Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia
Número:2 6/A/98
Processo: 1494/97
Data: 22.04.1998
Área: A1

Assunto: URBANISMO E OBRAS – OBRAS PARTICULARES – LICENÇA – INTERESSE PÚBLICO – JUS AEDIFICANDI – AUTONOMIA PRIVADA

Sequência: Não Acatada

I – Exposição de Motivos

1. Os esclarecimentos prestados pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, através do ofício n.º …, de … .97, permitiram-me concluir pela procedência da queixa que me foi apresentada.

2. Com efeito, foi construído em desrespeito pelo disposto no art. 59º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, um edifício no ângulo da Rua … com a Rua … , nessa cidade (processo de obras n.º … /93, em nome de … , Construções, Lda).

3. Não obstante ter sido ordenada, em … .95, a demolição de parte da construção (art. 58º, n.º 1, do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro), veio essa Câmara Municipal comprometer-se a licenciar as obras desde que a requerente declarasse não se opor a que o vizinho construisse à mesma distância, o que veio a suceder.

4. A legalização das obras efectuadas em desconformidade com o projecto aprovado (art. 29º do regime jurídico relativo ao licenciamento municipal de obras particulares, e art. 167º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951), operará, assim, a revogação implícita da ordem de demolição, porquanto as suas consequências jurídicas por que incompatíveis com os efeitos produzidos pela ordem de demolição, levam à eliminação destes.

Verifica-se uma contradição objectiva entre o sentido do primeiro acto e o sentido que o acto posterior – a legalização – lhe atribui. Esta incompatibilidade implícita entre os efeitos da ordem de demolição e os efeitos do acto de licenciamento ex post opera a revogação do primeiro acto (neste sentido, ANDRADE, Robin, Coimbra, 1969, p. 37 e ss.).

5. Permitiu, assim, a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, o licenciamento de uma construção em desrespeito de uma das normas técnico-funcionais aplicáveis à construção, norma essa do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951. Não consente este diploma, porém, uma derrogação aos respectivos preceitos nos termos descritos. As suas disposições são de ordem pública, como será, adiante, observado.

6. No art. 63º do RGEU apenas se permitem derrogações ao disposto nos preceitos relativos à altura e aos afastamentos entre edificações, quando tais excepções se justifiquem por condições excepcionais e irremediáveis, criadas antes da entrada em vigor do Regulamento, e desde que se encontrem garantidos níveis satisfatórios de ventilação e iluminação natural do edifício, ou desde que o exija a natureza, destino ou carácter arquitectónico das edificações, com salvaguarda das condições mínimas de salubridade (art.64º).

7. Nada decorre da instrução do processo que permita concluir enquadrar-se o edifício reclamado na situação descrita. Mesmo que assim sucedesse, careceria a deliberação camarária de fundamentação, porquanto não é apresentada qualquer justificação para a preterição da exigência regulamentar em análise.

8. Entre as normas legais relativas à construção, contam-se as que respeitam aos requisitos de salubridade, estética e segurança das edificações constantes do RGEU, cujo art. 3º, § único, subordina a concessão da licença para a execução de obras à observância das restantes prescrições do Regulamento, dos regulamentos municipais em vigor e,bem assim,de quaisquer outras disposições legais cuja aplicação incumba à administração municipal assegurar.

9. Não se tratando das normas de direito privado relativas à construção, (cuja aplicação não cabe à Administração assegurar), refere-se a citada disposição às normas legais e regulamentares sobre aspectos técnico-funcionais da construção (artºs 17º e 18º, do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91).

10. No caso presente, foi postergada a exigência contida no art. 59º do RGEU, um dos preceitos que visa tutelar os interesses públicos de salubridade das edificações em termos de arejamento e iluminação natural. Permite, assim, a reclamada deliberação camarária um atentado ao interesse público que dita a sujeição dos projectos de obras particulares às prescrições de ordem técnica e funcional que garantem as mínimas condições de iluminação, ventilação e higiene dos edifícios.

11. Por que as normas técnicas em matéria de construção são normas de direito público, não são permitidas outras excepções à respectiva estatuição para além daquelas que o legislador expressamente admitiu. Nestes casos, atentas as circunstâncias de facto, a lei permite que o interesse público em questão seja prosseguido de outra forma, mas não admite qualquer cedência por vontade das partes. Não há neste domínio, como no direito público em geral, espaço para a autonomia privada.

Não se conformando a pretensão de aproveitamento urbanístico de determinado espaço ou de certa edificação já existente com os condicionamentos que a lei ou o regulamento impõem, não resta à Câmara Municipal outra alternativa que a de indeferir o pedido de licenciamento (art 63º, n.º 1, alínea b), do regime do licenciamento municipal de obras particulares).

12. Com efeito, o direito de edificar, e, em geral, o direito ao aproveitamento urbanístico dos solos encontra-se constitucional e legalmente condicionado; apenas pode ser exercido nas condições definidas pelas normas jurídico-urbanísticas que constituem o parâmetro aferidor da validade do acto de permissão de construir (neste sentido, cfr. CORREIA, Fernando Alves, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, p. 376).

O direito de construir está condicionado pela verificação da sua compatibilidade com outros interesses e necessidades públicas que se encontram reflectidos nas normas de planeamento e de construção aplicáveis, e que, por serem de interesse público, não admitem postergação por vontade dos particulares.

13. Não se fundando, em toda a sua extensão, na garantia constitucional do direito de propriedade privada (Acordão do Tribunal Constitucional n.º 341/86, in Diário da República, 2ª série, n.º 65, de 19.3.87), as condições de exercício do “jus aedificandi” encontram-se no ordenamento jurídico urbanístico e por este são atribuídas.

Não pode, pois, relevar a vontade dos particulares, quando através do sistema de licenciamento prévio e de fiscalização da execução das obras e da utilização das edificações, a Administração se encontra a exercer uma função pública de adequação do espaço urbano “às exigências do modelo de ocupação, uso e transformação dos solos contido nos instrumentos de planeamento do território” (ALMEIDA, António Duarte de, e Outros, Legislação Fundamental de Direito do Urbanismo, Vol. II, p. 793).

14. Nada permite, pelos motivos expostos, que consinta a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia em derrogações a preceitos de direito público, nem que, proceda a devoluções de poderes aos particulares em matéria de licenciamento de construções.

II – Conclusões

Em face do exposto e no exercício da atribuição constitucional que me é confiada para prevenção e reparação das injustiças e ilegalidades (artº 23º, n.º 1, da CRP),

RECOMENDO

1º Encontrando-se concluído o procedimento de licenciamento da obra, que seja revogada a licença concedida com fundamento na respectiva invalidade (art. 141º do Código do Procedimento Administrativo), por violação do disposto no art. 59º, do RGEU e no art. 63º, n.º 1, alínea b), do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro;

2º Uma vez que a licença procedeu à revogação implícita da ordem de demolição, que ao acto de revogação da licença seja atribuído, de acordo com o preceituado no art. 146º do Código do Procedimento Administrativo, efeito repristinatório, estabelecendo a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia novo prazo para demolição da parte do edifício que desrespeita o art. 59º do RGEU;

3º Que seja notificada a empresa requerente para apresentar pedido de legalização da obra, uma vez efectuada a demolição parcial (art. 167º do RGEU);

4º Encontrando-se o procedimento de licenciamento ainda em tramitação, que seja revogada a deliberação camarária de ….96 e condicionado o deferimento do pedido à realização da demolição.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL