uma opinião pública livre, que se desenvolveram as discussões parlamentares relativas à formação do texto do art.º 38.º, n.ºs 5 e 6. Foi considerado que atenta a lógica empresarial privada a que necessariamente não deixariam de estar sujeitas as televisões privadas, ao Estado incumbiria garantir o acesso genérico pela comunidade à rádio e televisão e, por essa via, garantir o pluralismo em matéria de direito à informação, educação e cultura (Diário da Assembleia da República, 1ª série, n.º 70, pp. 3341, 3347, 3348, 3352, 3353 e 3360 e segs., e n.º 71, pp. 3423 e segs.).

43. Vistas em geral as possibilidades reais de exercício do poder pelos órgãos de comunicação social, por imperativo do princípio do Estado de Direito e do regime democrático, a garantia do pluralismo impõe um regime de carácter intervencionista (neste sentido, cfr. MIRANDA, Jorge, Manual cit., pp. 400, 402 e 408) traduzido nas obrigações do Estado em assegurar a divulgação da titularidade e dos meios de financiamento dos órgãos de comunicação social, garantir a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação perante os poderes político e económico, impor o princípio da especialidade das empresas titulares de órgãos de comunicação social, impedir a concentração das empresas titulares de órgãos de comunicação social, designadamente através de participações múltiplas ou cruzadas, e a obrigação de assegurar os direitos de antena, de resposta e de réplica política (cfr., respectivamente, art.º 38.º, n.ºs 3, 4, 1ª parte, 2ª parte, 3ª parte, 4ª parte e art.º 40.º, da CRP).

44. Resulta ainda da Constituição uma estreita conexão entre a comunicação social em geral e os órgãos de comunicação do sector público, em especial, com as obrigações que incumbem ao Estado em sede de promoção dos direitos culturais. Com efeito, ao Estado cabe incrementar a democratização da cultura, incentivando o acesso de todos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social (art.ºs 73.º, n.º 3 e 78.º, n.º 2, da CRP).

45. A garantia constitucional da existência e funcionamento de um serviço público de televisão e rádio, aparece, assim, como um instrumento da possibilidade de realização dos direitos fundamentais à informação, e à participação na vida política (art.ºs 37.º e 4.º, n.º 2, da CRP), bem como surge vinculada à obrigação estadual de generalização do acesso à educação, à cultura e à fruição cultural, exigindo ao Estado uma acção conformadora positiva que possibilite o exercício destes direitos.

46. Neste sentido, duvidoso parece que se compadeça o texto constitucional com uma restrição à garantia institucional do serviço público de televisão, que se traduza numa prestação diferenciada, em termos geográficos, de um serviço que a Constituição consagra como meio de expressão de outros direitos fundamentais e, em última análise, como garantia do funcionamento dos mecanismos próprios do Estado de Direito democrático.

47. Estando as garantias institucionais sujeitas ao regime dos direitos fundamentais (neste sentido, MIRANDA, Jorge, Manual cit., Tomo IV, p. 70), qualquer restrição só será admissível nos termos do art.º 18.º. Demonstrado que o legislador ordinário entendeu que a garantia do serviço público de televisão se reconduz à difusão de dois programas ou canais, (com o conteúdo previsto na cláusula 4ª, do Contrato de Concessão), não se vislumbram quais os valores constitucionais que possam justificar o acesso diferenciado a esse serviço por parte dos cidadãos residentes nos arquipélagos dos Açores e da Madeira.

48. Mesmo reconhecendo, como expressamente assinala Jorge Miranda (Manual cit., Tomo IV, p. 70, 1) que a garantia constitucional se reconduz à existência do serviço público, não ao modo concreto como o legislador ordinário a venha a concretizar, certo é que, na actividade de produção normativa a tanto destinada, está o legislador vinculado à observância dos princípios e normas constitucionais, no caso em presença, ao princípio da igualdade, ao princípio da unidade do Estado e ao princípio da solidariedade para com as Regiões Autónomas (art.ºs 13.º, 6.º, 227.º, n.º 2, e 231.º, da Constituição).

49. Competindo ao Estado, por si ou através de uma entidade pública constituída para o efeito, assegurar uma prestação específica destinada a promover o pluralismo político e social, bem como o bem-estar económico, social e cultural, o princípio fundamental a observar quanto à possibilidade de fruição destas utilidades consistirá, não só na liberdade de acesso, estando a utilização dependente de um mero acto de vontade do utente (CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, 1991, 10ª Ed., p. 1079 e 1080), como também no tratamento igualitário de todos os residentes no território nacional no que ao acesso e à utilização do serviço se refere.

50. Assim, como salienta Jorge Miranda (Serviço Público cit., p. 241), a prestação do serviço público de televisão não deverá revestir apenas natureza universal, no sentido de uma oferta generalizada, disponível para todos, independentemente da sua localização geográfica, mas também natureza não discriminatória, o que obriga à existência de “emissões de âmbito nacional, simultâneas, idênticas para todo o território”.

51. Radica o citado autor esta exigência, tanto no princípio constitucional de reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses (art.º 227.º, n.º 2, 2ª parte, da CRP), como também no princípio da igualdade (art.º 13.º), especialmente na sua vertente positiva ligada à efectivação dos direitos económicos, sociais, e culturais (art.º 9.º, alínea d), da CRP).

52. A mesma exigência resulta do carácter unitário do Estado (art.º 6.º, da CRP), assim como também do princípio da solidariedade e da cooperação com as Regiões Autónomas (art.º 227.º, n.º 2, e 231.º, da Constituição). No que ao conteúdo do princípio da solidariedade concerne, reveste particular acuidade a exigência de igualdade material entre os cidadãos residentes no continente e nos arquipélagos atento o desiderato constitucional de correcção das desigualdades derivadas da insularidade (art.º 231.º, n.º 1, da CRP).

53. Em face deste objectivo específico do regime de autonomia política e legislativa das Regiões dos Açores e da Madeira e observado o carácter instrumental da garantia institucional em análise relativamente ao princípio da democracia económica, social e cultural constante do art.º 9.º, alínea d), da Constituição, mais injusto se manifesta o regime legal instituído ao permitir à concessionária escolher qual o canal que irá ser difundido nas Regiões Autónomas. Com efeito, o carácter generalista do 1.º canal condicionará tal opção, com prejuízo significativo no que respeita à educação, à fruição e ao desenvolvimento cultural e ao reforço do pluralismo, objectivos para que se encontra vocacionado o 2.º canal.

54. É justamente a relação intrínseca que entendo existir entre a garantia constitucional em análise e a possibilidade de realização dos direitos fundamentais de informação, participação na vida pública, educação e cultura, que considero que a presente questão excede o âmbito da função política, enquadrando-se na atribuição de promoção dos direitos, liberdades, garantias e interesses legítimos dos cidadãos cuja salvaguarda se me encontra estatutariamente atribuída.
55. Das considerações expostas resulta que, encontrando-se o Estado vinculado a assegurar a existência e o funcionamento dum serviço público de televisão, e compreendendo o serviço público a gestão de duas redes de cobertura de âmbito geral que correspondem às frequências atribuídas ao 1.º e 2.º canais, a garantia constitucional apenas se encontra satisfeita se e na medida em que o cumprimento de tal obrigação assuma carácter universal e homogéneo em relação a todos os residentes no território português, designadamente porque qualquer restrição violaria directamente o disposto no art.º 13.º, n.º 2, da Constituição que não admite diferenças de tratamento normativo em função do território.

56. E esta violação do princípio da igualdade mais se evidencia, por estar em causa uma norma constitucional que beneficia do regime dos direitos, liberdades e garantias, pois como sustenta Gomes Canotilho “se o legislador actua voluntariamente criando um certa disciplina legal, então ele fica obrigado a não deixar inconsiderados os casos essencialmente iguais aos previstos no Tatbestand legal” (Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador – Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, Coimbra, 1982, p. 335).

57. Assim, o que resulta como necessário e conforme à Constituição é assegurar que o serviço público de televisão revista nas Regiões autónomas dos Açores e da Madeira, no mínimo, a mesma configuração que no território continental, consubstanciando-se, actualmente, nas distribuição simultânea e integral do 1.º e 2.º canais.

58. Neste sentido, e com fundamento no princípio da solidariedade para com as Regiões Autónomas e no princípio do reforço da unidade nacional, foram formuladas pelas Assembleias Legislativas Regionais as Resoluções n.ºs 3/92/M, 12/94/M, 2/92/A e 2/94/A, respectivamente, publicadas in Diário da República, 1ª série B, de 2 de Março, 10 de Setembro, 6 de Fevereiro e 22 de Abril. Em todas as resoluções se refere a necessidade de emissão nas Regiões de, pelo menos, um dos canais de serviço público de televisão, bem como a manutenção do canal regional como serviço público regional.

59. Quanto à manutenção de um canal regional, a consideração acima exposta quanto a violação do princípio da igualdade não obsta, como considera Jorge Miranda (Serviço Público cit, p. 242) à existência de programas produzidos e emitidos pelos centros regionais. Tal facto resultará de um “diferencialismo natural” expressão do princípio da promoção e da defesa dos interesses regionais, fundamento da própria autonomia regional (MORAIS, Carlos Blanco de, A Autonomia Legislativa Regional, Lisboa, 1993, p. 407).

II-Conclusões

Em face do quanto fica exposto, e no uso dos poderes que me são conferidos pelo art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,RECOMENDO:

Que seja devidamente ponderado pelos Exm.ºs Deputados vir a ser desencadeado procedimento legislativo com vista à alteração da norma contida no art.º 3.º, n.º 3, alínea i), da Lei n.º 21/92, de 14 de Agosto, no sentido de garantir que a emissão através das redes de cobertura de âmbito geral que integram as frequências atribuídas ao 1.º e 2.º canais compreenda todo o território nacional, por forma a suprir uma situação de inconstitucionalidade.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel