Secretário de Estado da Administração Educativa
C/c.
Secretário de Estado do Ensino Superior

Proc. R-2292/98
Rec. n.º 14/B/98
1998.12.21
Área: A3
Sequência: Não Acatada

1. O Decreto-Lei n.º 524/73, de 13 de Outubro, concedeu uma isenção no pagamento de propinas aos agentes de ensino que se matriculem em curso de ensino superior. Este diploma apenas veio a ser devidamente regulamentado em 1998, por meio do Despacho em epígrafe, que definiu o âmbito do benefício atribuído.

2. É a propósito dessa definição que surge o problema que ora exponho a Vossa Excelência, o qual se prende com a restrição feita pelos autores do Despacho regulamentador do conceito de “agente de ensino”, limitando-o aos docentes “providos definitivamente num lugar dos quadros, em exercício efectivo de funções” (cf. n.º 1 do Despacho).

3. A este respeito foram apresentadas nesta Provedoria de Justiça múltiplas reclamações por parte de docentes providos transitoriamente, que entendem estar a ser ilegitimamente prejudicados pela interpretação adoptada no Despacho.

4. Solicitados esclarecimentos a essa Secretaria de Estado, informou-se que o conteúdo atribuído à expressão “agentes de ensino” resultou da “clarificação e actualização do conceito, já de si vago”, necessária por esta terminologia ter já “caído em desuso”; informou-se ainda que “os motivos que presidiram à fixação do entendimento agora objecto de reclamação, reflectem uma preocupação em assegurar que o investimento promovido por esta medida se possa aplicar somente a docentes já vinculados definitivamente a um quadro (…) evitando-se o financiamento pelo Estado àqueles que se encontram a exercer apenas transitoriamente a função docente” (cf. ponto n.º 2 e 3 do ofício n.º 3022, de 18.6.98).

5. Face a esta resposta, os serviços desta Provedoria consideraram que a actuação aqui reclamada não seria nem a mais adequada nem a mais eficaz, relativamente aos fins prosseguidos pelo Decreto-Lei n.º 524/73, entendendo-se ser desejável a alteração do Despacho na parte em discussão.

6. O mesmo não entendeu essa Secretaria de Estado que, por ofício com data de 4 de Agosto, manteve todos os argumentos já anteriormente aduzidos nesta matéria.

7. Entendo que a fundamentação utilizada para justificar a delimitação do conceito de “agente de ensino” não pode proceder, por várias razões, a seguir enunciadas.
A isenção em apreço, historicamente enquadrada pelo aumento da oferta da escolaridade obrigatória, pretendeu incrementar a aquisição de novas habilitações dos professores em actividade, com vista à elevação da qualidade geral da docência. Este objectivo mantém-se, sendo à sua luz que deverá ocorrer a actividade regulamentadora da norma.
Nesse sentido, não é justificável a restrição ora reclamada: antes de mais, porque, tendo o legislador fixado como objectivo a elevação das habilitações do corpo docente, impõe-se que aí se incluam a generalidade dos docentes e, necessariamente, dada a sua actual dimensão e importância no sistema de ensino, os docentes que se apresentem sem vínculo definitivo. Até porque não é perceptível em que medida se pode considerar o vínculo definitivo como inerente à condição de “agente de ensino”, tal como a mesma vem concebida no Decreto-Lei n.º 524/73. De facto, embora “vaga” e “caída em desuso”, nada na expressão deixa perceber a necessidade de existência de um vínculo mais consolidado à função pública, circunstância que não esteve, com toda a certeza, no espírito do legislador. Certamente que os “usos” de então continham expressão mais adequada para referir os docentes vinculados, se essa tivesse sido a pretensão do legislador.
E não procede alegar-se que a densificação do conceito teve subjacente cuidados na boa utilização dos dinheiros públicos: a exclusão pura e simples de um número importante de docentes incluídos na previsão de incidência da norma, sendo uma questão central do regime da isenção, deveria ter sido feita pelo próprio legislador; caso contrário, não cabe ao regulamentador esta delimitação, por mais razoáveis que pudessem ser os objectivos considerados – aliás, frustrados pela solução adoptada, como adiante se verá.
Resulta do exposto que o Decreto Regulamentar veio limitar de forma significativa o âmbito que o legislador tinha fixado para a isenção de propinas, em termos que configuram uma alteração efectiva do regime constante da norma habilitante.
Ora, em obediência ao princípio da hierarquia normativa, ínsito no artigo 112º da Constituição da República Portuguesa, qualquer alteração a determinado diploma legal deverá revestir forma hierarquicamente equivalente ou superior à que corresponde ao diploma alterado. Daqui resulta estar naturalmente vedado a um despacho regulamentar a alteração do regime constante de decreto-lei.
Nesse contexto, considero ser o Despacho Regulamentar em referência ilegal na parte em que restringe a isenção de propinas aos docentes que apresentam vínculo definitivo à função pública.

8. Viu-se, portanto, que a expressão “agente de ensino” abrange também os docentes providos transitoriamente e que a sua restrição apenas caberia ao legislador. Mas ainda que o regulamento pudesse, de algum modo, restringir o âmbito da isenção, nunca o poderia fazer nos termos em que o fez, já que introduziu uma discriminação injustificada e desadequada em relação aos fins que estiveram, supostamente, na base da solução adoptada.
De facto, o argumento segundo o qual a interpretação restritiva reclamada evitaria o aproveitamento abusivo por parte de docentes que ocupassem transitoriamente essas funções, não colhe.
Diga-se, preliminarmente, que, pese embora a reduzida margem de manobra deixada ao regulamento, é legítima a preocupação no sentido de o investimento realizado na formação dos docentes ser efectivamente aproveitado no exercício da sua actividade escolar e no melhoramento da qualidade de ensino – objectivo último da isenção. Mas se os fins são legítimos, já não o serão os meios, por não serem, em relação àqueles, nem adequados nem eficazes.
Em primeiro lugar, por não haver nada que garanta que a formação concedida a docentes com vínculo definitivo seja efectivamente aplicada por estes no melhor exercício da sua actividade, não só por não ser garantida a manutenção futura do vínculo, mas também por nada obstar que, após a frequência do curso, o docente em questão não possa beneficiar de uma licença de serviço mais ou menos prolongada – benefício certeiramente referido pelo gabinete de Vossa Excelência como sendo privilégio exclusivo dos docentes providos definitivamente, estando vedado aos demais.
Por outro lado, não é também necessário que um docente colocado transitoriamente não permaneça a ocupar as suas funções após a frequência do curso – tanto mais que, como se sabe, a situação de colocação provisória decorre, as mais das vezes, da vontade e das limitações da própria Administração, que não da dos docentes em causa, em regra disponíveis para o ingresso definitivo na carreira.
A natureza do vínculo profissional não é, portanto, suficiente para, por si só, determinar e justificar uma limitação do âmbito de um benefício concedido a toda a classe docente. Ora, carecendo de fundamentação adequada e relevante em função dos interesses em presença, a distinção operada é discriminatória e, nessa medida, violadora do princípio da igualdade, contido no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa – deve dizer-se, aliás, que a ser a distinção consagrada no regulamento consonante com a previsão da norma habilitante, ter-se-ia de considerar ser esta inconstitucional, por violação do preceito referido.
Diga-se, a este propósito, que não é válido argumentar-se com o facto referido no ponto 4 do ofício do Gabinete de Vossa Excelência de 4 de Agosto, relativo à existência de “outros mecanismos de incentivo” que se encontram “disponíveis para os docentes não vinculados a lugares do quadro …”, os quais poderiam compensar estes docentes pela não atribuição da isenção. Com efeito, a isenção é concedida a todos os docentes em exercício de funções, sendo que qualquer limitação à sua atribuição tem que partir, como atrás já se viu, da lógica subjacente à concessão da isenção, e não da existência de outras regalias paralelas.

9. Atento o exposto, e usando das faculdades que me são conferidas pelo artigo n.º 20º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,
RECOMENDO,
Que seja alterada a redacção do n.º 1 do Despacho Regulamentar n.º 335/98, de 16 de Abril de 1998, deixando de se limitar aos docentes com vínculo definitivo a concessão de benefício previsto no Decreto-Lei n.º 524/73.

Em alternativa, poderá ser adoptado por via legislativa um sistema que acautele a efectiva boa utilização dos recursos em questão, eventualmente por via da celebração de contratos com cada professor beneficiário, que garanta a prestação futura da sua actividade docente por um número de anos considerado adequado e suficiente, e que, em caso de incumprimento, implique a restituição de todos os valores dispendidos.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA
Menéres Pimentel