Secretário-Geral do Ministério da Educação
Número: 1/A/98
Processo: 1609/96
Data: 28.01.1998
Área: A4

Assunto: FUNÇÃO PÚBLICA – CONCURSO DE PROVIMENTO – AUXILIAR DE EDUCAÇÃO – EXERCICIO EFECTIVO DE FUNÇÕES DE EDUCADORA DE INFÂNCIA.

Sequência: Parcialmente Acatada

Registei, com apreço, o acolhimento do segmento nuclear da Recomendação n.º 7/A/97, que dirigi a Vª Exª a coberto do ofício n.º …, de … do ano transacto.

Não posso, porém, considerar o entendimento expresso por Vª Exª quanto ao pagamento dos juros legais, uma vez que estes visam ressarcir a funcionária por não ter sido tempestivamente paga a totalidade da prestação devida, sendo que a Administração, só agora, se dispõe a corrigir esse seu acto, na sequência do acatamento parcial daquela minha Recomendação.

Na verdade, constituindo as remunerações dos funcionários obrigações que se vencem em data certa, o seu não pagamento pontual faz incorrer em mora o serviço processador, tal como resulta do disposto no artigo 805º, n.º 2, alínea a), do Código Civil.

Em consequência da mora, o devedor fica obrigado a reparar os danos causados ao credor, que, no caso em apreço, tratando-se de obrigação pecuniária, correspondem aos juros legais, contados da data da constituição em mora, em conformidade com o disposto nos artigos 804º, n.º 1 e 806º, n.º 1, ambos do Código Civil.

Por outra parte, não parece que a Administração esteja vinculada a uma decisão judicial para poder efectuar o pagamento dos juros, pois não estando impedida de transigir (cfr. artigo 1248º do Código Civil), sempre deverá ponderar que a intervenção do provedor de justiça não é, em caso algum, subsidiária da actividade judicial, exercendo-se com autonomia e independentemente da utilização dos meios graciosos e contenciosos, como resulta do disposto no artigo 23º, n.º 2, da Constituição.

A invocação do princípio da boa fé, no texto da Recomendação, não traduz uma abordagem subjectiva do conceito, não sendo de supor , sem mais, que os órgãos da Administração tenham agido com o propósito de causar um prejuízo a alguém. No entanto, os actos e procedimentos da Administração podem revelar, objectivamente, uma violação desse princípio, se se mostram desconformes com o Direito.

No caso vertente, a Secretaria-Geral do Ministério da Educação tem agido em relação à aqui reclamante de forma seguramente contraditória.

Desde logo, tem beneficiado do exercício de funções de uma educadora de infância, que aquela tem desempenhado ininterruptamente desde … de 1991 até de 1997. Não se tratou, pois, de assegurar uma substituição, na falta ou num impedimento de uma colega, nem de lhe proporcionar a realização do estágio pedagógico, num período ou em períodos bem delimitados no tempo, fora de qualquer regime de continuidade. Esta situação configura uma relação laboral estável, de duração indeterminada, contaminada por uma discrepância entre as funções efectivamente prestadas e a qualificação e correspectiva remuneração do trabalhador.

A isto acresce a circunstância de essa Secretaria-Geral ter persistido em informar a reclamante, directa e indirectamente, da possibilidade de regularização da sua situação funcional, por via de concurso. Assim, em … de 1993, … de 1994, … de 1994 e … de 1996, por ofícios (n.ºs … e …) dirigidos ao Sindicato dos Professores da Grande Lisboa, à ora reclamante ( n.º …) e a esta Provedoria (n.º …), comunicava-se a estas entidades o seguinte:

” Após a aprovação do referido quadro serão abertos os concursos que permitam a progressão nas carreiras.”

” (…) deverá a interessada aguardar a abertura de concursos que se realizarão após a aprovação do quadro único do pessoal do Ministério da Educação.”

” (…) devendo aguardar a abertura de concursos que se realizarão após a aprovação do quadro de pessoal do Ministério da Educação.”

” Após a aprovação dessa Portaria e das inerentes transições de pessoal, estes Serviços promoverão a abertura de concursos, cuja data previsível se estima ocorrer até ao final do corrente ano.”

Inopinadamente, em … de 1996, a mesma Secretaria-Geral anuncia, através do ofício n.º …, dirigido a esta Provedoria, que: “estando em curso a reestruturação de alguns Serviços do Ministério da Educação e não se tendo feito sentir a necessidade de pessoal especializado nesta área, também não é possível prever a data de abertura de concurso para a categoria de Educadora de Infância.”

Esta súbita mudança de atitude, cujos fundamentos se desconhecem, faz tábua rasa da posição que vinha sendo assumida desde, pelo menos, 1993, por essa Secretaria-Geral. Não se vislumbra na afirmação da desnecessidade de pessoal daquela área funcional qualquer coerência ou conexão com os actos precedentes da mesma entidade. O exercício continuado de funções de educadora de infância, no mesmo local de trabalho, por um período tão prolongado de tempo (6 anos) conflitua abertamente com a referida declaração, constituindo mesmo a sua antítese, expressa em acto. Esta declaração entra em ruptura com a linha de continuidade espelhada nas informações anteriormente prestadas, não havendo entre uma e outras uma relação de congruência.

A conduta sistematicamente mantida por esse Serviço era de molde a criar na funcionária a expectativa legítima de ver aberto concurso de provimento no lugar que vinha sendo exercido sem a correspondente investidura. Esse acto daria consistência à actuação pregressa do Serviço, respeitando o princípio da estabilidade, que caracteriza o estatuto da função pública (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, anotação III ao artigo 269º).

Não se pode perder de vista que a Administração Pública portuguesa não adoptou um sistema de quadro único do funcionalismo, tendo, antes, optado por um regime de quadros privativos. Sem prejuízo da garantia de mobilidade interdepartamental, a modalidade organizativa escolhida apela a uma ligação mais estreita dos funcionários ao serviço a que estão vinculados, em cujo âmbito se processa habitualmente a evolução profissional destes trabalhadores. Este modelo, que se considerou eficiente e profícuo na realização do interesse público, prefigura uma estrutura baseada na segurança e confiança mútuas (da organização e das pessoas que a integram), factores que têm sido particularmente realçados na análise do sistema empresarial nipónico.

É em configurações deste tipo, justamente, que encontra sentido, a obrigatoriedade de abertura de concursos de acesso, “quando existam, pelo menos, três vagas orçamentadas, desde que existam no serviço candidatos que satisfaçam os requisitos de promoção”, tal como se estipula no artigo 16º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 353-A/89, de 16 de Outubro, de onde resulta que se valoriza, ainda, o conceito tradicional de promoção (no quadro do serviço), em detrimento da figura do acesso (que pressupõe ou admite a mobilidade entre os vários serviços).

Não se nega que aos serviços da Administração assiste o direito de definir o momento de accionar os mecanismos de recrutamento de pessoal, segundo critérios de oportunidade – quantos vezes ditados, até, por restrições de ordem orçamental – mas neste entendimento não cabe uma interpretação que atribua ao uso desse poder discricionário uma tal amplitude que se alheie dos limites a que os serviços se vincularam, por sua própria iniciativa.

A Secretaria-Geral do Ministério da Educação vem agora negar aquilo que reiteradamente afirmou ao longo de seis anos, sem que para o efeito avance justificação bastante, perdendo de vista que a actividade da Administração está subordinada à Constituição e à lei (cfr. artigo 266º, n.º 2). Nesta medida, deve a Administração conformar-se com os princípios que se acolhem ao princípio aglutinador do Estado de direito democrático, em cuja dimensão constitutiva se inscreve, sempre, o desígnio de protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça (cfr. autores e obra citada, anotação V ao artigo 2º).

Se se traz à colação este princípio, é por se entender que, no caso em apreço, não foram respeitados os princípios da protecção da confiança e da proporcionalidade, que emergem de normas éticas fundamentais em que se funda a ordem institucional em que nos integramos (cfr. J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1985, pág. 303).

Tenha-se presente que o meio idóneo para satisfazer as necessidades de pessoal dos serviços é o concurso (cfr. artigos 4º, n.º 1 e 5º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 498/88, de 30 de Dezembro) e que é através da nomeação que se assegura o exercício profissionalizado de funções próprias do serviço público que revistam carácter de permanência (cfr. artigo 6º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho).

No que se refere à primeira asserção, cumpre sublinhar que o concurso não perde o seu cariz paradigmático, pelo facto de existirem outras figuras de mobilidade, que se reconduzem sempre a formas de vinculação definitiva ou precária, sendo que estas últimas não são mais que soluções transitórias de recurso (cfr. artigos 25º a 27º do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro).
Estando a reclamante requisitada ao …, dando satisfação a necessidades permanentes do serviço, era de admitir com toda a razoabilidade o preenchimento, a breve trecho, do lugar correspondente. Com a sua integração no quadro desse Serviço, por força do disposto no artigo 2º do Decreto-Lei n.º 14/97, de 17 de Janeiro, saiu reforçada essa mesma expectativa.

Tanto os dispositivos legais aplicáveis à situação, como as informações que foram sendo prestadas sobre o assunto apontavam para que esse procedimento viesse a ser o adoptado.

Aliás, não fora dar-se o caso de o quadro de pessoal da Secretaria-Geral do Ministério da Educação (que se passará a designar pela sigla SGME) contemplar na sua dotação lugares de auxiliar de educação, a sua integração teria sido feita num lugar de educadora de infância, atento o disposto no artigo 3º do diploma acabado de invocar.

A actuação da Secretaria-Geral não pode ser tida por inócua, como se actos e informações fossem desprovidos de qualquer eficácia. O espaço de comunicação, assim aberto pela Administração configura um meio procedimental, subordinado ao princípio da colaboração, a que se refere o artigo 7º do Código do Procedimento Administrativo (adiante designado por CPA). Nesse âmbito, a Administração produziu informação conformadora da sua actuação subsequente, pelo que, se dela vier a divergir posteriormente, verificar-se-á ofensa do referido princípio.

Retomando a análise, interrompida pelas duas observações que antecedem, constata-se que o interesse público (nunca explicitado) prosseguido pela SGME, subjacente ao propósito anunciado de não abrir concurso não foi confrontado com os interesses da reclamante, em conformidade com a ponderação requerida pelo artigo 4º do CPA.

Desde logo e face ao comportamento antecedente da Administração, a actual posição da SGME revela-se manifestamente desproporcionada (cfr. artigo 5º do CPA) ao fim que, porventura, visasse atingir (e que se desconhece qual seja), tanto mais que esta actuação fere o princípio da justiça (cfr. artigo 6º do CPA), na exacta medida em que é posta em causa a efectividade de direitos fundamentais (cfr. autores e obra citada, anotação VIII ao artigo 266º), que funcionam aqui como critérios materiais de ponderação do uso de um poder discricionário que se vai exercer.

Tudo isto nos reconduz ao princípio da boa fé, hoje consagrado no artigo 6º-A do CPA, mas já implícito na redacção originária do Código. Num dos seus vectores, de sentido negativo, inscreve-se a proibição de venire contra factum proprium, proscrevendo comportamentos contraditórios, como são os que se revelam na situação em apreço, já suficientemente explicitada acima (neste sentido, ver o acórdão publicado em “Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 289, pág. 62 e seguintes, bem como Diogo Freitas do Amaral, “Direitos Fundamentais dos Administrados”, in “Nos dez anos da Constituição”, IN/CM, 1986, n.ºs 9 a 11).

Não é legítimo que a Administração se prevaleça da sua prerrogativa de poder para ignorar a relação que estabeleceu com a aqui reclamante, quando estava ao seu alcance conferir-lhe um sentido de conformidade com a lei ou, se se preferir, com o Direito, abrindo concurso para preenchimento da vaga de educador de infância, que estava a ser exercido pela reclamante. E, mesmo, que se verificasse a inexistência de vagas, nem, por isso, a SGME ficaria isenta de procurar uma solução legislativa viabilizadora da criação do lugar em falta.

Não será despiciendo trazer à colação o tratamento que vem sendo dado à figura do agente putativo, tanto pela jurisprudência, como pela doutrina, conferindo relevo ao exercício pacífico, contínuo e público de funções durante um longo período de tempo (variando, de acordo com os autores, entre os três e os dez anos), assim legitimando juridicamente a sua posição face à Administração (ver, por todos, Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, vol. I, Almedina, Coimbra, pág. 436, e nota aí inserta).

De igual modo, tem o Estado promovido a regularização de um conjunto multifacetado de relações de natureza laboral, mantidas pela Administração, à revelia das disposições legais aplicáveis (cfr., por últimas, as determinadas pelos Decretos-Lei n.ºs 427/89, de 7 de Dezembro e 81-A/96, de 21 de Junho).

O paralelismo que aqui se convoca é mais o dos fundamentos das soluções encontradas do que o de uma virtual analogia das situações. Em todos os casos, são os princípios da protecção da confiança, da proporcionalidade e da justiça que determinam uma actuação conforme ao Direito.

Nos termos do artigo 20º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO

complementarmente, a Vª Exª a abertura de concurso para o preenchimento de uma vaga de educador de infância destinada ao Centro de Educação e Protecção Infantil de …, de forma a repor a confiança na actuação da Administração, tratando de forma justa a situação da funcionária e honrando os compromissos que essa Secretaria-Geral expressa e livremente assumiu.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL