Comandante Regional da Horta da PSP-Polícia de Segurança Pública
Número: 29/A/98
Processo: 4916/97
Data: 16.06.1998
Área: Açores

Assunto: FORÇAS DE SEGURANÇA – SEGURANÇA PÚBLICA – PSP – ABUSO DE PODER – DETENÇÃO ILEGAL – MANDATO DE DETENÇÃO NÃO ASSINADO – NULIDADE

Sequência: Acatada

I – Exposição de Motivos

Os Factos

1. Em … /97, foi aberto processo neste Órgão do Estado (Extensão da Região Autónoma dos Açores) em virtude de reclamação relativa à execução de mandado de detenção – para julgamento e proferido no âmbito do processo judicial n.º … /96, do Tribunal Judicial da Comarca da Praia da Vitória – o qual não continha a assinatura da senhora Juíz de Direito que alegadamente ordenara a detenção.

2. Os factos referidos no texto da queixa e expostos a V.Exa. (cfr. ofício n.º … , de … /98, da Provedoria de Justiça), e que não foram contraditados pelo Comando Regional da Horta da PSP-Polícia de Segurança Pública (cfr. ofício n.º … /… , de … /98), são os seguintes:

a) Em … /97, o senhor J… foi detido pelos Guardas n.ºs … e … (senhores Guardas R … e A … ), da Secção de Investigação Criminal do Comando Regional da Horta da PSP-Polícia de Segurança Pública;

b) Os Guardas não estavam fardados e procederam à referida detenção por forma discreta tendo, designadamente, assegurado que não fosse concitada a atenção das pessoas que se encontravam junto ao senhor J…;

c) Foi entregue ao senhor J… duplicado do mandado de detenção;

d) O duplicado do mandado de detenção não continha a assinatura da senhora Juiz de Direito.

3. Apuraram-se, acrescidamente, os seguintes factos:

a) A coberto do ofício n.º … , de … /97, o Tribunal Judicial da Comarca da Praia da Vitória enviou ao Comando Regional da Horta da PSP-Polícia de Segurança Pública o mandado de detenção relativo ao senhor J…, ordenado no âmbito do processo comum singular n.º … /96;

b) Em cumprimento de ordens do senhor Chefe da Secção de Investigação Criminal os Guardas n.ºs … e … conduziram o senhor J…, sob detenção, para o Tribunal Judicial da Comarca da Praia da Vitória;

c) O senhor Chefe da Secção de Investigação Criminal não verificou que o duplicado do mandado de detenção não continha a assinatura da senhora Juiz de Direito que a ordenara;

d) Do mesmo passo, os senhores Guardas R… e A… não cuidaram de verificar a existência de assinatura da senhora Juiz de Direito no mandado de detenção;

e) Apenas posteriormente à detenção (e já no decurso da instrução do presente processo na Provedoria de Justiça) o senhor Chefe da Secção de Investigação Criminal recebeu, via telefax, cópia do original do mandado de detenção devidamente assinado (cfr. informação enviada a coberto do ofício n.º … , de … /98).

O Direito

4. O Código de Processo Penal permite, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 116º, que o juiz ordene a detenção do arguido que houver faltado injustificadamente a audiência de julgamento.

5. No caso em apreço, inexistem elementos que permitam entender com exactidão a situação subjacente à reclamada detenção. E isto não obstante a leitura do mandado de detenção (ou, melhor, de um dos exemplares emitidos, uma vez que este é, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 258º, do Código de Processo Penal, passado em triplicado) dever ser suficiente a esta compreensão.

6. Se cumpridas as injunções do mencionado art. 258º, n.º 1, este mandado deve conter:

– a assinatura da autoridade judiciária [alínea a)];

– a identificação da pessoa a deter [alínea b)];

– a indicação do facto que motiva a detenção [alínea c), 1ª parte];

– as circunstâncias que legalmente a fundamentam [alínea c), parte final].

7. O exemplar entregue ao senhor J…, para além de não conter a assinatura da autoridade judiciária, apenas referia “O Doutor M … , Juiz de Direito do Tribunal Judicial de Praia da Vitória, MANDA, cumpridas que sejam as formalidades legais, se proceda à DETENÇÃO da pessoa adiante indicada, pelo menor período de tempo possível mas necessária para a comparência deste em audiência de julgamento que se realizará no próximo dia … de … de 1997, pelas … .00 horas, a fim de ser julgado nos autos identificados em epígrafe”.

8. Como vimos, para além da assinatura da autoridade judiciária e da identificação da pessoa a deter, deve proceder-se à indicação das circunstâncias que legalmente fundamentem a detenção e do facto que lhe deu origem. “A indicação do facto que motivou a detenção exige apenas a indicação do crime e de que há fortes suspeitas de ter sido cometido pela pessoa a deter, e não uma descrição dos factos que à mesma são atribuídos” (cfr. MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal, 7ª edição, 1996, Almedina, pág. 419).

9. Não cabe aqui a análise da questão dos efeitos da invalidade do mandado de detenção, não obstante ser pacífico que constitui nulidade a não inclusão, naquele, dos requisitos das alíneas do n.º 1 do art. 258º. É certo que, quanto à invalidade do mandado, poder-se-ia invocar encontrar-se sanada em virtude de não ter sido arguida em tempo, nos termos do art. 120º, do Código de Processo Penal; ou, ainda, defender, na mesma linha de raciocínio, que “as nulidades, qualquer que seja a sua natureza, ficam sanadas logo que se forme caso julgado, não,podendo mais ser arguidas ou conhecidas oficiosamente” (cfr. Ac. STJ, de 07/06/89, ob. cit., pág. 248).

10. Devo, no entanto, expressar o meu entendimento de que quanto à falta de assinatura da autoridade judiciária, a cominação da nulidade inserta no n.º 1 do art. 258º apenas se refere aos duplicados (não assinados) do mandado de detenção (senão devidamente assinado pelo menos emitido pela autoridade judiciária). Na situação em análise, há fortes indícios de que o mandato proveio da secretaria judicial (a única assinatura que contém é a do Oficial de Justiça) e desconhece-se se terá sido expedido, por erro, antes de estar assinado pela autoridade judiciária, ou se a autoridade judiciária terá decidido não assinar o mandato (tendo, ainda assim, sido enviado por lapso administrativo).

11. Deve concluir-se, pois, que a circunstância das secretarias judiciais expedirem documentos epigrafados MANDADOS DE DETENÇÃO – que, como se infere da situação presente, são quase sempre copiados de minutas (veja-se que o documento entregue ao senhor J… começa referindo “o Doutor M …”) – não significa que se esteja, sem mais, na presença de efectivos mandados de detenção legais.

12. No caso que aqui nos ocupa, diferentemente da abordagem da questão dos efeitos da invalidade do acto praticado no processo crime então em curso no Tribunal Judicial de Praia da Vitória, importa analisar a detenção efectuada pelos Guardas da Secção de Investigação Criminal do Comando Regional da Horta da Polícia de Segurança Pública. E isto porque, no dia … /97, a ordem cumprida – assim como o documento entregue ao senhor J… – não consubstanciava qualquer mandado de detenção.

Assim sendo, os Guardas n.ºs … e … , da Secção de Investigação Criminal do Comando Regional da Horta da Polícia de Segurança Pública, efectuaram uma detenção em condições contrárias às estabelecidas na lei processual penal, bem como ao preceituado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Com efeito, “toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança” e “ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo (…) de acordo com o procedimento legal” (cfr. art. 5º, da Convenção, aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro).

13. No que especialmente concerne à PSP-Polícia de Segurança Pública, deve atender-se ao facto da prática de cumprimento de mandados de detenção não assinados poder conduzir à detenção de indivíduos contra quem a autoridade judiciária ou de polícia criminal nunca emitiu, nem pretendeu emitir, qualquer ordem de detenção. Poderá, então, existir uma situação de não apenas falta de assinatura do mandado, mas de total ausência de animus detentioni.

14. Também por esta razão, a exigência de entrega de um exemplar do mandado de detenção ao detido é uma garantia de legalidade da detenção. Importa, pois, que este documento consubstancie uma efectiva (e legal) ordem escrita de detenção. Por outro lado, enquanto excepção ao direito à liberdade – “direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar” (cfr. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 184) – e ao direito à segurança – “(…) o qual significa essencialmente garantia de exercício seguro e tranquilo dos direitos, liberto de ameaças ou agressões” (idem) – a privação da liberdade deve revestir especiais cuidados em todos os seus aspectos, maxime quanto à sua motivação (aqui, apraz-me registar a forma reconhecidamente correcta como os guardas procederam à detenção, designadamente pela discrição revelada).

15. O art. 27.º, da Constituição, não deixa dúvidas quanto à questão do especial cuidado na realização da detenção, chegando mesmo a determinar que “toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos” (vide n.º 4).

16. A afirmação do senhor Chefe da Secção de Investigação Criminal

“(…) sou obrigado a concluir que provavelmente o original do mandado em questão seria o único que continha a assinatura do Meretíssimo Juíz [e que] como este era o primeiro de cima, e se encontrava correctamente preenchido e assinado, provavelmente os restantes exemplares não terão sido verificados (…) uma vez que o exemplar que foi entregue ao detido no acto da detenção (…) não continha a assinatura do Magistrado” (cfr. informação, de … /98, remetida a este Órgão do Estado em anexo ao ofício n.º … , de … /98),

não revela a necessária garantia do pleno exercício do “direito subjectivo à segurança (direito de defesa perante agressões dos poderes públicos)” (ibidem) nem assegura, tão pouco, a vigência do princípio da legalidade do processo (vide art. 2º, do Código de Processo Penal).

17. Por fim, devo referir que, atento o carácter excepcionalmente grave da aplicação de medidas de privação de liberdade, o seu exercício ilegal constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado (cfr. art. 27º, n.º 5, da Constituição).

18. Face aos factos que deixei expostos, concluo ser imperioso garantir que o Comando Regional da Horta da Polícia de Segurança Pública apenas execute mandados de detenção emanados das competentes autoridades judiciária ou de polícia criminal.

II – Conclusões

19. Assim, no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artº 20º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO

A. Que seja averiguada a situação descrita na presente Recomendação, por forma a apurar os factos que determinaram a entrega ao detido de um exemplar do mandado de detenção não assinado;

B. Que seja dado conhecimento ao interessado, senhor J…, das conclusões da averiguação;

C. Que sejam desencadeadas as diligências necessárias à garantia de que apenas são executados os mandados de detenção emanados das competentes autoridades judiciária ou de polícia criminal, designadamente pela verificação da existência da respectiva assinatura.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL