Director-Geral da Polícia Judiciária

C/c: Procurador-Geral da República
Bastonário da Ordem dos Advogados

Número:69/A/98
Processo:R-1372/96
Data:12.11.1998
Área: A5

Assunto:SEGURANCA PUBLICA – PSP – ABUSO DE PODER – DETENÇÃO ILEGAL – ACESSO A ADVOGADO.

Sequência: Acatada

I-
Reporto-me ao ofício de V. Exa. supra identificado, que muito agradeço, a propósito do qual entendo dever referir o seguinte:

1. No passado dia 16 de Abril de 1996 tive oportunidade de contactar V. Exa. a respeito de um incidente ocorrido, nesse mesmo dia, nas instalações da Direcção Central de Combate ao Banditismo (DCCB).

2. O assunto dizia respeito ao eventual comportamento incorrecto de elemento ou elementos daquela Direcção, relativamente ao Exmo. Senhor S… e seu advogado, Exmo. Senhor …..

Facultou-me então V. Exa., aliás prontamente, relatório elaborado sobre os factos pela Exma. Senhora Inspectora-Coordenadora, …, e despacho nele proferido pelo Exmo. Senhor Director-Geral Adjunto, … (fotocópias em anexo).

3. Em face do referido relatório entendi dever solicitar a V. Exa. alguns esclarecimentos complementares, o que fiz nos termos do ofício n.º 9338, de 03.06.1996 (fotocópias em anexo).

4. Obtive resposta no dia …, através do ofício de V. Exa. supra identificado, que para os devidos efeitos aqui dou por integralmente reproduzido (fotocópia em anexo).

5. Tendo solicitado ao Exmo. Senhor …… que se pronunciasse sobre o teor das respostas de V. Exa., como não podia deixar de fazer, respondeu-me aquele, nos seguintes termos:
5.1. Não é verdade que tenha proferido quaisquer ameaças invocando o nome do provedor de justiça.
5.2. É falso que o Exmo. Senhor … tenha sido livremente conduzido às instalações da Polícia Judiciária. Pelo contrário, encontrava-se ali contra sua vontade, “preso e bem preso, aliás há mais de oito horas”, nas palavras do Senhor advogado.
5.3. Se assim não fosse, ter-lhe-ia sido permitido contactar com o seu advogado, o que não sucedeu.
5.4. Não só é falso que o Exmo. Senhor … nunca tenha solicitado a presença de um advogado, como o fez logo no seu domicílio, aquando da busca que ali teve lugar.
5.5. O segurança já havia procedido à identificação, pelo que carece totalmente de sentido a afirmação segundo a qual a cédula profissional foi solicitada para tal efeito.

6. Com efeito, já antes o Exmo. Senhor Dr. M… me havia comunicado a sua indignação face aos acontecimentos descritos, sempre tendo feito notar que o seu cliente, e ele próprio, foram vítimas de uma actuação abusiva por parte de agentes dessa Polícia afectos à DCCB. No essencial, de acordo com o Exmo. Senhor advogado supra identificado, o seu cliente foi detido (no sentido em que foi conduzido a instalações policiais contra sua vontade) e sujeito a interrogatório, sem que lhe fosse permitido beneficiar da presença de advogado, apesar de solicitada.

7. Ora, muito embora V. Exa. se tenha prestado a contrariar tal versão (cfr. ofício n.º …) a verdade é que me foram fornecidos elementos que me levam a supor que, efectivamente, o Exmo. Senhor … não compareceu nas instalações da Polícia Judiciária de livre vontade e que, ali tendo sido conduzido, requereu a presença de um advogado. Senão, vejamos.

8. No dia 16 de Abril de 1996 o Exmo. S… foi sujeito a uma busca domiciliária levada a cabo pela Polícia Judiciária no âmbito do Inquérito n.º …. Na sequência desta, foi conduzido às instalações da DCCB, onde terá sido sujeito a interrogatório, ali tendo permanecido quase todo o dia. Tais circunstâncias bastariam, a meu ver, para levantar sérias suspeitas quanto à alegada dispensa de advogado, e bem assim, quanto à comparência do supra identificado, de livre e espontânea vontade, nas instalações dessa Polícia. Sucede que o Exmo. Senhor …… fornece outros elementos, que importa considerar:
8.1. Ainda no seu domicílio e no decurso da busca, cerca das 8.30H, o Exmo. Senhor S… requereu a presença do seu advogado, através de contacto telefónico, que efectuou na presença dos agentes que procederam à busca. Aliás, tal iniciativa ter-lhe-á sido mesmo sugerida por aqueles, alegando a necessidade de poupar tempo.
8.2. O Exmo. Senhor Dr. M…, dado que se encontrava ausente, em Coruche, pediu a um colega, Exmo. Senhor Dr. V…, que se inteirasse da situação.
8.3. Assim, ainda da parte da manhã, este último deslocou-se às instalações da DCCB, onde não logrou obter qualquer informação a respeito do paradeiro do Exmo. Senhor S… .
8.4. Informado de tal facto, o Exmo. Senhor Dr. M… regressou a Lisboa, tendo-se deslocado pessoalmente às instalações da DCCB, sitas na Av.ª José Malhoa, cerca das 15H.
8.5. Ali chegado, interpelou o agente (segurança) que se encontrava na portaria, solicitando que o informasse se ali se encontrava o seu cliente, a que título, e que lhe fosse permitido contactar o mesmo.
8.6. O segurança respondeu-lhe que nada podia informar e chamou a atenção para o facto de aquele se tratar de um serviço especial, com regras especiais.
8.7. Tendo o Exmo. Senhor advogado solicitado a presença de um superior hierárquico, pediu-lhe o segurança a cédula profissional – recusando, por seu turno, identificar-se – e empregando uma postura extremamente agressiva: dizendo, nomeadamente, que se sentia ameaçado e que iria mover os necessários procedimentos legais contra o advogado.
8.8. Na impossibilidade de contactar o cliente, ou sequer obter informações sobre o seu paradeiro, telefonou o Exmo. Senhor Dr. M… para a Provedoria de Justiça.
8.9. Só após a realização do telefonema – presenciado pelos elementos da DCCB – foi então informado pela Exma. Senhora Inspectora-Coordenadora que, de facto, o Exmo. Senhor S… se encontrava naquelas instalações, mas que não tinha o direito de ser assistido por defensor porque estava a ser inquirido na qualidade de testemunha.
8.10. Tendo o Exmo. Senhor advogado feito notar que o seu cliente havia sido ali conduzido na sequência de busca domiciliária, razão pela qual a família supunha que estava preso, ripostou a Exma. Senhora Inspectora que se considerava ameaçada e que iria proceder contra o advogado, tendo dado instruções para que fosse identificado. O segurança respondeu que já o tinha feito, mas de imediato solicitou a cédula profissional, que guardou consigo.

9. No próprio dia da ocorrência, o Exmo. Senhor … foi contactado pela Exma. Senhora …, advogada, com escritório em Lisboa, na Av.ª António Augusto de Aguiar, que assistiu ao que se passou na DCCB e manifestou total disponibilidade para testemunhar a ocorrência.

10. Assim, tendo sido contactada pela Provedoria de Justiça, a Exma. Senhora advogada confirmou que, na verdade, os elementos da DCCB não atenderam o Exmo. Senhor Dr. M… com o respeito que lhe era devido. Não ouviu dizer que o cliente daquele estava a ser interrogado na qualidade de testemunha, nem assistiu à alegada apreensão da cédula profissional porque entretanto se ausentou. Afirma apenas que o colega não se exaltou por forma a justificar o tratamento a que foi sujeito na DCCB.

11. Conforme a Exma. Senhora Inspectora teve a preocupação de realçar no relatório supra mencionado, é verdade que o estatuto jurídico-penal do Exmo. Senhor S… não impunha a presença de um advogado, porquanto, embora sujeito a uma busca domiciliária e posterior interrogatório policial, não foi constituído arguido. Ou seja, admite-se que não estivesse em causa nenhuma das situações previstas no artigo 58º do Código de Processo Penal, o qual, como é sabido, enumera os casos em que é obrigatória a constituição de arguido. Sucede, porém, que o Exmo. Senhor … foi “buscado”, conforme informação dessa Polícia, pelo que não é admissível que estivesse a prestar declarações na qualidade de testemunha (se assim fosse, deveria ter sido previamente notificado, nos termos habituais). Sobre o Exmo. Senhor … recaía, como é evidente, uma suspeita, pelo que lhe deveria ter sido facultado – a bem da defesa e da própria investigação – o acesso a um advogado. Quanto mais não fosse para que este pudesse informar o cliente a respeito do direito que lhe assistia de requerer a constituição como arguido, nos termos e para os efeitos do disposto artigo 59º, n.º 2, do Código de Processo Penal (partindo do princípio, claro está, que nunca, durante a inquirição, esteve em causa a situação, diversa, prevista no n.º 1 do artigo 59º do mesmo Código).~

12. De facto, a ausência de informação e consulta jurídicas pode comprometer seriamente a defesa e, como no presente caso se veio a revelar, é susceptível de constituir um factor de suspeita relativamente à própria investigação. Ora, assim como a lei não impunha, no caso em apreço, a necessária assistência de defensor, do mesmo modo não a afastava liminarmente, como parece ter sido interpretação da Exma. Senhora Inspectora-Coordenadora. Bem pelo contrário, dispõe o artigo 54º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março, que “o mandato judicial, a representação e a assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, nomeadamente para a defesa de direitos, patrocínio de relações jurídicas controvertidas, composição de interesses ou em processos de mera averiguação, ainda que administrativa, oficiosa ou de qualquer outra natureza” (sublinhados nossos).

13. O comando legal é lógico e de fácil compreensão: é sempre permitida a assistência por advogado, desde que haja expressa manifestação de vontade nesse sentido. Conforme refere Alfredo Gaspar, “A extrema latitude dos termos da lei – “perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, nomeadamente para a defesa de direitos, patrocínio de relações jurídicas controvertidas, composição de interesses ou em processo de mera averiguação, ainda que administrativos, oficiosos ou de qualquer outra natureza ” – só pode significar que o Advogado está legalmente autorizado a acompanhar o seu constituinte sempre que este precise da assistência dele: seja na esquadra da polícia, seja para inquirição como testemunha em instrução criminal; quer para prestar declarações em processo disciplinar, quer na assembleia geral da sociedade recreativa” (“Estatuto da Ordem dos Advogados”, Jornal do Fundão Editora, p. 79).

14. Para além da eventual incorrecção da Exma. Senhora Inspectora supra identificada e do segurança da DCCB – passíveis, por si só, de configurar a prática de faltas disciplinares – é inequívoco que, no caso em apreço, não foi devidamente salvaguardado o direito ao patrocínio judiciário consagrado no artigo 20º, n.º 2, da Constituição da República.
Termos em que, sem necessidade de outras considerações, e fazendo uso dos poderes que me são conferidos pelo artigo 23º, n.º 1, da Constituição da República e pelo artigo 20º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO a V. Exa. que:
Difunda instruções pelos meios tidos por adequados com vista a evitar a ocorrência de situações semelhantes, fazendo notar a todos quantos prestam serviço na Polícia Judiciária, que em circunstância alguma a lei permite que seja vedado o acesso dos cidadãos a um advogado, desde que a sua presença seja solicitada.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel