Presidente da Câmara Municipal de Lagoa

Rec. nº 79/A/98
Proc.: R-2803/98
Data:7.01.1999
Área: Açores

Assunto:URBANISMO E OBRAS – OBRAS PARTICULARES – LICENCIAMENTO – ÁREA DE JURISDIÇÃO PORTUÁRIA.

Sequência: Acatada

I-Introdução

1. Encontra-se em instrução na Provedoria de Justiça (Extensão da Região Autónoma dos Açores) um processo aberto com reclamação relativa à realização de obras particulares sem o necessário licenciamento camarário. A obra em causa consiste na construção, pelo senhor J…, de um muro na orla marítima, em Água de Pau e docorreu já depois de 1996 (não foi possível apurar a data exacta em que terão decorrido os trabalhos de construção civil).

2. Em especial, é reclamado o facto das entidades chamadas a intervir no respectivo procedimento de licenciamento, incluindo aquelas a quem caberia a emissão de parecer, não terem emitido as respectivas licença e parecer.

3. Por forma a permitir a averiguação cabal dos factos relevantes, foi promovido ofício a V.Exa. (cf. ofício n.º …) no qual se solicitava a prestação de informações sobre:
a) A exacta localização da obra reclamada;
b) Se o local da obra se situava em área do Domínio Público Marítimo;
c) Se, em caso afirmativo, fora organizado o respectivo e se a decisão final fora apresentada pelo requerente, nos termos do disposto no art. 48º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro;
d) Se os trabalhos referidos haviam sido licenciados pela Câmara Municipal de Lagoa;
e) Se, caso a obra não houvesse sido autorizada, fora instaurado o competente processo de contra-ordenação;
f) Se fora ordenado o embargo dos trabalhos;
g) E se, posteriormente, fora organizado processo de legalização.
4. Foi solicitado, ainda, o envio de planta à escala com indicação da área da obra.

5. Por fim, pediram-se informações sobre os instrumentos normativos urbanísticos em vigor para a área em questão (designadamente sobre a existência de PDM-Plano Director Municipal eficaz ou outros planos de ordenamento do território).

6. A coberto do ofício n.º…, V.Exa. prestou os esclarecimentos solicitados e remeteu os elementos pedidos.

7. Em conclusão, a instrução do processo permitiu apurar os seguintes factos:

1º A obra consiste na construção, pelo senhor J…, de um muro na orla marítima, em Água de Pau;
2º A obra foi realizada em área de jurisdição portuária;
3º Não foi organizado o respectivo processo de delimitação do domínio público marítimo;
4º Logo, não foi cumprido o disposto no art. 48º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro (apresentação pelo requerente da decisão final);
5º Os trabalhos não foram licenciados pela Câmara Municipal de Lagoa;
6º Não foi instaurado procedimento de contra-ordenação;
7º Não foi ordenado o embargo dos trabalhos;
8º Nem, tão pouco, foi organizado processo de legalização;
9º O concelho de Lagoa dispõe de PDM-Plano Director Municipal aprovado e em vigor.
8. Fácil é concluir, desde já, que os factos reclamados resultam da diferente interpretação do disposto no Regime Jurídico do Licenciamento das Obras Particulares e, designadamente, do licenciamento de obras particulares em zonas sujeitas a jurisdição portuária.

II-Exposição de Motivos

9. Importa, desde já, esclarecer que o entendimento explanado no parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República publicado no Diário do Governo, II série, de 28 de Abril de 1953 (pág. 2300 e seguintes) – segundo o qual as atribuições e competências da câmaras municipais no âmbito do licenciamento de obras particulares não se exercem em áreas compreendidas em jurisdição das administrações portuárias – radica na consideração do regime legal então vigente.

10. Assim, lê-se, a dado passo, no referido parecer:
“Qualquer limitação dos poderes conferidos às câmaras municipais pelas disposições que ficam transcritas [que são, lembre-se, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas] há-de resultar do texto expresso da lei. Na verdade, se, como é doutrina corrente e pacífica, a competência emana directamente da lei, qualquer limitação do âmbito do texto que a confira só será legítima se assentar num preceito de igual força e natureza”.

11. É exactamente neste ponto que a argumentação de V.Exa. não colhe – ainda que a sua invocação fizesse sentido à data emissão do citado parecer, altura em que o regime do licenciamento de obras particulares decorria da aplicação das disposições do Regulamento Geral das Edificações Urbanas.

12. Posteriormente, porém, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 166/70, de 15 de Abril. Na vigência das disposições deste diploma “as obras a executar em zona de jurisdição portuária [estavam] isentas de licença camarária”. Ainda assim, “os projectos [deveriam] sujeitar-se a aprovação da Câmara Municipal a fim de verificar a sua conformidade com o plano ou anteplano da urbanização e com as prescrições regulamentares” (cf., por todos, Acordão STA, de 14/02/95, proferido no processo n.º 36326). Como princípio, portanto, “a câmara municipal, a quem cabe a aprovação prévia dos projectos de obras a executar por particulares nas zonas de jurisdição portuária, [tinha] a seu cargo a defesa do interesse público da conformidade do projecto com as regras urbanísticas e de ordem técnica aplicáveis” (cf. Acordão STA, de 08/07/93, proferido no processo n.º 31254).

13. Com efeito, o art. 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 166/70 sujeitava a regime especial de licenciamento de obras aquelas executadas pelos serviços do Estado e por empresas ferroviárias e por particulares em zonas de jurisdição portuária. No entanto, como referia SOFIA ABREU , “estas obras não estão sujeitas a licença municipal. Mas os respectivos projectos devem ser submetidos à aprovação da Câmara Municipal para que esta verifique se estão conformes com os planos aprovados e com os regulamentos aplicáveis”.

14. Diferentemente, porém, no âmbito da disciplina contida no Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro, deve entender-se que as obras promovidas por particulares nas áreas de jurisdição portuária devem ser sujeitas a licenciamento municipal.

15. O Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, que aprovou o Regime Jurídico do Licenciamento das Obras Particulares e cuja redacção actual foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro, define que carecem de licenciamento municipal todas as obras de construção civil, designadamente a construção e a reconstrução de novos edifícios, a ampliação, alteração, reparação ou demolição de edificações [cfr. arts. 1º, n.º 1 e 3º, n.º 1, alínea a), do diploma referido]. Da mesma forma, o Decreto n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, que aprovou o Regulamento Geral das Edificações Urbanas, impõe a prévia licença camarária daquelas obras de construção civil (cfr. art. 2º).

16. O art. 3º, n.º 1, alínea e), relativamente às situações de dispensa de licenciamento municipal, refere “as obras e trabalho promovidos pela administração indirecta do Estado nas áreas de jurisdição portuária (…) directamente relacionadas com a respectiva actividade”. Nestes casos – e apenas nestes casos – é dispensado o licenciamento camarário.

17. Temos, pois, que as obras promovidas por particulares nas áreas de jurisdição portuária estão sujeitas a licenciamento camarário.

18. Dissipando quaisquer dúvidas sobre a necessidade de licenciamento camarário das todas as obras de construção civil, o n.º 1 do art. 48º, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, reafirma esse princípio geral, nos seguintes termos:

Artigo 48º
Processo de Licenciamento
1-As obras referidas no n.º 1 do artigo 1º, cujo projecto, nos termos da legislação especial aplicável, carece de aprovação da administração central (…), estão também sujeitas a licenciamento municipal, nos termos do disposto no presente diploma.

19. Por outro lado, e reforçando ainda mais este entendimento, o n.º 2 do art. 52º do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, dispõe que “são nulos os actos administrativos que decidam pedidos de licenciamento, no âmbito do presente diploma, e que violem o disposto no n.º 2 do art. 48º” [alínea c)].

20. O art. 48º, n.º 2 refere expressamente: “a câmara municipal não pode deferir pedidos de informação prévia nem licenciar as obras previstas no número anterior [obras referidas no art. 1º, n.º 1, cujo projecto, nos termos da legislação especial aplicável, carece de aprovação da administração central] sem que o requerente apresente documento comprovativo da aprovação da administração central”.

21. É líquido, portanto, que a circunstância da realização de determinadas obras estar sujeita à aprovação da administração central não as isenta da necessidade de ser assegurado o respectivo licenciamento municipal.

22. Acrescidamente, devo lembrar a V.Exa. que, mesmo as obras promovidas pela administração directa do Estado são submetidas a parecer da câmara municipal [cf. art. 3º, n.ºs 1, alínea c) e 3] . Estranhar-se-ia, portanto, que a câmara municipal fosse chamada a dar parecer (embora não vinculativo) sobre uma obra promovida pela administração directa do Estado e nenhuma intervenção lhe fosse reservada na situação da mesma obra ser da responsabilidade de uma entidade particular (pessoa singular ou colectiva).

23. Uma vez que a obra em apreço não foi licenciada, é ilegal.

24. O exercício das competências de polícia administrativa por parte das câmaras municipais resultava já da disciplina do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, que dispõe que a execução de novas edificações “não pode ser levada a efeito sem prévia licença das câmaras municipais, às quais incumbe também a [sua] fiscalização” (cfr. art.s 1º e 2º). E, de igual modo, o art. 51º, do citado Decreto-Lei n.º 445/91, atribui às câmaras municipais a incumbência de fiscalizar o cumprimento das disposições do regime legal urbanístico.

25. Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 54º do Decreto-Lei n.º 445/91, constitui contra-ordenação a execução das obras mencionadas sem alvará de licença de construção [alínea a)] ou em desacordo com o projecto aprovado [alínea b)].

26. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 54º, deste diploma, a execução de obras de construção civil sem a respectiva licença de construção constitui contra-ordenação, punível com coima graduada de 100.000$00 até 20.000.000$00 (ou 50.000.000$00, no caso das obras serem promovidas por pessoa colectiva), e graduada de 50.000$00 até 20.000.000$00 (ou 50.000.000$00, para as pessoas colectivas).

27. Assim, a verificação da execução de trabalhos de construção civil, não pode deixar de conduzir, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 54º, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, à instauração de processo contra-ordenacional.

28. A incumbência de fiscalização do cumprimento das disposições do conferida, no presente caso, à Câmara Municipal de Lagoa, vem acompanhada, como já referi, da competência para o processamento das contra-ordenações respectivas. E a decisão de instaurar o competente procedimento contra-ordenacional constitui, perante a verificação dos necessários pressupostos, poder vinculado da câmara municipal.

29. Com efeito, a limitação da discricionariedade não se esgota, porém, na tutela do interesse público a prosseguir, antes de estendendo a todos os demais princípios a que a acção administrativa se encontra vinculada e, em especial no caso presente, aos princípios da legalidade, da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, da proporcionalidade, da colaboração da Administração com os particulares e da desburocratização e eficiência.

30. Assim, da conjugação das disposições dos art.s 51º e 54º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, e do art. 2º, do Decreto n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, resulta que o processamento de contra-ordenação assume, na situação em apreço, carácter vinculado.

31. Na verdade, sendo a Câmara Municipal de Lagoa competente para o processamento da respectiva contra-ordenação, e tendo comprovado a violação do disposto no art. 1º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, e, acrescidamente, do disposto nos art.s 112º, 113º e 114º, do Decreto n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, não pode deixar de ser instaurado aquele procedimento.

32. Nos termos do disposto no art. 57º do Regime do Licenciamento das Obras Particulares e no art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, a competência para decretar o embargo das obras executadas sem licença camarária ou em desconformidade com os seus termos pertence ao Presidente da Câmara.

33. O art. 58º do Decreto-Lei n.º 445/91 e o art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, prevêem, igualmente, a faculdade de ser ordenada a demolição das obras executadas ilegalmente.

34. Nos termos do disposto no art. 59º do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro, constitui crime de desobediência “o desrespeito dos actos administrativos que determinem o embargo, a demolição, a reposição do terreno na situação anterior à infracção ou a entrega do alvará de licença de construção”.

35. A posição da Câmara Municipal de Lagoa, expressa no ofício n.º …, integra uma situação de renúncia de competência.

36. Com efeito, o art. 51º do Regime Jurídico do Licenciamento das Obras Particulares determina que compete à câmara municipal, com a colaboração das autoridades administrativas e policiais, a fiscalização do cumprimento das suas disposições; da mesma forma, o art. 2º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas dispõe que incumbe às câmaras municipais a fiscalização do cumprimento da sua disciplina jurídica.

37. A competência para instaurar procedimentos contra-ordenacionais é, nos termos do disposto no n.º 10 do art. 55º do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro e no art. 161º do Decreto n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, da Câmara Municipal.

38. Ao não determinar a instauração de procedimento contra-ordenacional, a Câmara Municipal de Lagoa recusa o exercício da sua competência própria de fiscalização do Regime Jurídico do Licenciamento das Obras Particulares.

39. Nos termos do disposto no art. 29º do Código do Procedimento Administrativo, a competência é irrenunciável e inalienável, sendo nulo todo o acto que tenha por objecto a renúncia ao exercício da competência legalmente conferida.

40. Devo, acrescidamente, chamar a atenção de V.Exa. para a disciplina contida na Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, relativa aos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos cometidos no exercício das suas funções.

41. Nos termos do disposto no art. 12º, epigrafado “denegação de justiça”, “o titular do cargo político que no exercício das suas funções se negar a administrar a justiça ou a aplicar o direito que, nos termos da sua competência, lhe cabem e lhe foram requeridos será punido com prisão até dezoito meses e multa até 50 dias”.

42. Não obstante, nos termos do disposto no art. 167º, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, pode ser requerida a legalização dos trabalhos realizados em desrespeito pelas pertinentes disposições urbanísticas.

43. No entanto, a legalização destes trabalhos de construção civil apenas poderá ocorrer caso se “reconheça que são susceptíveis de vir a satisfazer os requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade” (cf. art. 167º, n.º 1, do Decreto n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951).

44. A legalização das obras realizadas sem licença é o único meio de evitar a demolição dos trabalhos ilicitamente erigidos (cf. corpo do mencionado art. 167º) mas somente se se verificar a susceptibilidade dos trabalhos realizados virem a conformar-se com as disposições relativas a urbanização, estética, segurança e salubridade. Caso não possa ser evitada, nos termos do disposto no mencionado artigo, por não estarem reunidas as condições urbanísticas, de estética, de segurança ou de salubridade para a legalização, a consequência será, obrigatoriamente, a demolição dos trabalhos realizados sem a necessária licença camarária, ao abrigo do disposto no art. 165º, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas.

III-Conclusões

45. Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no art. 20º, n.º 1, alínea a), da Lei 9/91, de 9 de Abril,RECOMENDO :

A. Que a Câmara Municipal de Lagoa exerça as suas competências próprias definidas no regime jurídico do licenciamento das obras particulares, designadamente as relativas à fiscalização da legalidade urbanística na área do respectivo concelho;
B. Que, relativamente à obra promovida pelo Senhor … de construção de um muro na orla marítima, em Água de Pau, a Câmara Municipal de Lagoa informe o interessado da necessidade de ser assegurado o licenciamento dos respectivos trabalhos de construção civil;
C. Que, ainda relativamente à obra promovida pelo Senhor … de construção de um muro na orla marítima, em Água de Pau, sejam exercidas as competências previstas no disposto nos art.s 51º, 54º, 55º, 57º e 58º, do Regime Jurídico do Licenciamento das Obras Particulares, nos termos acima expostos.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL